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Entrevista
Celso Bastos

O renomado jurista fala sobre a batalha judicial movida pelas
empresas de serviços contra o Sesc e afirma que a obrigação de manter a entidade é norma constitucional

O prof. Celso Bastos é doutor e livre docente em direito constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC. É responsável pela coordenação do programa de pós-graduação em direito constitucional da mesma instituição. Estudou por dois anos na Universidade de Paris. Integra a diretoria da Academia Internacional de Direito e Economia, além de ser diretor geral do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional - IBDC. É procurador aposentado do estado de São Paulo, parecerista e fundador de Celso Bastos Advogados Associados.
Nesta entrevista, aborda um tema palpitante para o Sesc, em seu âmbito nacional, que é o de todas as empresas de serviços continuarem a contribuir para manter o Sesc, como sempre fizeram desde a criação da entidade em 1946. E importante, no fundo, para toda a sociedade, uma vez que o Sesc, como manda a lei, direciona toda a sua receita, oriunda das contribuições das empresas, para obras e serviços em benefício direto dos comerciários, suas famílias e, de modo geral, de toda a população brasileira.





Prof. Celso Bastos, como o senhor sabe, nos últimos tempos o Sesc vem sendo alvo de centenas de ações judiciais, movidas por empresas que se intitulam prestadoras de serviços, ou por suas respectivas representações sindicais, que pretendem ser desobrigadas a recolher as contribuições mensais ao Sesc. O Sesc já tem obtido diversas decisões, ainda não definitivas, contrárias a tais pretensões, na Justiça estadual e na Justiça federal, mas é certo que várias outras decisões, também provisórias, como em liminares, têm-se orientado em sentido oposto, acolhendo-as. O tema, ao menos aparentemente, tornou-se polêmico. Gostaríamos de ouvir V. Exa. a respeito.
Já tive oportunidade de estudar o assunto, com base na Constituição e na legislação ordinária, inclusive a que criou e disciplina o Sesc, analisando com profundidade os argumentos que têm sido desenvolvidos pelas empresas prestadoras de serviços. E estou certo de que elas não têm razão.

O senhor poderia nos explicar os pontos principais dessa questão? Foi o decreto-lei federal 9.853, de 1946, que autorizou a Confederação Nacional do Comércio a criar o Serviço Social do Comércio, o Sesc, e que instituiu a contribuição mensal das empresas. Algo mudou a partir dessa data?
Pelo que se tem verificado, o âmago, o ponto central da tese que algumas prestadoras de serviço defendem atualmente nos tribunais reside na assertiva de que "prestação de serviço não é comércio", portanto que elas não estariam enquadradas nas obrigações legais perante o Sesc, que é uma entidade voltada para o "comércio". Todavia, faz-se necessário esclarecer que, além de deixar de lado todo o sistema legal, principalmente o decreto-lei de 1946 que confere estrutura ao sistema sindical, a premissa contraria os princípios gerais de direito, as verdadeiras noções econômicas e jurídicas de comércio, bem como afronta a própria Constituição federal de 1988.

Mas o que mudou de 1946 para cá?
As mudanças foram no sentido de que as contribuições para o Sesc, instituídas como compulsórias pelo decreto-lei 9.853, de 1946, passaram agora a constar expressamente no texto da Constituição de 1988. Veja, não há dúvida nenhuma de que aquele decreto-lei de 1946, que deu origem ao Sesc - e que instituiu, para sua indispensável receita (porque sem receita financeira a entidade evidentemente não poderia funcionar), a contribuição compulsória das empresas comerciais - continua em pleno vigor. O que se pode dizer que realmente mudou foi que a partir de 1988 aquela obrigação passou a ser norma constitucional.

