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Comida hi-tech
Em debate os transgênicos: solução ou fonte de problemas?
IMMACULADA LOPEZ
A discussão sobre os alimentos geneticamente modificados está longe de alcançar
consenso. Enquanto para alguns a nova tecnologia é uma certeza de desenvolvimento, para
outros muito ainda deve ser esclarecido sobre os reais impactos na saúde da população,
no meio ambiente de cada país e também na economia.
Hoje, o cultivo comercial e a venda de alimentos transgênicos não são
permitidos no Brasil. Foi um breque imposto pela sociedade civil, que em 1998 contestou
judicialmente a primeira liberação comercial no país de um alimento geneticamente modificado, a
soja Roundup Ready, produzida pela empresa Monsanto. Na verdade, mais do que a tecnologia
em si, foi questionada a forma como o governo tem conduzido sua implantação no país.
Inesperadamente, o Brasil se transformou no maior celeiro mundial de soja e milho não
transgênicos, valorizados nos mercados europeu e asiático. Isso tem ajudado a mudar os
ânimos de quem defendia a nova tecnologia como única opção de sucesso agrícola
nacional. Espera-se, agora, que o assunto seja discutido de forma mais clara e aberta.
No dia 15 de junho de 1998, o governo brasileiro recebeu o primeiro pedido de liberação comercial de um alimento geneticamente modificado – a soja Roundup Ready, produzida por uma das gigantes multinacionais da área de biotecnologia, a Monsanto. Essa nova espécie recebeu o gene de um microorganismo que a torna resistente ao herbicida Roundup, produzido pela própria Monsanto. Como o herbicida, além de matar as plantas daninhas, muitas vezes afeta a própria lavoura, a empresa desenvolveu uma espécie de soja tolerante a seu produto, e dessa forma passa a oferecer ao mercado um kit completo, com a questionável vantagem de um controle mais barato e eficiente da plantação.
A empresa apresentou o pedido de liberação do cultivo à CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia responsável pela avaliação dos transgênicos no país.
Atento à postura do governo, o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) ajuizou uma medida cautelar para impedir que tal autorização fosse concedida e recebeu liminar favorável. Poucos dias depois, entretanto, a CTNBio emitiu parecer aceitando o pedido da Monsanto. O Idec levou a ação judicial adiante, com a alegação de que, antes de emitir seu parecer, a CTNBio deveria definir normas de controle de riscos à saúde e ao meio ambiente; elaborar normas de rotulagem dos produtos; e exigir das empresas a realização do EIA-Rima (estudo e relatório de impacto ambiental). Logo em seguida, o Greenpeace e o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), ligado ao Ministério do Meio Ambiente, ingressaram na ação em apoio ao Idec, e a Monsanto ficou ao lado do governo. Até agora a Justiça decidiu contra a liberação da soja. A medida cautelar já foi confirmada em primeira e segunda instâncias e está aguardando a apreciação do Superior Tribunal de Justiça.
Em paralelo, usando a mesma argumentação, o Idec apresentou uma ação civil pública para impedir a CTNBio de emitir qualquer parecer sobre novos pedidos. Vitoriosa em primeira instância, a ação espera decisão da instância superior. Desde então, não é permitido no país nenhum cultivo comercial, venda ou importação de alimentos transgênicos, que se encontram numa situação de "moratória judicial". Apesar disso, no ano passado teve início outra batalha nos tribunais, quando o governo federal autorizou a importação de espécies transgênicas de milho para tentar compensar a quebra da safra nacional.
Divisão de opiniões
Os alimentos transgênicos são criados em laboratório com a transferência de genes de uma espécie para outra. Eles surgiram na década de 80 com o desenvolvimento da engenharia genética (ver texto abaixo). E, desde então, bilhões de dólares têm sido investidos em pesquisas em todo o mundo, inclusive no Brasil, onde cultivos experimentais continuam permitidos.
