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Parceria duvidosa
O economista Ruben D. Almonacid, argentino radicado no Brasil há 35 anos, nasceu na província de Tucumán, produtora de açúcar, um dos mais sérios pontos de divergência na política comercial entre os dois países. Apesar de especializado em economia americana, com tese desenvolvida nos Estados Unidos, ele não se furta a atender as dezenas de pedidos de palestras e entrevistas que sempre aparecem a qualquer alteração mais sensível no termômetro que mede a instável temperatura da economia do país vizinho. Com a mesma solicitude, comentou para Problemas Brasileiros aspectos do cenário econômico formado a partir da primeira crise do ano na Argentina.
"Visito o país uma vez por mês, sou colega de vários componentes da equipe econômica anterior e da atual, mas não tenho nenhum tipo de inside information em que me apóie para formar opinião sobre o que acontece por lá", diz ele, mantendo a posição de severo crítico, principalmente de Domingo Cavallo, o atual titular da Economia.
Não é por outra razão que, ao considerar o que se pode esperar da economia argentina desta vez, lhe vem à mente um velho provérbio daquele país: El amor de hombre viejo es como el de gallo enano: en saltar y no alcanzar lo pasa todo el año.
"Domingo Cavallo, criador do Programa de Conversibilidade nos anos 90 e, agora, do Plano de Competitividade, não só é inteligente, competente e corajoso, como extremamente objetivo em relação a seus planos, que são politicamente muito claros. Tentou chegar à presidência da República nas eleições mais recentes e continua visando a esse cargo. Por isso, qualquer trampolim lhe serve como plataforma para o grande salto. Uma oportunidade de ouro lhe foi dada por Fernando de la Rúa, que o venceu nas urnas, mas se sentiu forçado a lhe ceder enorme espaço, depois de percorrido apenas pouco mais de um ano de mandato. É natural, portanto, que Cavallo mantenha seu programa, sem considerar a necessidade de nenhuma mudança fundamental na sua lógica", raciocina Almonacid. Ele acrescenta em seguida que está justamente aí o perigo, como quando um hombre viejo se apaixona. Cavallo há décadas se apaixonou por suas idéias, e não vai descansar enquanto não tentar colocá-las todas em prática.
Há dez anos, o Brasil comprava da Argentina pouco mais de 10% de tudo o que esse país exportava (US$ 1,3 bilhão sobre o total de US$ 12 bilhões). No ano passado, o número passou de 25% (US$ 6,8 bilhões sobre US$ 26 bilhões), o Brasil tornou-se o principal cliente do vizinho, e os economistas locais já falam em Brasil-dependência. Desde a criação do Mercosul, em 1991, a soma das exportações argentinas variou dos US$ 12 bilhões anuais para US$ 26 bilhões (116%), enquanto a brasileira passava de US$ 31 bilhões para US$ 55 bilhões (77%), a paraguaia de US$ 1,4 bilhão para US$ 2,4 bilhões (71%) e a uruguaia, de US$ 1,7 bilhão para US$ 2,5 bilhões (47%).
Todos cresceram, mas a Argentina passou a depender fundamentalmente do bloco, e sua crise pode fazer empacar o ritmo de avanço da economia dos parceiros. Esses são alguns dos pontos mais importantes da análise do economista Ruben Almonacid sobre o cenário em que aquele país e, por extensão, o Brasil vivem, e seus principais problemas.
"La décadence", como diz o tango
O argentino está cansado de seus problemas, diz Almonacid. "A mentalidade do povo sempre foi de drama, de pessimismo, de teimosia. Mas, neste caso, acho que excedemos todos os limites do razoável. O pior é que a trajetória econômica não parece ter nenhuma perspectiva de melhora. A espera é absolutamente improdutiva, porque não há nada que nos faça prever alguma mudança para melhor. As crises políticas vão se suceder, autoridades vão ser substituídas, crises externas se tornarão mais ou menos intensas, corridas especulativas acontecerão de tempos em tempos. Mas não há futuro para uma economia que não aprendeu a lição da história.
