Postado em
Sigilo violado
A lei complementar 105, proposta pelo governo para instituir a quebra de sigilo bancário por um agente fiscal sem a necessidade de autorização do Judiciário, e a lei complementar 104, que altera o Código Tributário Nacional, foram os temas do debate do Conselho de Estudos Jurídicos (CEJ) da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomércio), presidido por Ives Gandra da Silva Martins, no dia 14 de março de 2001.
IVES GANDRA MARTINS – Hoje vamos discutir duas leis complementares: a 104, que trata da norma antielisão, e a 105, que diz respeito ao sigilo bancário. Ambas alteram a legislação e são inconstitucionais, por isso já foram movidas quatro ações diretas contra elas. Vamos iniciar com a análise da lei 104, em relação à qual tenho várias objeções. Em primeiro lugar, uma lei de autoria desconhecida modifica o Código Tributário Nacional, que foi redigido pelos melhores tributaristas do país na época. Além disso, nenhuma lei pode regulamentar ou explicitar a Constituição, que não está subordinada às leis; elas é que se submetem à Constituição.
Em segundo lugar, o Código Tributário define renda como aquisição de disponibilidade, que é o diferencial entre receita e despesa. Receita pode ser tributada por PIS, Cofins, ICMS, IPI, imposto de importação, imposto de exportação. O que caracteriza o Imposto de Renda explicitado pelo Código Tributário é que a renda é uma aquisição de disponibilidade, ou seja, aquilo que fica disponível. Se eu gastei 100 para uma receita e obtive 200, a minha disponibilidade desse diferencial entre 200 e 100 é 100; é sobre 100 que há uma aquisição real de disponibilidade, sobre a qual pode incidir o IR. O que eles acrescentam à palavra receita desnatura completamente o Imposto de Renda. Pode-se tributar uma não-renda desde que se tenha representado uma receita. O cidadão gastou mais do que poderia para obter aquela receita, e vai ser tributado como se fosse renda.
O artigo 116 da lei 104 acrescenta dispositivo sobre a chamada norma antielisão, em que o Congresso é afastado exclusivamente para que o agente fiscal possa se transformar em legislador, mesmo que o cidadão tenha cumprido a lei. A norma antielisão fere o princípio da estrita legalidade. E aqui eu gostaria de fazer um gancho, para unir os dois dispositivos. Ao tratar do sigilo bancário, a lei 105 não se dirige contra o Congresso Nacional, e sim contra o Poder Judiciário. Havendo indícios evidentes, nunca um juiz se negou a quebrar o sigilo bancário de alguém. Eu vinculo as duas leis complementares porque tanto a privacidade como o sigilo de dados têm de ser garantidos. O que ocorre é que a lei permite a quebra de sigilo bancário por qualquer agente fiscal, de qualquer unidade. O decreto federal publicado, criando limites, pode valer no máximo para a União, mas não para os 5,5 mil municípios.
O argumento fundamental que eles apresentam é que o artigo 145 da Constituição, no parágrafo 1º, declara que a fiscalização tem o direito de fiscalizar, e o que eles estão fazendo é explicitar por lei esse direito. Só que o artigo 145 diz: "Respeitados os direitos individuais". Como é possível isso? Vamos admitir que um fiscal tenha de cumprir o decreto; nada impedirá que ele, através da troca de informações que o artigo 199 permite entre as administrações, chame um fiscal de um município do último fuso horário do Brasil, com mil habitantes, e diga: "O senhor vai pedir a quebra do sigilo bancário diretamente a esta instituição financeira e depois vai me repassar os dados". Ele obtém as informações através de uma outra disposição, de uma outra lei.
Sempre funcionou no país o direito de quebra de sigilo bancário pelo Poder Judiciário, que a concede, quando há indícios, e não protege o arbítrio fiscal, porque sem indícios jamais a Justiça dará essa autorização. Retira-se o elemento fundamental de ponderação, que é o magistrado, e se coloca uma parte, que é o fiscal, para atuar. O ministro Carlos Mário Veloso já negou ao Ministério Público (MP) o direito de quebra de sigilo, porque o MP é parte no processo, e a parte não tem a isenção necessária para poder agir. Ora, quem é mais parte que o próprio agente fiscal, que nem mesmo tem direito institucional para efetuar essa operação?
