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Debilidades da lei

 

Ameaça: bandidos não temem a lei / Foto: Rubens Spetz/AE

Legislação também é responsável pelo crescimento da violência

IB TEIXEIRA

Em virtude da crise de 1929, o Brasil viu-se estimulado a romper com a velha oligarquia e as formas tradicionais de dominação autoritária. A partir daí nascia uma duradoura aliança entre as camadas populares, os segmentos urbanos mais favorecidos e a chamada burguesia industrial. Ao longo de décadas, nosso país desfrutaria de um dinâmico processo de modernização, acompanhado de notável crescimento econômico impulsionado pela substituição de importações.

Mas, como não há bem que sempre dure, algum tempo após iríamos deparar com o esgotamento das políticas econômicas expansionistas. Em conseqüência da crise econômica e do caos político, o Brasil iria conhecer sucessivos governos militares. Alguns deles tiveram êxito, como o do marechal Castelo Branco, que lançaria as bases de um importante processo nacional de modernização dirigido por ministros do talento de Roberto Campos e Otávio Gouveia de Bulhões. Os governos autoritários subseqüentes, porém, não teriam a mesma sorte.

Além da notória incapacidade de responder aos novos desafios econômicos, deixariam como herança a volta da inflação e, mais tarde, a hiperinflação. Uma ditadura de extrema brutalidade reintroduzia a prática dos mais nefandos métodos de repressão e níveis de torturas só concebidos durante o Estado Novo, sob Getúlio Vargas. Em conseqüência de semelhante conjuntura, o início dos anos 70 iria trazer mais turbulências à vida do país.

Como reação ao autoritarismo militar, os brasileiros conheceriam, em meados dos anos 70, um importante movimento em defesa dos direitos humanos. Por sua vez, como resposta à brutalidade policial, equivocadamente passamos a encarar a segurança pública como um monstro a ser exorcizado. As verbas destinadas à segurança seriam substancialmente reduzidas. Sua infra-estrutura operacional, devidamente sucateada. E a legislação específica, notavelmente liberalizada. Mas logo, com a abertura política, a população começaria a conhecer o preço dos equívocos. Tal fenômeno, ampliado pela fantástica expansão da mídia televisiva, teve uma importante repercussão no crescimento da mais violenta criminalidade.

Surge então um novo tipo de populismo. O autoritarismo dá lugar a uma espécie de laissez-faire, quase um "proibido proibir". Reação à ordem-unida do passado recente, o Brasil se encontraria agora com uma vasta legislação permissiva, coincidente com o início do processo de abertura política.

Na área penal os exemplos são marcantes. Um deles é significativo: a reforma da parte especial do Código de 1940, através da lei 7.209 de 1984, que traz em seu bojo até mesmo uma severa condenação das penas de privação de liberdade (conforme a exposição de motivos do ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, em 9 de maio de 1983).

De fato, segundo ele, a prisão constitui "tratamento penal inadequado e quase sempre pernicioso". Contra a resposta penal básica ao delito, uma prática dominante em todos os regimes democráticos, também eram argüidos os "elevados custos da construção e manutenção dos estabelecimentos penais".

Atrás da filosofia dominante na reforma de 1984, era possível encontrar profunda influência das velhas correntes criminológicas mais radicais: o crime seria um conflito que se instala em razão do sistema de produção capitalista; a superposição dos interesses dos delinqüentes sobre os da população, ou seja, passava a ser mais importante a recuperação do delinqüente do que a punição que deveria admoestá-lo em razão do delito; e prevalecia a corrente criminológica para a qual o sistema punitivo visaria proteger "conceitos e interesses que são próprios da classe dominante".

Uma exposição dessas idéias pode ser encontrada no texto Criminologia, de João Marcello de Araújo Júnior (Editora Forense, 1992). De fato, para a nova criminologia ali exibida, "o direito penal não é igualitário nem protege o bem comum e, também, sua aplicação não é isonômica".