"O governo argentino vem falhando por não levar devidamente em consideração como funciona a dinâmica da economia. Isso fez com que o país perdesse competitividade, gerando elevado desemprego, queda da atividade econômica, maiores déficits fiscais e externos e aumento do endividamento externo, com transferência de ativos para mãos estrangeiras de modo incompatível com um equilíbrio sustentável. A insistência em manter a paridade a todo custo e freqüentes decisões que conflitam com o ajuste necessário fizeram de um problema de dificílima solução em condições normais um problema sem perspectivas de solução.
"O governo De la Rúa não parece disposto a assumir os riscos políticos implícitos na tentativa de mudar essa trajetória. Não fazer nada significa condenar o país a uma longa e triste agonia. O resultado serão mais evidências do que já vimos até agora: la décadence", diz Almonacid. Os números confirmam: em 1990, o PIB argentino recuou 0,2%. No ano seguinte cresceu 10,6%, marcando o início da era de ouro de Cavallo e da paridade cambial, fadada a terminar na crise que levou o PIB a crescimento zero no ano passado.
Por muito tempo, desde os anos 30, a Argentina esteve à frente de todo o continente: "Era uma economia muito rica, com padrão de educação e saúde invejável, parque industrial moderno, mão-de-obra altamente qualificada, infra-estrutura e marco institucional de Primeiro Mundo. Seu nível de capitalização e seu estoque de capital físico estavam entre os mais avançados".
A economia cresceu com a participação do capital inglês, mas Almonacid estabelece profundas diferenças entre os dois países: "A Argentina não é a Inglaterra dos anos 20, pois não tem as instituições que essa nação possuía, nem o poder econômico, nem uma moeda forte, nem o domínio do comércio mundial de que os ingleses então desfrutavam. No entanto, a Argentina está repetindo qualitativa e quantitativamente, depois de mais de 70 anos, os erros que levaram a Inglaterra a perder tanto terreno no âmbito da economia mundial".
"Cuesta abajo"
"Não há dúvida de que, apesar de suas terras extraordinárias, de seu clima favorável, de sua população europeizada e de todas as outras vantagens aparentes, a Argentina continuará, como diz o tango, cuesta abajo, se não promover uma mudança radical de filosofia e passar a usar os instrumentos conforme nos ensina a boa teoria econômica. O governo Menem fez mudanças importantes no marco institucional, mas não resolveu o problema principal, que era devolver competitividade à economia."
O sucesso inicial do Programa de Conversibilidade, editado por Cavallo em 1991, ofuscou horizontes e retardou o necessário lançamento de um programa de competitividade, que o mesmo ministro anunciou, recentemente, quem sabe tarde demais. Para Almonacid, "Cavallo não pode errar de novo, apesar de mostrar-se muito atento para impedir tudo o que possa denegrir seu plano e sua imagem. Mas esse também é o grande perigo: não se pode correr o risco de insistir no equívoco e deixar passar, mais uma vez, o momento de criar as condições para que os agentes econômicos possam funcionar.
"A Argentina é um país altamente endividado, e isso abre espaço para crises especulativas, gera incertezas nos mercados, torna a economia vulnerável e a política econômica muito dependente do humor da comunidade internacional. O país já paga juros externos extremamente elevados, está descapitalizado, sua indústria foi praticamente desmantelada e o setor agropecuário, que poderia ser uma fonte de vantagens comparativas, não tem os incentivos adequados. E tudo se complica ainda mais quando o governo dá sinais freqüentes de que não tem uma estratégia sustentável e compatível com o restabelecimento do equilíbrio."
Irmandade, nem forçada
O movimento alavancado pelo Mercosul, que ajudou a oxigenar a economia argentina nos últimos anos, também não é sustentável, na opinião de Almonacid. "Cansei de falar e escrever, alertando para os erros de consistência e de conceito cometidos em nome da formação do Mercosul. Os governos das duas principais economias envolvidas parecem mais preocupados com a sustentação de suas próprias idéias e muito pouco com a observação dos fatos que ocorrem desde a criação do bloco e a correção dos mecanismos em curso. Para saber se esses mecanismos estão corretos, basta observar o que fez e faz a União Européia, que há décadas vem trabalhando seriamente na construção de marcos institucionais importantes e que, mesmo assim, estão em constante revisão, ajuste, correção.