NEY PRADO – O nosso presidente disse que uma lei complementar não pode ter a competência de modificar uma lei explicitada constitucionalmente. Mas, desde que exista uma lei constitucional que garanta um determinado direito, a lei complementar perde a razão de ser, porque não há necessidade de explicitá-la. É isso?
IVES GANDRA – Não. O que eu digo é o seguinte: muitas vezes o constituinte utilizou essa faculdade, dizendo que o dispositivo dá esse direito nos termos da lei. O que o Supremo já declarou é que o legislador tem de entender o que está no princípio constitucional. Ele pode explicitar, mas não pode acrescentar nem diminuir o que representaria a interpretação conforme a Constituição.
NEY PRADO – Sobre esse assunto, gostaria de fazer algumas considerações. Sabemos que o estatuto constitucional não é meramente jurídico, é também político. Quem acompanhou a tramitação dos trabalhos da última Constituinte, de 1988, sabe que uma boa parte daquilo que se discutiu foi objeto de compromisso político, e, não se podendo explicitar de maneira clara no texto, muita coisa foi remetida para a lei complementar. Como a nossa lei constitucional é casuística e não de princípios como deveria ser, para não torná-la ainda mais casuística e analítica descobriu-se essa fórmula de postergar uma série de assuntos, dando à lei complementar uma amplitude que em qualquer outra Constituição provavelmente ela não teria. Quando temos um caso concreto, como o da lei complementar que visa disciplinar uma matéria, esbarramos nessa preliminar relevante que você levantou: até onde poderá a lei complementar substituir ou inserir na Constituição algo que não esteja explicitado?
IVES GANDRA – É esse exatamente o problema, professor Ney Prado.
EDVALDO BRITO – Na lei 104 tivemos a oportunidade de observar alguns detalhes que nos pareceram inconstitucionais e que são objeto de um livro que publiquei, que segue exatamente a sua análise, professor Gandra. A opinião que vou dar sobre esses dois elementos já foi objeto de apreciação pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo: se a Constituição requer lei complementar, ela se esgota ali. Não pode, portanto, o legislador complementar delegar para mais ninguém.
No caso do artigo 116, parágrafo único, da lei 104, o que me deixa preocupado é a decadência do direito. Desculpem-me, senhores, mas o legislador cometeu um grave erro ao afirmar que "a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos". Foi nesse ponto que ele se equivocou totalmente. Por isso, para mim, essa lei não vai ter aplicação nunca.
Vou encerrar fazendo um breve comentário sobre a lei 105: quando leio o artigo 5º, inciso XII da Constituição, não vejo nem permissão ao Judiciário para entrar na matéria. Ou seja, parece-me que o legislador constituinte fez o seguinte discurso: ninguém, mas ninguém mesmo, viola o sigilo de correspondência, de comunicações telegráficas e de dados. Acredito que até aí ninguém mexe com ninguém. Mas depois o legislador acrescentou: "E das comunicações telefônicas". Nesse caso, por ordem judicial, o sigilo pode ser quebrado nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal.
IVES GANDRA – Sempre defendi essa mesma posição, mas em certos pontos não podemos ter preconceitos aristocráticos em relação às decisões do Supremo. Como ele já decidiu que até o sigilo de dados pode ser quebrado, fui vencido, não convencido, e me curvei, mas só ao Poder Judiciário. No início, porém, defendi exatamente a sua posição, porque a leitura do discurso só permite a quebra das comunicações telefônicas.
FÁTIMA FERNANDES RODRIGUES DE SOUZA – Em prol de facilitar a vida da fiscalização, essas duas leis simplesmente dão de barato direitos fundamentais protegidos pela Constituição, o que é realmente um absurdo. No tocante à quebra do sigilo bancário, acho que a situação fica até muito mais grave quando observamos que, se os bancos e a Fazenda são obrigados ao sigilo, haveria uma transferência de informações – não seria uma quebra de sigilo. Acontece que o governo dividiu a questão que lhe interessava em dois dispositivos para não chamar tanto a atenção. O sigilo fiscal foi muito flexibilizado na nova redação que a lei 104 dá ao artigo 198. Com isso, um fiscal pode fazer uma representação contra o contribuinte, tomar seus dados e divulgar essas informações. No ano passado, logo depois da apresentação das declarações do IR, a imprensa divulgou que os dados das declarações estavam sendo vendidos no Viaduto Santa Ifigênia, no centro da cidade de São Paulo, por um camelô. Está claro que não existe mais confidencialidade. Mas, numa lei, o governo defende perante o Supremo que ela existe, e em outra possibilita a divulgação de informações em circunstâncias absolutamente informais. Para facilitar a fiscalização, está havendo uma intervenção nos direitos fundamentais do contribuinte, e isso, como advogados, não podemos tolerar.