Em alguns países, a nova tecnologia já está sendo usada em larga escala comercial. De 1996 a 2000, segundo estimativa do Isaaa (Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicações de Agrobiotecnologia), a área mundial de lavouras geneticamente modificadas passou de 1,7 milhão para 44,2 milhões de hectares. Desse total, 68% encontram-se nos Estados Unidos, 23% na Argentina e 7% no Canadá. As principais lavouras são de soja, milho, algodão e canola, das quais a soja transgênica já corresponde a 26% da safra mundial do produto.
Do lado oposto, vários países – especialmente europeus e asiáticos – ainda põem em dúvida a segurança desses alimentos para a saúde humana e o meio ambiente. Só em 2001, após três anos de moratória oficial, a União Européia aprovou novas regras de rotulagem e monitoramento dos alimentos, rações e remédios transgênicos. Mas acredita-se que eles poderão continuar banidos, pois devem ser aprovados por cada governo, e alguns países, como França, Itália, Dinamarca, Áustria, Luxemburgo e Grécia, já indicaram que poderão exigir testes mais rigorosos antes de liberá-los.
No Brasil, as opiniões também se dividem. Para o governo, o país não pode perder o bonde da história biotecnológica. "Vamos nos manter isolados e alheios às vantagens da nova tecnologia?", questiona a advogada Simone Scholze, assessora do ministro de Ciência e Tecnologia para assuntos de biossegurança, numa postura alinhada com os grandes agricultores e industriais do setor. "Vivemos uma situação absurda, criada de forma emocional e ideológica por um setor contrário ao desenvolvimento científico e tecnológico", diz Ivo Carraro, presidente da Braspov (Associação Brasileira dos Obtentores Vegetais), que reúne empresas de melhoramento genético, como Monsanto, Novartis e Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, vinculada ao Ministério da Agricultura e do Abastecimento), entre outras.
"Não somos contra a tecnologia", responde a advogada Andrea Salazar, coordenadora de campanhas do Idec. "Apenas queremos discutir abertamente o impacto dos transgênicos na saúde, no meio ambiente e na economia." Ela destaca que o Brasil não está sozinho e que este é o momento de se unir à posição mais cautelosa assumida por europeus e asiáticos. Para Mariana Paoli, coordenadora da campanha do Greenpeace no Brasil, "a liberação dos alimentos transgênicos em curto prazo só interessa às próprias empresas de biotecnologia".
Entre os pólos opostos, os cientistas assumem uma postura mais moderada. E, apesar de não concordar em todos os pontos, parecem ao menos dividir três certezas. Primeira: a tecnologia dos transgênicos representa um avanço científico e não deve ser considerada simplesmente boa ou ruim. Segunda: é necessário cautela. Terceira: o governo brasileiro não tem dado conta do recado.
Na opinião do pesquisador Silvio Valle, coordenador do Curso de Biossegurança da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), do Rio de Janeiro, o governo tem demonstrado uma desorganização generalizada em relação à biossegurança (manejo dos riscos à saúde e ao meio ambiente provocados por organismos geneticamente modificados). O que fica claro no fato de o Brasil ainda não ter elaborado a política de biossegurança prevista em lei desde 1995, nem assinado o Protocolo Internacional de Biossegurança aprovado na Convenção da Diversidade Biológica, já assumida pelo país.
A SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) também pede cautela. "Os produtos transgênicos representam um progresso da ciência, mas não queremos que o país escancare as portas antes que sejam feitos os devidos testes", diz o geneticista Aldo Malavasi, diretor executivo da entidade. Ele adverte que, antes da liberação, devem ser realizados estudos de impacto ambiental no Brasil e também exigidos os testes sobre a saúde humana feitos nos países de origem dos produtos.
Riscos
Mas, afinal, o que se sabe sobre os perigos dos transgênicos à saúde e ao meio ambiente?