"O Mercosul nasceu falido, porque a lógica de um bloco comercial está fundada no conceito de unir mercados para criar comércio. O que tem ocorrido, até aqui, é principalmente desvio de comércio. Mecanismos artificiais provocam esse desvio, que num primeiro momento amplia o volume de negócios, mas no médio prazo até reduz as receitas nacionais."
Almonacid vê um paralelo dramático entre o Programa de Conversibilidade e o Plano Real. Os dois começaram, diz ele, com uma boa justificativa, lavrando desde logo o formidável tento de quebrar a inflação e mesmo a hiperinflação. O problema veio logo depois, quando se ignorou o rumo que os bons manuais de economia ensinam. Perdeu-se de vista a busca de competitividade, no plano nacional, e, no âmbito do Mercosul, não se levaram a sério necessidades como a de amarrar as moedas a um padrão internacional que permitisse avançar. Pior, diz ainda, tem sido nem pensar em montar um marco institucional mais forte, como o europeu.
Por isso, para o economista, não passa de ficção falar em harmonização do bloco ou em irmandade de países. Não se criou, tampouco, uma forte corrente de comércio entre eles, que, entretanto, têm lucrado com os benefícios imediatos do desvio de comércio gerado. No ano passado, o Brasil exportou para a Argentina US$ 6,2 bilhões (no anterior, US$ 5,4 bilhões) em automóveis, motores e autopeças, aparelhos de telefonia, máquinas e equipamentos, calçados, papel e frango. De seu lado, a Argentina embarcou para o Brasil US$ 6,8 bilhões em petróleo, nafta e óleos combustíveis, trigo, milho e leite, automóveis e veículos de carga. Em 1999, o faturamento fora de US$ 5,8 bilhões. Na lista de principais países importadores do Brasil, a Argentina está em segundo lugar, com 11% do mercado, depois dos Estados Unidos (24%) e antes da Holanda, a mais importante porta de entrada de produtos brasileiros na Europa (5%).
Problema de continuidade
"Quando foram tomadas no Brasil duas medidas essenciais para a mudança do rumo da economia – a desvalorização do real e a redução dos juros reais –, a economia recuperou seu dinamismo, a atividade e o nível de emprego melhoraram, e a inflação não voltou, como se chegou a temer. Mas continuou-se pecando pelo exagerado otimismo. Houve, de fato, uma evolução significativa, mas sua continuidade exige medidas que dêem sustentação aos resultados obtidos, sob pena de o êxito inicial se transformar em novos e maiores desequilíbrios. O ponto fundamental é que, a menos que se tomem medidas para melhorar a eficiência produtiva (elevação da oferta agregada), a onda de crescimento da demanda vai, mais dia menos dia, gerar aumento da inflação."
Até o final do primeiro trimestre, o quadro dominante era de crescimento econômico superior a 4% ao ano, com boa evolução das exportações – embora o saldo continuasse negativo por causa da expansão das importações –, queda significativa dos juros domésticos, aumento do consumo em geral e da produção do setor rural, expectativas de aportes maciços de investimentos estrangeiros, criação de uma quantidade importante de novos empregos. "Esse quadro seria o início de uma nova trajetória de elevado crescimento para a economia brasileira e, o que é mais importante, tudo isso com estabilidade dos preços. Mas as medidas tomadas não foram suficientes e, se não se criar espaço para um aumento da oferta agregada, o crescimento da demanda levará, necessariamente, a uma aceleração dos preços. Quando se sai de um longo período de estabilidade de preços e de baixo ritmo de produção, como na situação atual, a tendência é haver uma maior expansão econômica e menor crescimento dos preços, mas, tão logo os agentes econômicos consigam definir o quadro que está sendo criado, irão modificar a proporção entre o ritmo de crescimento da atividade econômica e o dos preços – e, no limite, apenas os preços subirão. Nesse processo, estaremos consumindo um ativo muito valioso e que nos foi muito custoso conseguir: credibilidade na política econômica."