ANTONIO CARLOS RODRIGUES DO AMARAL – Essas leis dariam margem a um verdadeiro curso para discussão dos seus impactos e efeitos. A questão absurda da inserção da mudança de receita no artigo 43 me recordou a alteração que foi feita na Constituição, quando foi inserida a base de cálculo-receita para as contribuições sociais. Para mim é nitidamente inconstitucional a inserção dos parágrafos 1º e 2º no artigo 43, até porque, se para as contribuições sociais a base de cálculo-receita foi inserida no texto constitucional, no caso do Imposto de Renda a Constituição mantém o discurso de renda e proventos de qualquer natureza, o que já incompatibilizaria a amplitude dada pela lei complementar.
Na realidade, a lei 105 estabelece duas hipóteses plenas de quebra de sigilo bancário, uma delas automática, que é um exemplo copiado dos Estados Unidos, em que qualquer operação acima de US$ 10 mil feita no sistema financeiro é automaticamente comunicada ao Tesouro e à Receita Federal. Isso já está vigorando.
Mas há dois aspectos da legislação que me parecem absurdos: um é aquele que envolve todos os municípios, não apenas a União, através da troca de informações entre agentes fiscais. O segundo autoriza a quebra de sigilo pelo agente fiscal da União, dos estados e dos municípios. Os 5,5 mil municípios podem literalmente quebrar o sigilo bancário de qualquer cidadão. E há uma pérola no artigo 3º dessa lei, que diz que o Banco Central, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e as instituições financeiras prestarão informações ordenadas pelo Judiciário, e que essas instituições ficam obrigadas a cumprir as ordens da Justiça, preservado seu caráter sigiloso. Aí já deram uma ordem para o Poder Judiciário.
O que me parece absurdo é o parágrafo 1º, que faz exceção aos servidores públicos. Ou seja, a Receita Federal, os estados e os municípios poderão o tempo todo determinar a quebra do sigilo bancário de qualquer contribuinte. No entanto, se um fiscal ou funcionário público da Receita Federal, dos estados ou dos municípios estiver sendo investigado por crime de corrupção, estará protegido pelo recurso ao Poder Judiciário. Para o servidor público, foi preservado o direito constitucional da privacidade, mas não para o cidadão, já que ele é considerado menor dentro do espectro da nação.
OSCAR DIAS CORRÊA – Confesso que não devia fazer uso da palavra, porque fui o relator da redação final do Código Tributário Nacional, e ao ver agora esses dispositivos me envergonho. A que ponto chegamos! Admito que li, por dever, e constatei que as modificações, em geral, foram para pior. O artigo 198 é risível quando excetua da obrigação a divulgação dos dados. Fala em solicitação de autoridade administrativa no interesse da administração pública, desde que seja comprovada a instauração regular de processo administrativo. Logo adiante diz que não é necessária a instauração prévia do processo. Senhores, tudo aquilo que o bom juiz defere quando requerido é de interesse da Justiça e da nação.
No caso do sigilo bancário, a primeira coisa que fiz foi me dar ao luxo de reler o artigo 38, que é revogado expressamente. Tenho a impressão de que a lei complementar 105 foi feita exclusivamente para dizer no artigo 13: "Revoga o artigo 38 da lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964". Porque o artigo 38 fixou de maneira lapidar – e a prova é que estamos convivendo com ele de 1964 até 2001 – as condições do sigilo. Só se conservou nesse texto o caput do artigo, os outros sete parágrafos foram objeto de distorção e má redação. O que ocorre é a preocupação em re-redigir as leis que interessam à Receita para atender a um único objetivo: arrecadação sempre crescente, que mantém não só o governo, como o próprio arrecadador.
AMÉRICO LACOMBE – Estou de pleno acordo em que essas leis são manifestamente inconstitucionais. O que me choca é a quebra do sigilo sem autorização do Judiciário. Li uma entrevista do presidente da República em que ele afirma que esse assunto é muito sério para ficar na mão de um burocrata qualquer. Então, pergunto: por que não deixar na mão dos juízes, que estavam se saindo muito bem e com bastante sensibilidade para cada caso concreto? A Constituição representa um sistema jurídico fechado, que se abre quando quer, quando diz "nos termos da lei". No que tange aos direitos e garantias individuais, ela também é um sistema fechado, e a lei não pode mudá-la nem interpretá-la como bem entender.