Na verdade, existem pesquisas e artigos científicos para todos os tipos de dossiê, tanto "contra", como "a favor". De qualquer forma, não se pretende chegar a um veredicto geral sobre todos os alimentos transgênicos. Segundo os especialistas, eles devem ser analisados "caso a caso" e "passo a passo".
Vale esclarecer que não cabe ao governo fazer essas pesquisas. São as empresas que desenvolvem a tecnologia que têm a responsabilidade de investir nessa avaliação – que pode ser realizada por elas mesmas ou por terceiros contratados. O governo deve definir as normas de avaliação, acompanhar os estudos e verificar os resultados, pedindo análises complementares se necessário.
No caso da soja Roundup Ready, a indústria insiste que as evidências são satisfatórias: "Em todos os países que já adotaram plantio comercial de culturas geneticamente modificadas, nunca foram detectados prejuízos ambientais ou problemas de saúde nas pessoas provocados pelo consumo desse tipo de alimento", diz Belmiro Ribeiro, diretor de comunicação da Monsanto no Brasil.
No entanto, alguns pesquisadores questionam os dados oficiais, como o geneticista Rubens Nodari, do Departamento de Fitotecnia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ele garante que o processo de liberação da soja não contém informações científicas apropriadas sobre várias questões, como toxicidade da nova espécie para o ser humano; resultados de ensaios imunológicos; resultados de ensaios com animais tratados com grãos de soja transgênica pulverizada com o herbicida; os efeitos da aplicação do herbicida na planta; os efeitos do cultivo sobre a diversidade biológica; os riscos de transferência horizontal de genes.
Além disso, o pesquisador declara que já há trabalhos científicos que indicam uma forte associação entre a exposição ao herbicida Roundup e o aumento de risco de câncer. "Mesmo assim, o parecer conclusivo da CTNBio diz que não há evidências de risco ambiental ou à saúde humana ou animal", alerta Nodari.
O economista David Hathaway, consultor da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (Aspta), do Rio de Janeiro, destaca a falta de investimento das empresas em geral na avaliação de riscos, e não hesita em afirmar: "Não há hoje nenhum alimento transgênico em condições de segurança para sair da fase experimental".
Também na opinião do Idec e do Greenpeace, ainda não se conhece a real dimensão das conseqüências dos transgênicos. Ambas as entidades divulgam em seus sites na Internet uma longa lista de riscos. Quanto à saúde da população, por exemplo, indicam o possível aumento de reações alérgicas, de resistência a antibióticos, e, como as plantas transgênicas recebem maior quantidade de herbicida, cresce o perigo de ingestão de substâncias tóxicas.
Em relação ao meio ambiente, apontam o risco de criar superpragas, de eliminar espécies, de aumentar a quantidade de resíduos tóxicos lançados na natureza, além do conseqüente desequilíbrio ecológico.
Segundo os especialistas, é essencial fazer estudos de impacto ambiental em cada país, pois o funcionamento do material genético de um vegetal depende das condições em que ele se desenvolve. Ou seja, as pesquisas feitas no país de origem da tecnologia podem apresentar resultados diferentes no Brasil.
O pesquisador Rubens Nodari, da UFSC, explica que os dados científicos podem ser contraditórios, pois a natureza é muito diversificada e complexa. "Por isso, precisamos de tempo para que mais estudos sejam feitos", diz ele. A seu ver, quando uma tecnologia tem grande potencial de uso, mas seus impactos ainda não foram adequadamente avaliados, a medida mais sensata é aplicar o princípio da precaução, segundo o qual não se deve esperar que uma tecnologia cause algum tipo de dano para depois tomar providências. Ao contrário, ela só deve ser liberada comercialmente depois que os riscos forem estudados a fundo. Em outras palavras, mais vale prevenir do que remediar.
Entretanto, há divergências quanto ao grau de precaução necessário. "É impossível chegar ao risco zero", diz a engenheira florestal Ana Cristina Miranda Brasileiro, pesquisadora da Embrapa. Na sua avaliação, o Brasil já conta com normas rígidas e rigorosas o suficiente.