Lição de casa
Para conseguir o necessário aumento de oferta agregada, que de fato permita ao Brasil a expansão duradoura e a retomada do crescimento econômico, Almonacid indica cinco pontos a atacar no curto prazo.
Primeiro: "Devem ser tomadas medidas para reduzir a dependência dos capitais externos. O déficit em transações correntes ainda se encontra em níveis superiores a 3,5% do PIB, incompatíveis com um endividamento sadio, ou seja, o que a economia pode restituir no longo prazo. Se a situação atual permanecer, mais dia menos dia teremos outra crise externa e a conseqüente necessidade de ajustes na taxa de câmbio. O elevado déficit em transações correntes vem da insuficiente competitividade externa, que pode ser melhorada com novos ajustes do câmbio (o que não é recomendável) ou com o aprimoramento da eficiência geral da economia".
Segundo: "O sistema tributário brasileiro deve ter como meta arrecadar o montante de recursos necessário à sustentação da máquina do governo, com o mínimo possível de custo e distorções alocativas. Não é o que sucede. Há uma quantidade exagerada de impostos, que exigem o acompanhamento e o pagamento por parte dos contribuintes e o controle e a fiscalização por parte do governo. É provável que muitos deles tenham contribuição líquida (diferença entre o que se arrecada e o que custa arrecadar e fiscalizar tais impostos) nula ou até negativa, mas com um custo enorme para o contribuinte. Essa parafernália de impostos dificulta os controles e se presta, também, a que se mantenham níveis elevados de corrupção. Racionalizar a arrecadação e o gasto são pré-requisitos essenciais para um Estado moderno, compatível com uma economia globalizada. Por isso a reforma tributária é urgente".
Terceiro: "A legislação trabalhista e a forma como funciona a Justiça do Trabalho ajudam a reduzir a eficiência da economia, piorar a distribuição de renda e aumentar a miséria e a violência. Essa legislação apresenta os mesmos defeitos do sistema tributário: muitas contribuições e muitos benefícios, cuja administração e fiscalização são custosas e difíceis. Muitos deles, mais que contribuir para o bem-estar do trabalhador, criam atritos e reduzem os incentivos para a contratação de mão-de-obra, agravando o desemprego".
Quarto: "A previdência social, com seus sistemas de aposentadoria e de saúde pública, precisa de uma urgente reforma para eliminar a ineficiência, os desperdícios e a corrupção implícitos e para evitar elevados déficits públicos e a falência do sistema no médio e longo prazos".
Quinto: "A forma como a legislação ambiental tem sido implementada é altamente custosa e prejudicial ao correto manejo dos recursos não-renováveis e à compatibilização da preservação ambiental com o desenvolvimento econômico e o bem-estar da população. Existem exageros que dão origem a um exército de pessoas dispostas a ‘resolver’ os problemas criados pela legislação ambiental, mas com um enorme custo e a geração de grande incerteza".
O que fazer?
"Entre as medidas recomendadas, algumas das quais são essenciais para dar continuidade ao processo de recuperação econômica, estão: melhora na competitividade externa para baixar o déficit em transações correntes a níveis financiáveis no longo prazo, ou seja, algo em torno de 2% do PIB; reforma fiscal que ponha um pouco de ordem e racionalidade no processo de arrecadação dos recursos públicos; reforma das leis e da Justiça do Trabalho, tal que devolva ao mercado as condições de alocar eficientemente uma oferta de mão-de-obra abundante e tecnicamente qualificada; uma reforma do sistema de previdência que modifique o uso dos recursos de aposentadoria e de saúde pública; reforma da administração de Justiça que melhore as garantias do direito de propriedade, facilite a execução para o cumprimento dos contratos e reduza a impunidade e o tempo para a conclusão dos processos judiciais; reforma que dê maior racionalidade à prática do direito ambiental, de forma a compatibilizar a proteção do meio ambiente com o desenvolvimento econômico e a melhoria das condições das classes sociais mais carentes."
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