O que é renda, segundo o texto constitucional? É acréscimo patrimonial. Por conseguinte, receita não pode ser renda, nem sinônimo de renda, porque receita não é acréscimo patrimonial. A empresa que tem prejuízo tem receita, mas não tem nenhum acréscimo patrimonial. Então, vamos tributar prejuízo.
IVES GANDRA – Entendo que o ministro Pedro Malan esteja bem-intencionado, mas para esse modelo econômico o importante é obter superávits primários para ter credibilidade externa no FMI. Temos dois Everardos Maciel: o primeiro foi um dos homens mais competentes e democráticos que conheci, que discutia cada projeto de lei com a sociedade. Na época da crise asiática o Brasil ficou sem recursos, depois houve a crise russa e por fim a cambial, em que precisamos de US$ 41 bilhões para poder enfrentar o problema, e o Brasil tinha duas soluções: cortar despesa ou aumentar receita. Na questão de corte de despesas não houve nenhum avanço, ao contrário, nos últimos três ou quatro anos as despesas aumentaram. Então surge o segundo Everardo Maciel, encarregado de fazer uma política de arrecadação. A partir daí os direitos individuais foram para o espaço; hoje temos uma ditadura fiscal imposta pela necessidade de superávits primários.
O quadro que se avizinha pode agradar muito aos banqueiros externos, aos investidores, que podem tirar seu dinheiro a qualquer momento, mas limita consideravelmente o progresso do país feito pelos próprios brasileiros. Estamos na dependência absoluta dos capitais externos, na medida em que eliminamos os empresários nacionais. Não temos mais grandes grupos nacionais, exceto a Gerdau e a Votorantim.
WAGNER MAR – Acho que só poderemos bloquear essas medidas se houver uma grita da sociedade. Por isso quero fazer um apelo a todos aqueles que têm vínculo com entidades de classe, sindicais e profissionais, porque sinto uma apreensão muito grande com a demora na manifestação do Supremo. Não quero que essa aberração jurídica acabe passando, principalmente a elisão fiscal, pois existe um lobby no país para tachar o empresário de sonegador.
IVES GANDRA – Amanhã mesmo vamos apresentar nosso memorial, preparado pela doutora Fátima Fernandes, questionando o direito da Receita Federal de fiscalizar; todos os ministros votaram, e ela analisou cada voto. Quero deixar claro para os ministros que eles estão discutindo a própria autonomia do Judiciário, estão decidindo se vão continuar ou não como defensores da cidadania, isto é, permitindo que o sonegador seja efetivamente fiscalizado pela Receita quando há indícios de sonegação, mas, ao mesmo tempo, eliminando o arbítrio fiscal.
ANTONIO CARLOS – A lei 105 é de sigilo bancário, mas a 104 é muito ampla; para ela também seria importante fazer um memorial.
IVES GANDRA – Vamos enviar um memorial para cada lei.
MARILENE TALARICO MARTINS RODRIGUES – Hoje saiu nos jornais que o sistema de quebra de sigilo pela Receita Federal fica pronto nesta semana, e dá-se a entender que nos próximos dias a lei vai começar a ser aplicada, independentemente de ser ou não examinada pelo Supremo. Segundo alguns comentários, o que se pretende é alargar os poderes da fiscalização de modo a bloquear as contas bancárias para garantir o processo administrativo. Haveria um direito de defesa, mas já com o bloqueio, porque o que interessa ao governo é a garantia em dinheiro, não em bens imóveis.
FERNANDO PASSOS – Eu dividiria em dois tópicos as manifestações que me antecederam. Um é bem pontual: são as análises da doutora Fátima Fernandes, do doutor Antonio Carlos Rodrigues do Amaral e do professor Edvaldo Brito, que analisam questões inconstitucionais minuciosas. Gostaria de me ater a outro tópico, mais genérico, sobre a lei e os objetivos da inconstitucionalidade, que o professor Ney Prado abordou, ao apontar que a Carta política decidiu jogar os problemas não resolvidos à época para a legislação complementar. Na questão do sigilo bancário, porém, a Constituição resolveu o assunto, e agora ele só poderia ser modificado por emenda constitucional. Mas, como disse a professora Marilene, a Receita Federal já tem todos esses dados; a lei complementar 105 foi feita apenas para regularizar a quebra de sigilo já efetuada.
