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Ficção Inédita
O memorial do esquecimento

Ricardo Gontijo

O Memorial.
Janelas não havia. Fendas milimétricas serviam para oxigenar o ambiente e manter a temperatura no nível ideal. De entrada, apenas uma abertura estreita, por onde passava uma pessoa de cada vez, não muito gorda, nem muito alta. Na medida para ela, ou o seu espectro, visto a esquadrinhar cada reentrância antes da inauguração. Muitos relutaram por isso em comparecer ao ato de estréia, temerosos de que a Marquesa - furtando da alheia memória a sua materialidade - quisesse transformá-lo num culto de confissões e remorsos. Para dirimir resistências, o conselho familiar houve por bem desconhecer a inoportuna aparição. Cuidadosos dos costumes provincianos, mandaram vir o padre da vila vizinha para exorcismar o templo borrifando-lhe água purificada na pia batismal. Durante todo o dia, um domingo, os preparativos ajudaram a pequena comunidade - parentes e agregados - a se distrair do assunto proibido. Com a chegada dos convidados, os íntimos da morta descontraíram-se ao risco de algumas gargalhadas. E fartaram-se às bandejas de drinques e intrigas.
Mal se deram conta de que a tarde desaparecera em lilases e roxos. No ar, recendiam os manacás e magnólias. Ininterrupto, o minueto alado de morcegos e pardais compunha a sonoridade de fundo. A festa transcorria sob louvores. Foi preciso que refulgissem todas as constelações para que a platéia se rendesse ao serôdio momento. Ia dar meia-noite.
Numa longa fila, as pessoas foram convocadas a deixar o jardim e cruzar o postigo escavado na laje. (Muitos não lograram transpor a passagem seletiva.) Vista por dentro, a arquitetura era ainda mais admirável. Como se abrigasse a eternidade. Das frinchas filtrava-se uma luminescência suave e uniforme. Nenhum detalhe destoava da combinação de formas e cores. Os espaços adequados ao uso pretendido. A acústica propagando o som na sua exata limpidez: os músicos da orquestra contratada tocavam inebriados.
(Todo o projeto se inspirara nos princípios da almucábala medieval: se bem-sucedidos, os cálculos para a criação da pedra fundamental elucidariam, como subproduto, a perfeição -- entre a consciência, a emoção e uma lúdica tentação de acolher a desistência).
Assim como se perseguia o ajustamento ideal entre curvas e retas, também deviam se harmonizar sujeito e predicado, flor e espinho, fruto e sabor. Era a busca da inocência primitiva, quem sabe a origem inaugural, com a nudez resgatada pela plenitude da sensualidade. Ao prescindir de normas ou dogmas, doutrinas ou lições, não haveria motivos para a vergonha, o ciúme, a inveja. Destituída, a realidade se converteria em sonho, e desapareceriam os suores noturnos, o pesadelo, os desejos reprimidos. A fome e o frio se reduziriam a referências episódicas de uma história intemporal. E a dor se volatilizaria no instante preciso em que o presente absorvesse por completo a lembrança que identifica criador e criatura.
Ela, a Marquesa, contudo, rompeu essa possibilidade de eternizar o encanto (esquecendo-a), ao reaparecer com o vestido verde que a enterraram, coberta de rosas, e mantendo, quase imperceptível, o sorriso amargo. Ressurgiu deitada sobre uma rocha plana, no centro da cena. Transluzente, de início não fora notada, até incorporar-se à silhueta de uma saudade, como a ressurreição de um camafeu esquecido no fundo de inconfessáveis ingratidões. Por recusar-se refém de tão diáfano sentimento, insistia no esgar de simpatia, desesperada em não afugentar um gesto de benevolência, um simples indício de amor. Mesmo sem uma única palavra. Esforço inútil, porém. Um vento de intolerância infiltrou-se por vãos insuspeitados e enxotou do templo o público atônito. A vida devia recomeçar, com suas tosses, chiados e espirros. De nada adiantava resmungar, praguejar, blasfemar. Soprada de um tempo imemorial, a areia da ampulheta voltou rapidamente a amarelar os livros, a liberar as moscas sobre a metade do caramelo, e a pontuar de delírio a febre de uma súplica: Tenho sede...
Um dos herdeiros capitulou ainda no jardim. Sentou-se no banco de madeira e aguardou o novo amanhecer. Pela sua perspectiva, o que avistava no horizonte podia ser o crepúsculo. A mesma tonalidade de nostalgia. Lembrou-se da última visita: encontrou-a recostada na cama, ausentando-se por sobre os telhados de ardósia, distraída com uma rosa vermelha entre os dedos finos. Não temia ferir-se. E não denunciava aperceber-se do intruso. Serena e distante, convidou-o - sem virar-se para olhá-lo - a partilhar com ela as suas divagações.
- Vou morrer.
- Todos nós vamos.
- Não é isso...
- Perdão.
- Juro que eu pensei que pudesse ser feliz. Levei o maior susto ao descobrir que não era. E que tudo o que tinha na vida não me pertencia. Nem o meu corpo, nem os meus filhos, nem as minhas jóias. Acreditei que poderia vencer as dificuldades com a minha cegueira e a minha surdez. Como fui ingênua...
- Mas, a senhora é uma pessoa muito querida...
- Mentira. E para dizer a verdade, não estou preocupada com isso. Ao menos agora. O que me entristece é a certeza de que vou morrer, entende?
- Acho que sim...
- Não que eu tema a morte ou nutra um grande apego à vida. Nada disso. É por saber que as minhas dores, assim como os meus prazeres, vão acabar numa absurda falta de sentido. Para que tudo isso? Estou tão velha e tão sem respostas...
- Pois eu gosto da vida assim, sem sentido!
- Envelheça para você ver uma coisa. Eu passo aqui os meus fins de tarde, pensando. Às vezes, rola uma lágrima sem que eu chore. Apenas rola, morna. Sinto o seu gosto salgar a boca, e sorrio, triste. Não sei se é a falta do filho que já morreu, lá do outro lado do imenso Oceano, longe e só, como eu, ou se é de mim mesma, saudade antecipada de mim, do que eu deixarei de ser por hipótese, quando morrer. E não demora.
- Não diga bobagem.
- Não é bobagem.

Era. Ela não morreu logo. Passaram-se muitos fins de tarde antes que num deles ela se fosse, calada, sem um suspiro. Fechou os olhos como tantas vezes, estirada no sofá da sala, puxou a almofada para debaixo da cabeça e murmurou para si: Adeus.
As recordações do herdeiro foram interrompidas por uma voz misturada à algaravia sonora dos pássaros. Apurando os sentidos, entendeu que o chamamento não provinha do ar, mas da alma. Convocava ao recomeço, à reconstrução de um novo Memorial, à retomada da possibilidade de acreditar. (E se ao leve toque do passado vibrasse o cristal para sempre?) Contra a desesperança, apelava: o ser criado à imagem e semelhança do seu Criador, bicho racional, inquilino se não exclusivo do Universo, ao menos preferencial, capaz das proezas mais incríveis, simultaneamente doce e cruel, fraco e forte, portador das mais profundas incoerências, não poderia se deixar abater pela ousada interferência de um fantasma. Ainda que inesquecível.
À obra, pois!

Ricardo Gontijo é escritor e autor de Pai morto, vivo
(Record), entre outros livros