Como fica a questão inicial, básica, que está no centro dos argumentos das empresas prestadoras de serviços: a prestação de serviços é ou não é atividade comercial ?
Voltemos mesmo àquela assertiva, muito simplista, de que "prestação de serviços não é atividade comercial". É sim. Na verdade, a noção de comércio engloba todas as atividades que envolvam o oferecimento oneroso de produtos ou serviços. Essa definição é evidente por si mesma. O direito comercial moderno segue há muito tempo nessa direção. O mestre Waldemar Ferreira já dizia que o direito comercial, na verdade, passou a ser o direito da empresa. A empresa é que é o verdadeiro critério da comercialidade. Na própria Constituição encontra-se uma noção bastante ampla de comércio, quando, no art. 22, inciso VIII, confere à União competência para "legislar sobre comércio exterior": não se poderia compreeender o dispositivo com uma visão míope do constituinte, que negasse a competência federal para legislar sobre comércio exterior de serviços, interpretando-a apenas como relativa ao comércio de produtos. No mesmo sentido, é o que compreende o art. 237 da Constituição. No direito internacional, igualmente, está bem aclarada a noção de comércio. Em qualquer tratado internacional a menção a comércio é sempre indicativa do manejo tanto de bens como de serviços. O direito internacional é muito rico nessa matéria, e nele se podem encontrar exemplos muito significativos. Portanto, a tese que as empresas prestadoras de serviços estão querendo discutir nos tribunais baseia-se única e exclusivamente numa premissa falsa, não podendo, portanto, prosperar. Prestação de serviços é, sim, comércio. Comércio é a atividade empresarial englobando tanto a venda de produtos como a venda de serviços.

O senhor estava falando que as contribuições para o Sesc seriam, hoje, uma questão de ordem constitucional. Como assim?
É isso mesmo. O decreto-lei 9.853, de 1946, em seu art. 1o, atribuiu à Confederação Nacional do Comércio a incumbência de criar a entidade desde logo denominada Serviço Social do Comércio (Sesc), "com a finalidade de planejar e executar, direta ou indiretamente, medidas que contribuam para o bem-estar social e a melhoria do padrão de vida dos comerciários e de suas famílias, e bem assim para o aperfeiçoamento moral e cívico da coletividade". Em seu art. 3o, instituiu uma contribuição compulsória (um pequeno porcentual sobre o montante da folha de pagamento dos empregados), em favor do Sesc, "para custeio dos seus encargos".

E quem seriam os contribuintes?
Estão descritos no próprio art. 3o: os estabelecimentos comerciais enquadrados nas entidades sindicais subordinadas à Confederação Nacional do Comércio (art. 577 da CLT), e os demais empregadores que possuam empregados segurados no IAPC (o antigo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários).
Mas e a questão constitucional? O que houve de novidade na Constituição de 1988?
Aquelas regras legais (o decreto-lei 9.853/46, o art. 577 da CLT etc.) passaram por diversas e sucessivas Constituições federais, que nunca deixaram de recepcioná-las. A novidade foi que a lei fundamental de 1988 tratou da matéria de maneira explícita, em seu art. 240. Esse art. 240 da Carta Magna ressalva - do disposto no art. 195 quanto às contribuições para a seguridade social - "as atuais contribuições compulsórias dos empregadores sobre as folhas de salários, destinadas às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical". Dentro da inegável característica da Constituição de 1988 (atenta a um fenômeno social contemporâneo), que é a de valorizar as das associações - em seu art. 240, de resto, veio ratificar, consolidar, uma realidade já existente - previu, expressamente, as atuais "contribuições compulsórias dos empregadores, destinadas às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical". Contribuições "atuais" quer dizer aquelas que já existiam na promulgação de 1988, como as devidas ao Sesc e outras entidades sociais. Daí adveio, portanto, uma clara previsão constitucional que admite as contribuições implicadas diretamente no custeio de "entidades privadas de serviço social", como o caso do Sesc. E note que o art. 240 da Constituição não mais fala em "estabelecimentos comerciais" (como estava no art. 3o do decreto-lei de 1946), mas em "empregadores", sem distinções.