IVES GANDRA – Infelizmente, há uma tendência no mundo a criar um direito flexível, pois o Judiciário é visto como um poder pouco ágil para uma época de grande agilidade. Acredito que essa visão deriva das teorias econômicas de globalização, da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), que pretende tirar apenas dos países subdesenvolvidos o direito de contestar, uma vez que os Estados Unidos não abrem mão do seu direito de proteção não-tarifária, mas querem um sistema em que o Judiciário tenha pouca presença. Estamos numa fase de contestação evidente da Justiça. Creio que são modismos que vamos ter de enfrentar.
DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS – Contam que, no tempo do coronelismo, um fazendeiro estava sentado numa cadeira de balanço, no alpendre da casa-grande, e a seus pés havia um jagunço, tirando lascas de madeira de um pedaço de pau com o canivete, quando ao longe abre-se a porteira e uma pessoa se aproxima. O coronel pergunta: "Maneco, você sabe quem é aquele sujeito que está abrindo a porteira com um lenço vermelho no pescoço?" E ele responde: "Patrão, não sei quem é, mas já estou ficando com raiva dele".
Ultimamente, quando os colegas me telefonam e dizem: "Damásio, tem lei penal na praça", eu respondo: "Não vi, mas já estou ficando com raiva dela". Desde 1990, as leis estão sendo feitas de tal maneira que, depois de estudar 40 anos de direito penal, não consigo entender o que o legislador pretendeu dizer em determinados textos. Então só me resta a cadeira de balanço, até que o Supremo Tribunal Federal fulmine essas leis.
NEY PRADO – Acredito que essa reação a que estamos assistindo no mundo não seja contra o Judiciário, mas contra o direito, que está se tornando arcaico, porque o mundo se globalizou economicamente e continuamos com o direito nacionalizado. Como a economia é ágil e exige soluções prontas, o que está se propondo são soluções como a arbitragem, a mediação, etc. Se atentarmos contra o Judiciário, a rigor estaremos atentando contra a democracia. Nos países democráticos, imagino que ninguém se atreva a isso.
IVES GANDRA – O grande problema é que a globalização está fundamentalmente a serviço dos países desenvolvidos. Outro dia escrevi um artigo analisando a crise com o Canadá, entre a Bombardier e a Embraer. O problema é que a chamada "janela de mercado" permite que toda a ajuda dada pelo governo canadense não seja considerada subsídio pela Organização Mundial do Comércio (OMC), enquanto o Proex é rotulado como subsídio, porque vem do governo. Ocorre que eles criaram cláusulas protetoras para os 29 países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 1979; a OMC é composta de 138 países, mas foram apenas 29 que redigiram as suas regras. Nos segmentos em que os 29 não são competitivos, há protecionismo; naqueles em que são competitivos, eles querem abertura de mercado.
O Brasil já percebeu que não é tão importante entrar para a Alca, pois ficaria à mercê dos Estados Unidos, um país que sozinho tem cinco vezes o PIB de toda a América Latina. O Brasil representa aproximadamente 40% do PIB da América Latina, mas todo o PIB da América Latina equivale a apenas 20% do norte-americano. Na globalização da economia, as nações menos desenvolvidas não têm vez. Isso porque o Grupo dos Oito, que são sete, já que a Rússia não tem muita voz ativa, decide o que o mundo deve praticar em matéria de economia. Por exemplo, não há contrato internacional que possa adotar câmaras de arbitragem de países não desenvolvidos. Em qualquer contrato, elas são necessariamente as dos países desenvolvidos. Então me parece que é preciso haver uma grande reflexão, pois há contradições brutais dentro dessa globalização.
O Primeiro Mundo quer que o dumping ambiental e o social sejam discutidos. Por quê? Eles não preservaram suas florestas e querem que isso prejudique os países emergentes, que não conseguem proteger as florestas para eles. As nações desenvolvidas são poluidoras, pois não quiseram adotar a cana-de-açúcar como combustível, por interesse econômico, e querem discutir a questão florestal, mas não debatem o que não lhes interessa. É o caso da União Européia em relação à agropecuária e dos Estados Unidos e da Europa quanto ao petróleo.
O Brasil está entrando agora na era da internacionalização, e é fundamental que nós, que representamos uma elite, nos aprofundemos nessa reflexão.
![]() |
|