Para o diretor da SBPC, Aldo Malavasi, se o princípio da precaução for seguido de forma exagerada, nenhum produto será liberado. Em sua opinião, são suficientes testes preliminares a médio prazo. E os efeitos a longo e longuíssimo prazo terão de ser monitorados.
Impacto econômico
De toda maneira, não bastaria solucionar o problema em relação à saúde humana e ao equilíbrio ambiental. Também estão em discussão o futuro da economia agrícola e o controle da produção de alimentos no país – e no mundo. E talvez esse seja o verdadeiro epicentro de todo o debate sobre os transgênicos.
O governo tem repetido que a liberação dos transgênicos é estratégica para o país. "No geral, ainda somos uma nação importadora de tecnologia, e esta é a chance de dominarmos algo novo e agregarmos valor a toda nossa cadeia produtiva agrícola", diz o biólogo Genaro Ribeiro de Paiva, membro da CTNBio. "Desde 1996 e 1997, respectivamente, produtores norte-americanos e argentinos desfrutam dos benefícios da soja geneticamente modificada, como facilidade de manejo da lavoura e redução nos custos de cerca de 20%. Cultivada em sistema de plantio direto, essa soja ainda contribui para o controle da erosão do solo", garante Belmiro Ribeiro, da Monsanto.
Um saldo positivo também é indicado pelo professor Joaquim Bento Ferreira Filho, pesquisador da Escola Superior de Agricultura Luís de Queirós, da Universidade de São Paulo (Esalq/USP): "Dados da literatura americana indicam que desde 1996 houve uma redução de custos nas safras de algodão com o uso dos transgênicos". Mas questiona-se se esse ganho vai realmente se traduzir em alimentos mais baratos para o consumidor. "Se o processo de distribuição dos alimentos for oligopolizado, o preço final tende a não diminuir", diz Ferreira Filho. Ele rebate a afirmação de que a nova tecnologia é a solução para a fome mundial – como dizem os mais entusiastas. "Afinal, sabemos que o problema da fome não é a falta de alimentos, mas sua distribuição."
De outro lado, acredita-se que os transgênicos podem ter um impacto negativo no desenvolvimento social. "Se liberados, eles tendem a acelerar e acentuar um processo de dependência e concentração econômica no país, enfraquecendo o pequeno e médio produtor", diz Elenar José Ferreira, coordenador da Confederação das Cooperativas da Reforma Agrária do Brasil. A entidade reúne as cooperativas agrícolas do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra), que desde 1997 investe na produção de sementes agroecológicas e no esclarecimento dos agricultores em relação aos transgênicos. Opositor declarado ao monopólio privado da nova tecnologia, o MST tem provocado polêmica com a destruição simbólica de campos experimentais de transgênicos, como a realizada, em janeiro, ao lado do ativista francês José Bové, em uma empresa da Monsanto na cidade de Não-Me-Toque (RS).
Na ponta inicial da cadeia, a produção mundial de sementes tenderia a se concentrar nas mãos das poderosas empresas de biotecnologia detentoras das patentes das espécies transgênicas.
Na fase de cultivo, a nova tecnologia também beneficiaria especialmente os grandes produtores agrícolas, "pois apenas eles têm capital inicial e produção de alta escala para adotá-la em suas lavouras", explica o economista David Hathaway.
O presidente da Associação Brasileira de Produtores de Soja (Aprosoja), José de Barros França Neto, discorda dessa posição. Ele garante que as sementes transgênicas são uma tecnologia de ponta de fácil acesso e passível de ser utilizada por todos os tipos de produtores, dependendo apenas de como eles se organizarem.
Ana Cristina Miranda Brasileiro, pesquisadora da Embrapa, garante que pelo menos a empresa "busca oferecer novas alternativas a todos os tipos de produtores", dando o exemplo do feijão transgênico, que será útil especialmente a pequenos e médios agricultores.
