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A mulher na literatura

Com talento e afeto

Sempre que se refere às mulheres escritoras, o senso comum insiste em nelas perseguir aquilo que guardariam de "feminino": laços íntimos, sonhos domésticos, confissões à beira do fogão, traços sentimentais. No entanto, um passar de olhos pela produção literária contemporânea demonstra, em vez disso, que as mulheres estão de igual para igual com os homens, ocupando postos tão ou mais importantes no cenário literário brasileiro. É verdade, alguma marca de exceção parece ser, quase sempre, associada à presença da mulher - como se o sucesso na literatura confirmasse apenas algum tipo de desvio na posição clássica de esposa e mãe. Clarice Lispector foi sempre considerada uma mulher estranha; alguns chegaram a afirmar, num exagero, que era "bruxa". Em uma geração mais jovem, a poeta Ana Cristina César teve sua imagem associada primeiro ao mistério e ao porte sedutor; depois, suicidando-se, parece ter confirmado, com seu gesto extremo, esse destino supostamente incorreto. A própria Hilda Hilst, interessada em experiências místicas e contatos com extraterrestres, veio confirmar com sua biografia a idéia de que a literatura "enlouquece" a mulher - ou, pelo menos, a afasta de seu centro.
Como que para agradar a seus detratores, Rachel de Queiroz sempre faz questão de repetir que gosta mais de cozinhar do que de escrever - como que encampando o preconceito. Lya Luft é tida como uma mulher misteriosa, que escreve romances lúgubres e difíceis. Cora Coralina teve, sempre, seu talento associado à pobreza e à condição de negra. Uma poeta como Orides Fontella tem sua vocação, em geral, ligada ao alcoolismo e à vida desajustada que levou. Mesmo a recatada católica Adélia Prado, antes de lançar seu fabuloso O homem da mão seca, viveu uma profunda crise de depressão, que a impediu, por um longo tempo, de escrever. Tudo muito diferente, oposto mesmo, às vidas supostamente equilibradas, e até monótonas - isto é, retas e masculinas - do burocrata Carlos Drummond, do diplomata de carreira João Cabral, do médico João Guimarães Rosa, do quase "santo" Manuel Bandeira. Drummond podia ter suas manias de escritório, Cabral suas "melancolias", Rosa sua sensibilidade exacerbada, Bandeira as feridas da tuberculose; mas nunca, ou quase nunca, elas foram usadas para explicar a aparição da vocação literária.
São efeitos perversos, imagens que se reproduzem, se repetem e se difundem, tomando a aparência de verdades. Hoje, temos escritoras consagradas e respeitáveis, como Adélia e Hilda, que desmentem tudo isso. A imagem mais veemente, nesse aspecto, talvez seja a de Nélida Piñon, uma autora de prestígio internacional que, com seu temperamento de desbravadora, já chegou a ocupar a presidência da Academia Brasileira de Letras. "A presença da mulher na literatura tem se tornado muito mais nítida", atesta a crítica literária Walnice Nogueira Galvão, vitoriosa num terreno em que os homens, em geral, são maioria. "As mulheres escritoras são hoje muito mais atuantes que no passado", acrescenta. Walnice está acompanhada por uma plêiade de grandes críticas, como Leyla Perrone-Moisés, Flora Süssekind, Eliane Robert Moraes, Gilda de Mello e Souza. Presenças que, para além dos preconceitos, atestam o vigor da voz feminina.
"Podem existir casos isolados. Mas, no geral, hoje estamos de igual para igual com os homens", diz Adélia Prado, convicta de que lá se foram os tempos em que as escritoras tinham que se consolar com uma posição marginal. É verdade que a poesia de Adélia, confirmando em parte a idéia de que às mulheres cabem os temas ditos femininos, se baseia na religiosidade, no amor e na vida caseira. "É claro que existem as particularidades femininas", ela diz. "Mas espero estar fazendo uma literatura para os dois sexos." A romancista Ana Miranda, por exemplo, começou sua carreira num terreno habitualmente destinado aos homens: a narrativa histórica. Mais ainda: em seu livro de estréia, Boca do Inferno, romanceia a vida de um dos mais desbocados poetas da literatura brasileira, o baiano Gregório de Mattos. Outra romancista de sucesso internacional, Patrícia Melo, trata em seus romances - como em O matador - de temas duros como a violência, a corrupção, as drogas e a vingança. Escolhas que a aproximam muito mais de um romancista viril como José Rubem Fonseca do que dos temas "de menina" aos quais a mulher ainda continua ligada.
As coisas parecem, realmente, estar mudando. "A mulher sofreu uma marginalização que atravessou os milênios", diz a escritora paulista Renata Pallottini. "Mas hoje não vejo grandes manifestações discriminatórias." Renata admite, no entanto, que ainda se espera da mulher que faça uma literatura feminina. "Certos assuntos, certos temas, acredita-se, ainda são coisas de mulher." Ela recorda que, apesar disso, as mulheres efetivamente têm experiências existenciais que os homens não têm. "As mulheres têm filhos, os homens não", basta um exemplo. "A condição marca. Eu sou mulher, tenho um corpo de mulher, experiências de mulher. Vejo o mundo através de meus olhos femininos. Mas só isso."