Inspirado nessa concepção, surge a política criminal alternativa, que pugna pelas seguintes medidas: abolição da pena privativa de liberdade, declarada inútil, seja como meio de promover a reintegração social do condenado, seja como instrumento de controle social; orientação da política criminal em duplo sentido para agrupar a criminalidade segundo a classe social de onde provém; enquanto o objetivo final de abolição do sistema penal não for alcançado impõe-se a realização de um largo projeto de descriminalização, despenalização e desjudicialização.

Objeto de festa

Vai nesse sentido a atual campanha pela descriminalização das drogas. O que em qualquer país democrático europeu ou nos Estados Unidos representaria pesada pena de reclusão, no Brasil chega a ser objeto de festa e animado show, como, por exemplo, o lançamento de um videoclipe em que um indivíduo armado de metralhadora e pistola de 9 milímetros, na companhia de crianças também armadas, canta seu rap de exaltação ao bandido-herói, ao tráfico de drogas e ao uso de armas.

Como para a nova criminologia o crime é uma resultante da "dominação de classes", não há lugar para o tratamento severo nem mesmo para o mais cruel homicida ou para a apologia do próprio crime. Tal corrente, perdida no tempo e comprometida com a demagogia, ainda parece inspirada no que dizia um velho pirata: "Me chamam de pirata porque possuo um navio. Se tivesse uma esquadra, seria um conquistador e ganharia uma estátua".

Ante a crescente violência de nossos dias, semelhante visão é desastrosa. E, o que é pior, altamente estimulante à delinqüência de sangue. De fato, acontecimentos recentes mostram a importante influência desse tipo de visão criminológica na evolução de nosso sistema penal. Não deixa de ser sintomático que o projeto de reforma penal enviado pelo governo ao Congresso contenha inúmeros elementos dessa nova criminologia. Ainda agora, a erudita "Revista Literária de Direito" alerta seus leitores para os artigos 12 e 59 do anteprojeto de reforma do Código Penal. Assim, coerente com a idéia de minimizar crimes como seqüestro, estupro ou latrocínio, o projeto incorpora o seguinte dispositivo: "Artigo 12 – As regras gerais deste código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial". Qual o significado disso? Denuncia a prestigiada publicação: o esvaziamento da Lei dos Crimes Hediondos. Ou seja, estupradores e seqüestradores voltariam a ganhar os benefícios da anistia, graça ou indulto, fiança e liberdade provisória. Ou cumprimento da pena em regime semi-aberto, podendo sair às ruas depois de apenas um sexto da pena...

Acrescenta a revista especializada que, conforme o artigo 59, se determina ao juiz que na individualização da pena teria de considerar "as oportunidades sociais a ele (réu) oferecidas". Vale dizer, o reformador do código deseja contemplar mais escusas à ilicitude, ainda que se trate de um crudelíssimo matador.

Assim, com o claro propósito de esvaziar os presídios, surgiu a Lei de Execução Penal (LEP), de 11 de julho de 1984. Coerente com o Código Penal, iria determinar que a sentença privativa de liberdade fosse executada de forma progressiva, quando o preso tivesse cumprido ao menos um sexto da pena. A prática desse dispositivo vem escandalizando o país, que viu recentemente ganhar liberdade um ex-funcionário do Senado, acusado da morte da esposa. Depois de agredi-la a golpes de picareta, foi ao extremo de enterrá-la ainda viva, com a ajuda de comparsas.

Mais direitos que deveres

A LEP oferece mais indicações para que se compreendam as raízes do caos que domina nosso sistema penitenciário. Para começar, ela impõe deveres (em número de dez) ao condenado, mas oferece direitos (15), inclusive à cela individual, com dormitório, aparelho sanitário, lavatório e "área mínima de 6 metros quadrados". Pergunta-se: que trabalhador brasileiro tem direito a essa "área mínima"? Argumenta-se que a lei indica o direito mas o governo não se obriga a cumpri-la. Mas esse direito terá outras implicações nos projetos de construção penitenciária e nos elevadíssimos custos que acarretarão. Nesse caso, os empreiteiros e demais interessados nas verbas públicas serão rigorosos na elaboração dos respectivos projetos. Raríssimas comunidades brasileiras possuem o que as modernas penitenciárias oferecem: campos de esporte, ambulatórios, salas de TV, dependências para encontros íntimos, além das celas de 6 metros quadrados.