Novidades da soja
Até agora, os setores agrícolas mais envolvidos no debate são o da soja e o do milho. Inicialmente, ambos defenderam a liberação dos transgênicos como a única opção competitiva para a agricultura nacional. Mas o recente interesse do mercado europeu e asiático por produtos não transgênicos tem movimentado as peças da discussão.
"A mobilização da sociedade civil contra a liberação da soja Roundup Ready acabou transformando o Brasil no maior celeiro de soja não transgênica e aumentando nosso poder de exportação", diz José de Barros França Neto, da Aprosoja.
O Brasil é o segundo produtor mundial de soja (atrás dos EUA e à frente da Argentina) e, dos três, é o único que ainda não produz espécies transgênicas. Com índice de "contaminação" quase zero – a não ser por campos clandestinos no Rio Grande do Sul, contaminados por sementes argentinas –, o país estaria em posição privilegiada.
Segundo David Hathaway, alguns compradores europeus (que ao lado dos asiáticos são os principais importadores de grão, farelo e óleo de soja nacionais) já estão pagando um prêmio de 10% a 15% pela certeza de adquirir um produto não transgênico. "Com isso, os produtores estão percebendo que a fatia do mercado não transgênico não era um delírio dos ambientalistas, e o próprio discurso do governo tem mudado no último ano", diz ele.
No entanto, a diferença de preço ainda não se confirma no mercado em geral, segundo a agrônoma Vania Guimarães, pesquisadora do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada, da Esalq/USP, que acompanha diariamente o mercado de grãos. Mas o Brasil precisaria escolher entre a cultura transgênica e a convencional? "Acredito que será difícil conciliarmos as duas, pois quem vai fiscalizar e controlar para impedir uma contaminação?", indaga David Hathaway.
Com a liberação, quem optar pelo cultivo convencional teria de arcar com um gasto extra para segregar o plantio, o armazenamento, o transporte, como também para certificar seu produto. Fica a pergunta se o mercado comprador – e, no final, o consumidor – estaria disposto a arcar com essa diferença. Para o pesquisador Ferreira Filho, se houver esse mercado, será possível uma produção paralela de transgênicos e convencionais.
"Mas devemos tomar cuidado para que os alimentos não transgênicos não se tornem uma opção diferenciada para os consumidores das classes A e B, como acontece com os produtos orgânicos", alerta Mariana Paoli, do Greenpeace. Na sua opinião, devem ser garantidos alimentos de boa qualidade para toda a população.
Situação política
Diante de tantas dúvidas e conflitos, não são poucos os pesquisadores e militantes sociais que contestam a conduta do governo nos últimos anos. "Justamente como responsável pela regulamentação e fiscalização dos transgênicos, ele deveria ser mais cauteloso. Entretanto, o que observamos é uma pressa injustificável de dar apoio irrestrito aos novos produtos", diz Andrea Salazar, do Idec. Segundo ela, basta navegar pelo site da CTNBio ou folhear a cartilha distribuída ao público para comprovar essa postura. Em junho do ano passado, o governo divulgou uma nota oficial reforçando essa posição. Foi a gota d’água que faltava para o Idec propor ao Legislativo a criação da CPI dos Transgênicos.
No documento de pedido da CPI, o Idec ainda cita o caso da liberação de R$ 285 milhões do Fundo de Investimento do Nordeste (Finor), mais da metade do orçamento previsto para o ano passado, para a construção de uma fábrica da Monsanto na Bahia para produção do herbicida Roundup – o que já é objeto de investigação na CPI do Finor.
No momento, a proposta da nova CPI está parada, "pois, apesar de ter assinaturas suficientes para se instalar, os partidos da base governista dificilmente vão indicar seus representantes", avalia a senadora Marina Silva, do PT. Sem esquecer os outros pedidos de CPI que estão na frente.
