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Uma arte plural

Em conversa exclusiva com a Revista E, o gravador e professor Evandro Carlos Jardim, que ministra oficina no Sesc Pompéia, falou das origens da gravura, do seu processo de trabalho e do delicado ensino da arte

No meu entender, a gravura sempre foi plural. Ela sempre se manifestou em todas as áreas do conhecimento. Em termos de arte ocidental, se pensarmos na época em que a gravura surge como meio de impressão, verificamos que ela era toda organizada por meio de corporações de trabalho. Existia a corporação dos pintores, dos escultores, dos vidreiros, dos ouvires etc. Os trabalhadores que não tinham sua corporação não entravam nas chamadas cidades que existiam na época - aquelas cidades medievais muradas. Esses excluídos, então, acampavam do lado de fora dos muros. A gravura vem do Oriente e entra nas cidades por meio dos marinheiros, em forma de estampas de cartas de baralho - impressas em retalhos de couro, como os livros. Afinal, como o baralho tem figuras reproduzidas, nada melhor do que ter uma matriz e estampar essas figuras quantas vezes for preciso. Em resumo, a gravura entrou na cidade de uma forma meio clandestina.
O que nos leva a perceber que gravura nasce da forma mais rústica que se possa imaginar. Muitas vezes, ela apareceu tendo sua configuração emprestada de uma outra área de conhecimento. Após esse primeiro momento, o que se vêem são figuras lineares e vazadas por dentro, ou seja, só com contorno. Isso se deu porque quando a gravura sai da carta de jogo e vira um anúncio (a maioria deles de natureza religiosa) percebe-se a necessidade de se adaptar esse novo material à produção da época. O equivalente de alta qualidade no momento era a iluminura - aquele desenho feito com ponta de prata e pintado sobre pergaminho. Passa-se, então, a imprimir linearmente essas estampas e depois a pintá-las à mão. As primeiras xilogravuras eram coloridas assim para chegar mais perto do status de uma iluminura, que não era, de forma alguma, acessível ao grande povo. Ou seja, tratou-se de uma forma de democratização da imagem. Afinal, os livros, até então, ficavam nos mosteiros e castelos.
Hoje, costumamos dizer que os quatro processos básicos de reprodução da imagem na história ocidental são a xilogravura, a gravura em metal, a serigrafia e a litografia. O mais antigo deles é a xilogravura (o corte sobre madeira) com origem na Idade Média, por volta de 1300. Já em 1450, surge um segundo processo que é o da gravura em metal. Tanto a xilogravura como o metal são frutos de corte. No metal, o artista corta, e ao transformar esse corte em matriz de impressão a tinta fica dentro do corte. Na xilografia, corta-se a madeira e, considerando a mesma coisa, a tinta fica sobre o corte. Uma estampa é contemplada pelo relevo e a outra pelo encave. Muito depois aparece a serigrafia: a impressão através de tela vazada. Em seguida, temos a litografia, uma impressão praticamente plana. Dos quatro processos, na verdade só dois são frutos do corte. Temos dois processos que são praticamente planográficos e dois que são o do encave e o do relevo.

O começo do trabalho
Eu faço gravuras desde o final dos anos 1950. O meu trabalho é todo em torno delas. Curisosamente, no meu caso, isso aconteceu desde o princípio. Talvez não com a consciência que eu tenho, hoje, dessa questão. Acho que levei algum tempo para perceber que isso iria fazer parte do meu trabalho. A gravura é, por natureza, múltipla. Ela está ligada à reprodução e à multiplicação da imagem.
Se pensarmos a gravura em termos de origem, verificamos coisas muito interessantes. De certa forma, ela foi a primeira expressão do homem. O termo "gravura" significa cortar uma superfície dura. O termo implica fincar. Isso nos ajuda a pensar a gravura em termos de conceito. É o que vemos naqueles primeiros sinais deixados pelo homem na pré-história. Trata-se de objetos gravados. As mudanças se dão quando transferimos isso para um outro suporte. Se essa transferência for oriunda de uma peça gravada, nós vamos chamar esse resultado de gravura de estampa.
Na história, qual a distância que existe entre gravar e estampar? Nós encontraríamos, no mínimo, um espaço de 10 mil anos. O que nos faz perceber quanto tempo levamos para entender que uma estampa poderia ser produzida através de um corte numa superfície dura. Evidentemente, isso nos faz pensar no que seria uma gravura e no que não seria uma gravura, no que poderia ser uma estampa ou, na verdade, o resultado de um processo de reprodução de imagem. Partindo desse princípio, nós podemos deduzir que ao longo de todo esse tempo, se olharmos nessa direção, temos uma soma extraordinária de experiências. E se considerarmos esse corte originador de todos os outros processos da reprodução da imagem, como de fato ele foi, teremos um corpo adequado para refletirmos sobre todas essas questões. Refletir como um apreciador e, em certos casos, como um operador, que é o caso do gravador. Eu tenho a impressão de que essa conclusões são tiradas da experiência, ou seja, de um convívio diário.
Quando olhamos para uma prova de gravura em metal, por exemplo, o olho funciona como se estivesse olhando para um relevo escultório. A diferença é que a altura é menor. Mas é melhor não nos iludirmos: isso jamais funcionaria visualmente como um desenho, porque é relevo. E como a maioria das pessoas não conhece o processo, é muito normal chegar para um gravador e perguntar para que ter tanto trabalho se ele poderia chegar àquele resultado com nanquim... É uma questão de olhar a arte, desde o princípio, como experiência estética.
Na minha trajetória pessoal, essas questões pesaram bastante. Paralelamente às manifestações poéticas, eu penso que existem, ou ao menos deveriam existir, as alterações poéticas. Tenho a impressão de que, ao falar de artistas e obras de arte, conceitos difíceis, estamos falando de uma disponibilidade individual para a realização por meio desses meios. Acredito que a manifestação poética é fenômeno humano e se manifesta em todos nós. Eu me refiro àquela vontade que temos de realizar alguma coisa.

O ensino da arte
Algumas vezes o ensino nos distancia da arte. Isso porque nos esquecemos de abordar a questão pelos seus princípios e fundamentos. Essa é a importância do corte na gravura. O corte é seu princípio e fundamento. Isso também nos permite operar com mais consciência.
Eu ainda acho que no fundo fazer gravura implique talvez certa disciplina, que eu não diria ser diferente da exigida pelas outras manifestações artísticas. Não falo de uma disciplina imposta, mas sim procurada. É quando nós mesmos nos propomos e entendemos que, se não nos organizarmos, não iremos conseguir realizar o trabalho. Eu acredito que a gravura convide a gente a uma reflexão sobre a natureza das estruturas. Esta gera uma textura que, por sua vez, gera uma resposta na superfície do material. Porém, essa resposta não se mantém somente pelo aspecto externo, ela relata uma trajetória interna. Aí está o grande eixo do entendimento desse fazer. A gravura não é feita para um quadro. Ela foi parar lá praticamente no século 19. Antes disso ela era tratada com um livro e vista na distância da leitura. E isso tem uma razão de ser. É interessante poder passar a mão e senti-la.

Evandro Carlos Jardim ministra
oficina de gravura no Sesc Pompéia