Mas o populismo criminológico é capaz de outras façanhas, como assumir o dispositivo que permite ao juiz deixar de decretar a prisão do réu desde que ele seja primário e tenha bons antecedentes. Ante a vastidão de nosso território e a fragilidade dos sistemas estaduais de identificação e do próprio registro civil, é difícil verificar a existência de bons antecedentes ou a condição de primário.

Aliás, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente, menor de l8 anos, ainda que tenha cometido 15 homicídios, ou degolado dois ou três colegas, como acontece na Febem, é considerado primário após completar 21 anos, fato que levou o eminente jurista e professor Aldo Taglialegna a exemplificar: "Matando alguém, mesmo preso em flagrante, apenas por ser primário e ter bons antecedentes, o indivíduo pode conseguir a liberdade provisória, sem pagar fiança e, se quiser, poderá assistir aos funerais da vítima".

Com a lei 9.271/96, também se introduziu no Código de Processo uma nova e ampla porteira para a impunidade. A brecha pode ser encontrada no artigo 366, segundo o qual, se o acusado não comparecer nem constituir advogado, "ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas". Para numerosos juristas, se o assassino não tomar conhecimento do processo, este ficará para as calendas.

Os absurdos se sucedem, como no caso da lei 7.716/89, combinada com o artigo 5º, XLII, da Constituição. Assim, se alguém impedir um negro de comer em restaurante ou de se hospedar em hotel será preso em flagrante e ficará encarcerado, já que se trata de crime inafiançável. Porém, se essa mesma pessoa matar um negro, poderá alcançar a liberdade provisória e apelará solta.

A influência da criminologia radical também pode ser encontrada em outras áreas. De fato, a parte reformada do código em 1984 determina que a pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto ou aberto. Considera-se regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média. Já o regime semi-aberto será cumprido em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar. Finalmente, o cumprimento da pena em regime aberto será feito em casa de albergado ou estabelecimento adequado. Neste último caso, como em geral não existem tais casas, os tribunais expedem ordens de habeas corpus para a concessão de liberdade.

Como mostramos anteriormente, em combinação com o código, o artigo 112 da LEP determina que a pena privativa de liberdade seja executada em forma progressiva, com "a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e seu mérito indicar a progressão". Qual o significado disso?

Exemplo: o condenado a 24 anos de prisão, depois de cumprir quatro em regime fechado, passa a regime semi-aberto e fica subordinado à regra do parágrafo 2º do artigo 35, cuja redação diz: "O trabalho externo é admissível, bem como a freqüência a cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior".

Além disso, o condenado a 24 anos de prisão, cumprido um sexto da pena, alcança o direito da saída temporária, regulada pela LEP: "Artigo 122 – Os condenados que cumprem pena em regime semi-aberto poderão obter autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, nos seguintes casos: I – visita à família; II – freqüência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução de segundo grau ou superior, na comarca do Juízo da Execução; e III – participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social".

Conforme o artigo 124, "a autorização será concedida por prazo não superior a sete dias, podendo ser renovada por mais quatro vezes durante o ano". Dito de outro modo, ainda que restem muitos anos para o cumprimento da pena, o condenado pode circular em liberdade no Brasil, sem vigilância direta, durante 35 dias por ano. Mesmo os presos reincidentes, isto é, os que cometem novo crime depois de a primeira sentença transitar em julgado, recebem o benefício da liberdade por esse período. Daí a existência de tantos reincidentes no prontuário policial.

Legislação leniente

Não deixa de ser curioso observar que, com exceção de Brasil e Colômbia, os demais países da América do Sul possuem um sistema penal estrito. E, mais lamentável, neste momento estamos completamente isolados no continente, já que a Colômbia recentemente viu-se obrigada a reformar sua legislação penal para punir o homicida com a pena de 60 anos de prisão. Na prática, considerando-se a expectativa de vida, é pena de prisão perpétua.