Segundo a assessora do ministro de Ciência e Tecnologia, Simone Scholze, o Congresso é soberano e poderá averiguar o que julgar importante. E acrescenta: "O ministro jamais se furtará a dar os devidos esclarecimentos".
Críticas à CTNBio
A CTNBio tem sido constantemente acusada de falta de transparência e de representatividade. "Como sociedade civil, temos muita dificuldade para acompanhar as discussões do órgão, pois as reuniões são fechadas, e os documentos, secretos", garante Andrea Salazar, do Idec.
A assessora do ministro, entretanto, garante que a transparência está totalmente assegurada, pois todas as decisões são publicadas, além de serem organizadas audiências públicas regulares. Em relação à representatividade, ela afirma que todos os setores sociais interessados têm assento garantido.
A CTNBio é composta de 18 membros, nomeados pelo ministro de Ciência e Tecnologia com base numa lista tríplice apresentada pelos diferentes setores. Há oito especialistas de notório saber, um representante do Ministério da Ciência e Tecnologia, um da Saúde, um do Meio Ambiente, um da Educação, um das Relações Exteriores, dois da Agricultura, um do setor empresarial de biotecnologia, um da defesa do consumidor e um da proteção à saúde do trabalhador.
Na opinião do Idec, deveriam ser incorporados representantes das associações do meio ambiente e da agricultura familiar. E, em todos os casos, a indicação final deveria vir da própria entidade. Os cientistas, por exemplo, deveriam ser escolhidos pelas próprias sociedades da área a que pertencem.
Outro problema crônico da CTNBio seria a confusão de atribuições – agravada pela medida provisória 2.137, editada durante o recesso parlamentar do final do ano passado. Segundo Mariana Paoli, do Greenpeace, "essa medida provisória deu margem à interpretação de que a comissão tem a palavra final sobre os pedidos de liberação, submetendo os demais ministérios, como Saúde, Agricultura ou Meio Ambiente, às suas decisões. Isso é um absurdo, pois segundo a lei a CTNBio tem caráter meramente consultivo e assessor".
O maior exemplo de discordância diz respeito ao poder de decisão sobre os estudos ambientais. Já em 1995, a CTNBio se outorgou o direito de dispensar a realização do EIA/Rima, como fez no caso da soja. No entanto, segundo a legislação ambiental do país e a Constituição Federal, são os órgãos fiscalizadores da área de meio ambiente (o Ibama, na esfera federal) que têm o poder de decidir sobre o licenciamento ambiental, que pode ou não incluir o EIA/Rima. Diferentemente de outros estudos, este inclui a avaliação socioeconômica dos pedidos.
"Com a medida provisória de dezembro, ficou estabelecido que cabe à CTNBio identificar a possibilidade de riscos à saúde e ao meio ambiente e requisitar, ou não, os estudos ambientais necessários", diz Simone Scholze, do Ministério da Ciência e Tecnologia. Ela destaca que os vários ministérios estão representados na comissão e que a medida provisória foi assinada por diversos ministros e pelo presidente da República.
No entanto, fontes do Ministério do Meio Ambiente garantem que deve prevalecer o entendimento de que é o Ibama que tem a palavra final sobre a necessidade ou não de licenciamento ambiental (que pode incluir a realização do EIA/Rima) em relação aos transgênicos. Tanto que o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), também vinculado a esse ministério, já montou um grupo de trabalho para definir quando esses estudos são necessários e quais os parâmetros para sua realização.
Trata-se de uma questão-chave, pois dela depende o ritmo das futuras liberações. A Embrapa, por exemplo, já tem várias espécies em testes de campo, quase prontas para uso comercial. Segundo a pesquisadora Ana Cristina Miranda Brasileiro, falta a avaliação do impacto na saúde e no meio ambiente, e isso vai depender do que será exigido pelo governo. Se o EIA/Rima for obrigatório, poderão se passar mais cinco anos até que a liberação seja concedida. De toda maneira, parece que as empresas já estão se preparando. A Embrapa anunciou um projeto especial, que envolve vários centros de pesquisa próprios, com a finalidade de realizar estudos de biossegurança.