"Desde que comecei a escrever romances, no início dos anos 80, nunca vi sinais de marginalização", reafirma a escritora gaúcha Lya Luft. Ao contrário, recorda que naquela época havia até um certo glamour cercando a literatura escrita por mulheres. Clarice Lispector acabara de morrer, e os editores, ansiosos, procuravam suas descendentes. "Nunca me senti discriminada, e por isso não posso dizer que o espaço para as mulheres escritoras aumentou", diz. O que houve, Lya admite, foi, ainda numa geração anterior à sua, uma associação injusta entre a literatura escrita pelas mulheres e as chamadas amenidades. "Mas isso é odioso e, já na minha época, não existia mais." Existiria, afinal, a tal literatura feminina? Lya não acredita nisso. "Essa é uma questão que parece guardar o ranço do preconceito", diz. "O que existe é uma cosmovisão feminina, reflexo de sua realidade biopsíquica. Mas ninguém fala em pintura feminina, em música feminina, só na literatura se insiste nesse tema." Sim, a mulher tem uma maneira peculiar de ser, admite. "Mas dizer que por isso a literatura feminina é mais afeita aos sentimentos, eu creio, é abominável."
Bem mais cética, a romancista Nélida Piñon afirma que, na literatura de hoje, "a mulher não é marginal porque já está no sistema, mas é marginal, sim, na acolhida numérica". Além disso, pensa que a aferição estética da literatura escrita por mulheres é sempre diferente. "Ainda há preconceito", assegura. Escritoras vivas costumam ser associadas, à força, a escritoras já falecidas. Por causa disso, acredita que Clarice Lispector tornou-se um falso parâmetro, ao qual quase todas são compulsivamente associadas. "Nunca se vê uma mulher comparada a José Lins do Rego", exemplifica. Ainda assim, a marca de Clarice é reconhecida por grande parte das escritoras contemporâneas. "Ela foi para mim, desde o início, um susto. E continua sendo", diz Adélia Prado. "Quando penso em herança literária, devo citar Clarice Lispector, que me leva a tentar servir o banal com talheres de prata", corrobora a poeta Lucinda Persona, um nome que desponta com brilho especial no cenário literário brasileiro.
"A afirmação vem, mas demora", diz a sempre cética Hilda Hilst. "Estou com 71 anos e só agora a editora Globo comprou os direitos de minha obra". Hilda pensa que a condição feminina ainda é sim um obstáculo. "Quando comecei a escrever, as pessoas achavam meus escritos complicadíssimos, porque das mulheres esperavam-se coisas fáceis", recorda. Como mais uma prova desse desprezo, Nélida Piñon recorda ainda que os homens costumam ler muito menos as mulheres, talvez com a idéia, odiosa, de que literatura feminina se destina apenas às próprias mulheres - como certos sabonetes "para damas".
Que ainda existe um preconceito, também está de acordo a escritora Lygia Fagundes Telles. "A mulher saiu da caverna, do esconderijo, muito recentemente." Apesar de reconhecer o preconceito, Lygia enfatiza que a mulher tem uma percepção mais aguçada que a do homem, e isso se reflete na literatura que faz. "A mulher mente melhor que o homem", diz. "Dissimula melhor, porque foi criada como um bicho escondido." Ocorre-lhe um relato do naturalista francês Saint-Hilaire, que, em viagem ao interior do Brasil durante o século 19, visitou famílias em que às mulheres não era permitido sequer aparecer diante dos visitantes. "Havia buracos nas paredes e era através deles que elas serviam a comida para as visitas", descreve ele. Eram invisíveis, seres perigosos, "se esgueirando na sombra". Daí, Lygia acredita, a mulher ter desenvolvido uma percepção mais aguda.
Ainda assim, a idéia de uma literatura feminina não agrada às mulheres que escrevem. "Eu só aceito essa idéia se disserem que existe, também, uma literatura masculina", estabelece Nélida Piñon. A escritora recorda que a mulher é tão herdeira dos cânones estéticos quanto o homem. "É claro, ela vai adicionar a isso seu próprio olhar. O olhar daquela que está mais próxima dos fatos essenciais da vida: o amor, a morte, o nascimento". Nélida crê que o homem é "muito nômade" em relação aos sentimentos, enquanto a mulher, ao contrário, estende sua tenda e bota casa, como se dizia no passado. "A idéia de literatura feminina é uma bobagem", entende Adélia Prado. A literatura, a seu ver, não é redutível. "É claro, nos livros escritos por mulheres, existe o registro feminino. Mas só." A poeta mato-grossense Dora Ribeiro aponta como essa noção acaba por afetar as próprias escritoras. "Às vezes parece que ainda nos sentimos vivendo e escrevendo num mundo à parte." Recorda, como exemplo, um seminário de que participou recentemente, dedicado ao estudo das "vozes femininas". "O silêncio feminino existiu e resiste em alguns cantões da sociedade. Mas hoje, por comparação aos anos 70 e 80, é mais difícil falar dessa marginalização." Ainda assim, a noção de uma literatura feminina persiste. "O adjetivo não quer desgrudar-se."
A literatura brasileira vive, enfim, uma época particularmente favorável à presença da mulher. Antes, lhe cabiam apenas os papéis sedutores - basta pensar em Jorge Amado com suas inesquecíveis Dona Flora, Teresa Batista, Gabriela e Tieta. Agora, ao se afirmarem como escritoras, elas invertem esse script. Quando era menina, Clarice Lispector julgava que os livros nasciam em árvores. Tomou um susto quando descobriu que eram escritos e imediatamente decidiu: "Eu também quero". Ao transformar o desejo difuso em ação vigorosa, as mulheres passaram a ocupar um lugar destacado no cenário literário do país. Lugar do qual, felizmente, não estão mais dispostas a se afastar.