Por que adotamos legislação penal tão leniente? A resposta também poderia estar num dos princípios basilares de nosso direito penal: a presunção da inocência que herdamos da velha Declaração dos Direitos do Homem de 1789. No Brasil, até que uma sentença condenatória irrecorrível declare a culpabilidade, o réu poderia até ser presumidamente inocente. De fato, como declara o artigo 5º, LVII, da Constituição: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Não importa a autenticidade da prova. Poderá apenas receber a chamada pronúncia do juiz. Ante tal princípio, o acusado também não tem o dever de provar sua inocência, cabendo ao acusador determinar a culpabilidade. Havendo dúvida quanto à culpa do réu, ele será absolvido conforme o princípio in dubio pro reo. Em vários desses dispositivos podem ser encontradas inúmeras raízes da violência mais brutal.

Mas não é apenas isso o que torna o Brasil um país que vem deixando de seguir à risca o preceito "não matarás" da lei de Deus. Segundo pesquisa do IBGE, cerca de 67% das pessoas envolvidas em conflitos não apelam à Justiça. E não deixam de ter alguma razão, porque, segundo o Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, entre 1995 e 1999 a Justiça de primeiro grau recebeu 32,2 milhões de novos processos, dos quais apenas 22,5 milhões obtiveram sentença. Ou seja, cerca de 10 milhões ainda esperam julgamento.

Parece óbvio que nossa legislação não guarda a mínima coerência com a brutalidade de nossos dias. A navalha de Madame Satã, famoso malandro que aterrorizava o bairro carioca da Lapa nos anos 40, cedeu lugar aos fuzis AR-15, arma encontrada em qualquer arsenal de traficantes de drogas. O folclórico batedor de carteiras dos anos 30 já não existe, assim como não há mais mineiro que compre um bonde ou algo parecido em nossos dias. Mas nosso leniente Código Penal, de 1940, permanece imutável ou, o que é pior, quando reformado, as emendas podem ficar piores que o soneto.


Tribunal do Júri

Além de antiquado, o processo penal no Brasil oferece amplas alamedas à impunidade. Sobretudo, ao criminoso de sangue. Boa parte do atual código resultou da Carta de 1937, mas a versão atual do CPP (Código Penal e Código de Processo) nasceria em 1941 e teria vigência a partir de 1º de janeiro de 1942. Desde então tem sofrido inovações legislativas que tornaram ainda mais escandalosa a impunidade para os crimes contra a vida.

Um desses marcantes arcaísmos pode ser encontrado no Tribunal do Júri. Integrado por um juiz de direito e 21 jurados, sete dos quais constituem o conselho de sentença, o júri foi considerado no passado um dos mais importantes baluartes da liberdade política e sólida garantia da independência judiciária. Nos termos da Constituição, o juiz natural para os crimes dolosos contra a vida é o júri.

Talvez o mais importante problema desse tribunal esteja no excessivo formalismo que ainda envolve seu processo de decisões. Aberta a sessão, sucedem-se os adiamentos: ausência do promotor, do advogado, do réu, etc. Quando o advogado sente que a situação está contra o réu, ele simplesmente não comparece à sessão.

As coisas se complicam na votação dos quesitos. O professor Fabbrine Mirabete explica: "Um sistema arcaico de formulação de quesitos no julgamento é um dos maiores problemas para a aplicação da lei nos crimes dolosos contra a vida. São os jurados indagados, em geral, em extensos questionários, sobre matérias que muitas vezes nem sequer compreendem perfeitamente. Devem decidir, por exemplo, quando alegada descriminante, se houve excesso doloso ou culposo do agente ou se no caso houve a inexigibilidade de conduta diversa, assuntos que confundem até profissionais do direito".

Para complicar, o artigo 607 do CPP determina a convocação de um novo júri quando a sentença determinar a reclusão por tempo igual ou superior a 20 anos. Desse modo a lei permite que depois de um julgamento perfeito, apoiado em provas indesmentíveis, o réu, autor comprovadamente do crime mais hediondo, anule o julgamento. Isso quer dizer que um caríssimo julgamento que consumiu dias, determinou a instalação de dormitórios, ofereceu refeições, envolveu 21 jurados, juiz, promotor, advogados, serventuários, etc., pode ser anulado por solicitação do criminoso. Certamente haverá novo julgamento cujo resultado, ante a evidência das provas, confirmará o anterior.

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