Para a Monsanto, a medida provisória 2.137 já esclareceu a situação. "Com sua edição, esperamos poder atender às exigências e plantar a soja Roundup Ready no país já na próxima safra, no segundo semestre deste ano", diz Belmiro Ribeiro, da Monsanto. Na realidade, para o setor privado em geral, nem a competência nem a representatividade da CTNBio são motivo de questionamento.
Rotulagem
Também estão em debate as normas de rotulagem de alimentos e ingredientes geneticamente modificados. Algumas leis foram aprovadas em nível municipal e estadual, mas nada foi definido na esfera federal.
O governo criou, em agosto de 1999, uma comissão interministerial, presidida pelo Ministério da Justiça, para elaborar essas normas. Um ano depois, a proposta final, com sugestões da sociedade, foi encaminhada para apreciação político-jurídica dos ministérios envolvidos, mas ninguém chegou a uma conclusão até agora.
Aparentemente, todos concordam com o direito de informação e de escolha do consumidor em relação aos transgênicos. Isso não significa, entretanto, que essa questão esteja a salvo de polêmicas. Em primeiro lugar, só será possível ter certeza sobre a composição dos alimentos e fazer uma rotulagem segura se houver um controle de toda a cadeia produtiva – da semente ao produto final –, que garanta a origem (transgênica ou não) dos ingredientes usados. E certamente esse controle representa um custo extra. Portanto, o ponto de partida da discussão será definir quem vai arcar com esse custo e, se mais uma vez, ele vai repercutir no bolso do consumidor. Em segundo lugar, falta definir qual é o limite mínimo de ingredientes geneticamente modificados a partir do qual a rotulagem será obrigatória. Na União Européia, fala-se em 1%; o governo brasileiro chegou a mencionar 5%. O terceiro ponto é a forma como essa informação vai aparecer no rótulo e com que destaque.
Proposta de moratória
Tantas dúvidas e contradições têm levado alguns setores a defenderem a idéia de moratória legal, ou seja, a proibição do plantio e comercialização por determinado período. Já correm no Congresso Nacional diferentes propostas, como a da senadora Marina Silva, do PT, que determina a moratória por cinco anos dos alimentos com organismos geneticamente modificados ou derivados em todo o país.
Em alguns estados, essa idéia já se tornou lei. O Pará, por exemplo, decretou moratória a esse tipo de produto por dois anos. O Rio Grande do Sul também se propôs a ser um estado livre de transgênicos. Outras leis estaduais e municipais estão fechando o cerco aos produtos com ingredientes geneticamente modificados, obrigando sua retirada de supermercados ou proibindo seu uso na merenda escolar.
A senadora Marina Silva justifica sua proposta afirmando que "o comando das operações no campo dos transgênicos está a cargo de grandes empresas, cuja única preocupação é ganhar muito dinheiro". Portanto, na sua opinião, será difícil aplicar esquemas realmente sérios e eficazes de rotulagem, avaliação ou controle dos transgênicos.
Defensor da moratória, o pesquisador Rubens Nodari concorda que o Brasil só terá plena segurança em relação aos transgênicos se ganhar tempo para começar do zero: com nova regulamentação e uma nova CTNBio.
Entretanto, não há sinais concretos de que a proposta nacional de moratória avance nos próximos meses, a não ser que haja uma grande mobilização da população, pois é considerada radical até mesmo por entidades mais críticas, como a SBPC. "Vivemos uma situação bastante complexa e preocupante", diz Malavasi. Na sua opinião, o país não deve adiar a solução. "Os setores envolvidos devem discutir e chegar a um acordo o mais rápido possível."
