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Dança
Feita de suor e idéias
A dança contemporânea brasileira fervilha de novos nomes, propostas e estilos. Os movimentos dos artistas buscam outros rumos para o corpo
Falar sobre dança é detectar novas tendências e mapear a produção desta linguagem no país ou mesmo no mundo. Ter acesso à dança, no sentido mais abrangente do termo, diz respeito também ao entendimento do que se passa pela cabeça de um bailarino. Ou melhor, o que se passa pelo corpo dele. A essa altura, o único ponto pacífico nesta história é que o balé clássico tem seu lugar no imaginário do mundo ocidental. A maioria já sabe da existência das sapatilhas de ponta, dos giros espetaculares pelo ar, do Lago dos Cisnes e da imagem cândida daquele coro de ninfas vestidas de branco transpirando leveza. Mas esse "estilo" de dança está nos "municipais" da vida e nas escolas que começam a moldar corpos de seis anos de idade. Paralelamente a tudo isso - na verdade além de tudo isso -, bailarinos vindos das mais diferentes escolas, modernas ou contemporâneas, têm colocado seus físicos a serviço de um processo de criação que procura "uma outra coisa". "Em São Paulo, por exemplo, o que fica claro é que os coreógrafos e bailarinos agem como investigadores de linguagem", analisa a professora Christine Greiner, coordenadora do curso de comunicação e artes do corpo, da PUC/SP. "Existe uma preocupação em não repetir modelos prontos. Para isso, é cada vez mais comum ver coreógrafos pesquisando fora das academias de dança, eles estudam história da arte e até filosofia." A professora explica que, hoje, já não é mais possível identificar estilos nos espetáculos de dança. "Antes, você podia assistir a uma apresentação e detectar se era uma dança moderna de Martha Graham ou a dança/teatro de Pina Bausch. Hoje, percebe-se que os coreógrafos cortaram essas referências já prontas, a ponto de a platéia ficar na dúvida se é dança mesmo, se é uma performance..." explica. Para Christine, a dança contemporânea nos joga num "poço de indagações" que nada tem a ver com falta de diálogo com a obra. "Muito pelo contrário. Essa é uma forma de instigar as pessoas e fazê-las pensar sobre as angústias do mundo contemporâneo e sobre como o corpo se comporta nesse mundo".
De tudo um pouco
Para aqueles que pretendem se iniciar no mundo da dança vale lembrar que o que aparece em cena não apresenta mais uma diferença entre teoria e prática. "As apresentações de dança contemporânea não mostram mais um modelo estético com uma referência clássica", retoma Christine. É o que se pode ver nos espetáculos do Balé da Cidade de São Paulo. Apresentações que trazem esses elementos e propõem indagações. Divinéia, por exemplo, coreografia criada por Jorge Garcia inspirada no livro Estação Carandiru, de Drauzio Varella, narra o dia-a-dia de uma penitenciária. Nesse espetáculo é possível entender essa "função" da dança de refletir as angústias, como apontou a professora Chisistine. Também criada para o Balé da Cidade de São Paulo, a coreografia traz apenas homens que se agridem em cena, gritam e chocam-se uns contra os outros. "Para mim, a dança contemporânea se constitui de tudo o que já foi feito", resume Jorge Garcia. "É claro que há linguagens já consagradas, como o teatro/dança de Pina Bausch ou o trabalho de Martha Graham, mas eu acho que se trata de pegar tudo isso e misturar com a movimentação do dia-a-dia, até mesmo pessoas andando na rua é informação."
Para perceber esses caminhos escolhidos pela pesquisa, os chamados works in progress (trabalhos em andamento) estão sendo cada vez mais apresentados. Neles, o bailarino abre ao público seu processo de criação e apresenta todos os seus exercícios e idéias. Quem tem a oportunidade de assistir a um espetáculo cujo work in progress foi anteriormente mostrado percebe mais um fator importante: não se trata de mostrar o que estava antes inacabado e agora está pronto como resultado de um ensaio. Cada movimento serviu de laboratório para construir o que se convencionou chamar de espetáculo. É mais ou menos como num quadro. Quem decide quando uma pintura está concluída? Então todas as camadas de tinta e formas propostas já não eram expressões do artista? "Esse procedimento de pesquisa depende muito de cada bailarino", acredita Bete Marinho, técnica de programação do Sesc Pinheiros, local que se tornou um pólo de discussão de dança por meio de projetos como o Minutos da Dança e o festival São Paulo Dança Moderno. "O João Andreazzi, por exemplo, nos trouxe experimentalmente um trabalho que depois se transformou num espetáculo", retoma. "Eu o questionei sobre sua pesquisa e ele disse que tudo tinha partido da imagem de seu pai." Nesse trabalho, Andreazzi projetou um slide com uma foto de seu pai e criou seus movimentos a partir dessa imagem. "Essa é uma questão bem particular do bailarino", conclui Bete.
Síntese de linguagens
Outro nome da dança contemporânea atual é Sérgio Rocha, que, além de seus trabalhos solos, é integrante da paulista Cia. Três de Paus. Também cantor e percussionista, Rocha expressa a multidisciplinaridade de sua formação no modo como dança. Conhecido por seu trabalho de percussão corporal, no qual usa o próprio corpo como instrumento, João foi um dos idealizadores do espetáculo Adoniran. Um conjunto de coreografias nas quais Rocha buscou, junto com os outros dois integrantes da Três de Paus, Ricardo Iazzeta e Charles Raszl, a síntese de linguagens para compor o trabalho. "Eu tive a idéia de homenagear Adoniran Barbosa", começa a explicar Rocha. "Depois disso, nós começamos a comprar CDs, ouvir as músicas e a imaginar situações." No espetáculo, os Três de Paus dançavam, evidentemente, ao som do sambista paulistano, mas não somente isso: "Nós fizemos algumas releituras. Eu canto, toco pandeiro, tem música ao vivo e há até cenas onde não há música, apenas movimento em cima da voz". Para construir a coreografia, Rocha explica que os movimentos surgem de todo o tipo de situação. Numa das cenas de Adoniran, na qual os bailarinos dançavam a música Guenta a Mão, João, que narra o infortúnio de um sujeito que perde seu barraco, os dançarinos apareciam nus e literalmente com uma mão na frente e outra atrás. "Nós nos movimentávamos em gestos lentos e contidos, basicamente abaixávamos, levantávamos e andávamos", conclui.
Christine finaliza alertando que perceber essa constante evolução que dispensa padrões e questiona a estética não significa "entender" o espetáculo. "A obra pode falar por si e não precisa de bula. Agora é claro que é sempre muito interessante que se possa usufruir de palestras e bate-papos que ajudam a abrir o interesse do público, ampliando-o e tornando-o mais instigante".
O Sesc e a Dança Projetos e festivais abrem espaço para diversas tendências O Sesc São Paulo contribui para a divulgação da dança e para a sua aproximação com o público por meio de projetos e festivais realizados em todas as suas unidades, na capital e no interior. Eventos como o De Ponta a Ponta, no Sesc Vila Mariana, abrem espaço para as discussões que dizem respeito ao modo como o corpo aparece no mundo contemporâneo, trazendo grandes nomes da cena, como os bailarinos e coreógrafos Denise Namura e Ismael Ivo. O Sesc realiza ainda, em sua unidade em Santos, a Bienal de Dança, na qual ocupa toda a cidade com diversos espetáculos; e organiza uma mostra internaciona que leva apresentações para todas as unidades da instituição. "Projetos como esses ajudam a ampliar o interesse do público", analisa a professora Christine Greiner. |