E a referência ao sistema sindical?
Esse ponto também é muito importante, ou melhor, fundamental, no assunto. O art. 3o do decreto-lei 9.853, de 1946, ao definir o sujeito passivo da obrigação tributária, referiu-se a "estabelecimentos comerciais enquadrados nas entidades sindicais subordinadas à Confederação Nacional do Comércio" (e há, aí, uma referência expressa ao art. 577 da CLT), e também aos "demais empregadores" cujos empregados estivessem segurados no então existente IAPC. Como se sabe, aquele art. 577 da CLT, a que se referiu o decreto-lei em 1946, estabeleceu que o que chamou de "plano básico do enquadramento sindical" seria o constante do respectivo "quadro" de atividades e profissões. Portanto, a obrigação de contribuir para o Sesc surgia, e surge, principalmente, da vinculação da empresa (que o decreto-lei chamava de "estabelecimento comercial") à Confederação Nacional do Comércio, na conformidade daquele quadro do art. 577 da CLT. A Constituição de 1988, por sua vez, abarca tudo isso, novamente fazendo alusão à vinculação ou enquadramento sindical dos empregadores, para dela surgir a obrigação tributária.

Ou seja, o enquadramento sindical é a base para a identificação do contribuinte para as entidades privadas de serviço social, é isso?
Exatamente. O sistema sindical é organizado sob a forma de uma pirâmide em cujo ápice estão as confederações. E as confederações que se podem considerar como existentes no sistema legal brasileiro são apenas aquelas arroladas taxativamente na CLT (art. 535). Ora, o referido quadro do art. 577, para o necessário enquadramento de cada categoria profissional, subdividiu-se nas diversas confederações, isto é, da Indústria, do Comércio, de Transportes Marítimos, Fluviais e Aéreos, de Transportes Terrestres etc. E olhando-se com cuidado o capítulo da Confederação Nacional do Comércio, vê-se, nos diversos grupos de atividades em que ela por sua vez se subdivide, o enquadramento tanto de empresas dedicadas ao comércio de bens como as relativas ao comércio de serviços, como não podia deixar de ser. E o fato de eventualmente não constar, em algum daqueles grupos, uma ou outra empresa de prestação de serviços, como, por exemplo, a de vigilância, ou a de informática, não significa que estas não estejam inseridas dentro do mesmo quadro confederativo que as demais empresas prestadores de comércio. A enumeração do quadro não é exaustiva de todas as hipóteses, nem poderia ser; serve é de parâmetro para o enquadramento de outras empresas que se amoldem à noção mais ampla de comércio.

Quer dizer, então, que nenhuma empresa prestadora de serviços poderá deixar de contribuir para o Sesc ?
Certo. Nenhuma. E faz-se necessário aqui tecermos mais uma ponderação, também extremamente importante. A contribuição para o Sesc objetiva uma promoção da categoria do comércio em geral (venda de produtos ou serviços), do ponto de vista social: promoção cultural, artística, lazer, práticas desportivas etc. Assim, embora as atividades do Sesc visem primordialmente aos comerciários em geral, a beneficiária dessas atividades é, em última análise, a própria coletividade. Aliás, o decreto-lei 9.853, de 1946, ao instituir o Sesc, deixou claro logo no art. 1o que a entidade viria a ter a finalidade de contribuir para o "bem-estar social", para a melhoria do padrão de vida dos comerciários e suas famílias, e portanto "para o aperfeiçoamento moral e cívico da coletividade". A Constituição prevê uma contribuição profissional para todas as espécies de atividades e profissões, embora possam estas estar ligadas a categorias mais amplas ou abrangentes. O objetivo da Constituição, de qualquer forma, é de que a lei deverá alcançar todas as categorias profissionais existentes. Não haverá motivo para acreditar que apenas algumas profissões suportassem o encargo, em benefício de todas as demais e da própria coletividade em geral. Em outras palavras, pretender que uma determinada categoria, como, por exemplo, a de prestação de serviços, estivesse fora de qualquer enquadramento, a que pretexto fosse, a fim de não ser obrigada à contribuição, seria instituir uma odiosa forma discriminatória, e equivaleria a uma omissão parcial da lei, sem dúvida inconstitucional. Seria um privilégio descabido e, portanto, inconcebível no atual sistema constitucional.

Resumindo, empresas de serviços continuam obrigadas à contribuição ao Sesc?
Exatamente. Parece-me realmente fora de discussão que as empresas prestadoras de serviços - em razão de estarem vinculadas à Confederação Nacional do Comércio no quadro de atividades econômicas a que se refere o art. 577 da CLT - sempre foram e continuam sendo obrigadas a pagar as contribuições ao Sesc, como todas as empresas do comércio em geral.