Há 50 anos, os cientistas descobriram a complexa estrutura do DNA (ácido desoxirribonucléico) – material genético dos seres vivos, que define cada uma das características e funções do organismo. Passadas duas décadas dessa descoberta, pesquisadores americanos conseguiram "cortar" e "colar" trechos do DNA, recombinando diferentes seqüências genéticas. Essa técnica ficou conhecida como "tecnologia do DNA recombinante" ou ainda "engenharia genética".
Embora possa também ser chamada de biotecnologia moderna, a rigor o conceito de biotecnologia é mais amplo, pois abrange todos os processos biológicos, incluindo a antiga técnica de fermentação do pão ou do vinho.
Através da engenharia genética, um gene de determinado ser vivo pode ser introduzido no material genético de outro organismo – até mesmo de espécie diferente – e fazer com que este desenvolva uma característica ou função do primeiro. São transferências que não aconteceriam pelos métodos naturais de reprodução.
Abriram-se então infinitas possibilidades, como a de uma bactéria receber um gene humano para começar a produzir insulina ou de um gene de um microorganismo ser introduzido numa semente de soja para que a planta se torne resistente a determinado herbicida. Esses são alguns exemplos mais conhecidos de "organismos geneticamente modificados" (OGMs) ou simplesmente "transgênicos". A lista de produtos desenvolvidos pela indústria já cresceu bastante e inclui espécies de algodão, batata, canola, milho, trigo, mamão, banana e até experimentos com ovelhas, vacas e galinhas.
A partir desses novos organismos, podem ser produzidos medicamentos, fibras, alimentos e rações, que a rigor são denominados "produtos com OGMs ou derivados de OGMs", mas também são chamados apenas de "transgênicos".
Com sua liberação comercial em alguns países, desenvolveu-se o conceito de biossegurança – uma área do conhecimento que busca assegurar a saúde dos seres vivos e do meio ambiente em relação aos riscos associados aos organismos geneticamente modificados.
Em 1995, o Brasil aprovou sua Lei de Biossegurança e constituiu, no mesmo ano, a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia.
Consumidor tem de saber o que come
Na primeira semana de abril, o Idec testou 22 produtos nacionais e quatro importados com ingredientes ou derivados de milho e soja à venda em supermercados brasileiros. O objetivo era verificar se continham transgênicos. O resultado mostrou que, no total, quatro nacionais e os quatro importados tinham em sua composição a soja Roundup Ready.
Em junho de 2000, o Idec e o Greenpeace haviam testado 42 produtos, e 12 foram reprovados. Num segundo teste, no mesmo ano, o Greenpeace avaliou outros 11 alimentos e descobriu que quatro tinham organismos geneticamente modificados. Todos os resultados podem ser checados nos sites das instituições (www.idec.org.br e www.greenpeace.org.br).
"Nosso principal objetivo é informar o consumidor, mas também pressionar as indústrias alimentícias e os distribuidores a se posicionarem", diz Andrea Salazar, coordenadora de campanhas do Idec. Comparando este teste ao realizado em 2000, Andrea comemora a redução dos níveis de "contaminação" nos produtos nacionais.
A cada teste realizado, as autoridades federais e estaduais são acionadas pelas entidades para que providenciem o recolhimento dos lotes reprovados, aumentem a fiscalização e definam com maior urgência as regras de rotulagem para a população não continuar consumindo transgênicos sem saber.
Órgãos municipais e estaduais já decidiram agir, como o Centro de Vigilância Sanitária do Estado de São Paulo, que determinou a retirada dos lotes reprovados no primeiro teste e exigiu um relatório das indústrias sobre a composição dos produtos.
A rigor, diante da proibição da comercialização de transgênicos no país, caberia à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), vinculada ao Ministério da Saúde, fiscalizar a presença desses produtos nos supermercados. Mas nenhuma atitude está sendo tomada. Segundo a assessoria de imprensa da Anvisa, o órgão não pode agir até que estejam definidas as normas de rotulagem.
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