José Castello é escritor e jornalista

Despertar

A escritora Rachel de Queiroz não tinha nem vinte anos quando resolveu se dedicar a seu primeiro romance, O Quinze, de 1930. Uma congestão pulmonar e a suspeita de tuberculose a obrigaram a levar, por uns tempos, uma vida quase imóvel. Tirou proveito das limitações impostas pela doença para, invertendo o destino, se tornar escritora. Só bons cinco anos depois, quando já vivia em Maceió, Rachel se aproximou do meio literário nordestino e se tornou amiga de Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge de Lima.
Foi o pai, o advogado Durval de Azevedo Fagundes, quem pagou do próprio bolso a edição do primeiro livro de Lygia Fagundes Telles, Porão e sobrado, coletânea de contos datada de 1938. Preparava-se para estudar educação física, e não literatura. A literatura lhe veio como uma peça benevolente pregada pelo destino.
Já Hilda Hilst estudava direito quando publicou seu primeiro livro de contos, O cacto vermelho, em 1949. Tinha uma vida de mocinha da alta sociedade - era conhecida mais por suas poses de maiô à beira da piscina do que por seus escritos. Também não tinha o perfil clássico de escritora, identidade que adotou contrariando o que esperava de si mesma.
Uma doença, um laço de família e um desejo de afirmação social foram fatores dispersos, muito distantes do fazer literário, que levaram grandes escritoras brasileiras a se tornar o que são. Vistas mais como mulheres doces e desejáveis do que como talentos promissores, elas precisaram enfrentar toda a sorte de preconceitos, e freqüentemente enfrentar a si próprias, para chegar a escrever. Mesmo depois de consagradas, as grandes escritoras não escapam dos elos domésticos. É conhecida a atmosfera caseira em que Clarice Lispector escreveu seus romances extraordinários, a pequena máquina portátil acomodada no colo, os filhos a chorar à sua volta. Outro exemplo notório é o da poeta Adélia Prado, que começou a escrever ainda aos dezesseis anos, abalada pela morte da mãe. Tornou-se clichê sua imagem, na casa de família em Divinópolis, atarefada entre crianças, receitas e orações, rascunhando seus poemas em tiras de papel.