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Frutos da terra
Quando ouvimos falar de assentamento rural, a imagem que geralmente nos vem à cabeça é de um lugar rústico, de difícil acesso, com abrigos para pessoas dispostas a enfrentar um novo estilo de vida, em meio à mata. Por essa razão, é uma surpresa encontrar uma cidade consolidada, dotada de regras e formas de organização específicas, quando se adentra o assentamento da Fazenda Pirituba. Localizada a 20 minutos da cidade de Itapeva, no interior de São Paulo, próximo à divisa com o estado do Paraná, a fazenda, que ocupa 17,5 mil hectares, abriga atualmente 350 famílias, distribuídas em seis áreas, denominadas agrovilas.
Formadas por construções de alvenaria, com grandes varandas, antenas parabólicas e todos os aparatos de uma casa de "cidade grande", as agrovilas são cortadas por vielas de chão batido por onde trafegam pessoas e veículos, principalmente tratores, bicicletas e, às vezes, carros. A diferença entre as diversas agrovilas é o tempo de existência. A mais antiga, de número 1, tem 16 anos e é a que dispõe de melhor infra-estrutura, com rede de energia elétrica, posto de saúde, escola municipal, igreja, creche e duas cooperativas. A mais recente, de número 6, existe há seis anos, ainda não conta com energia elétrica e seu sistema sanitário é de fossa. Mas possui uma cooperativa, a Chico Mendes, que desenvolve, principalmente, a apicultura.
Joana Mariano Diniz tem 27 anos. Aos 7, seus pais decidiram viver no acampamento à beira da estrada que cerca o assentamento, onde outras famílias esperavam pela doação das terras da Fazenda Pirituba, na época pertencentes ao estado. "Meus pais trabalhavam como bóias-frias em Itaberá (SP). Eu me lembro de que às vezes não tínhamos o que comer. Eles souberam que a fazenda poderia ser doada e viram nisso a possibilidade de uma vida melhor, caso conseguissem a terra", conta ela. Após quatro anos vivendo em barracas e passando por sucessivos despejos, eles obtiveram um lote. Hoje, Joana mora na área 4, com quatro filhos, todos estudantes, e trabalha na fábrica de lingüiças da Copadec, a cooperativa de sua agrovila.
A sigla Copadec significa Cooperativa de Produção Agropecuária Derli Cardoso. Há seis anos, a antiga Associação dos Pequenos Produtores do Projeto de Assentamento tornou-se cooperativa e hoje permite que 16 famílias da área tenham seu sustento garantido. No total, são 21 pessoas que se beneficiam do sistema cooperativo, realizando diversas atividades e ganhando um valor fixo por mês, pago em vales – que lhes dá o direito de fazer as compras necessárias na mercearia da área, a preço de custo. Quando é preciso adquirir algo fora do assentamento, os vales podem ser trocados por dinheiro. Já a partilha dos lucros é feita durante o período de entressafra.
Mas quem foi Derli Cardoso? Segundo Carlos Alberto Souza, secretário da Copadec, era um menino de 6 anos de idade que há 11 anos morreu atropelado por um carro que passava em frente ao acampamento. "É uma homenagem. Para a gente não se esquecer", diz ele.
A distribuição da terra também marcou definitivamente a história desse assentado. "Eu vivia com minha mãe e quatro irmãos em São Mateus, São Paulo. Ganhamos uma casa através do Movimento dos Sem-Teto, mas não tínhamos o suficiente para viver, não havia emprego para todos nós. Minha mãe, que era mais politizada, soube da existência do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e quis vir para o acampamento. Eu e meus irmãos não queríamos. A gente preferia ficar na cidade, com tênis e roupa boa. Mas não resistimos e acabamos acompanhando nossa mãe. Ficamos acampados por dois anos." Hoje, Souza, além de secretário da Copadec, faz o controle interno dos setores que constituem a cooperativa. "Se tivesse ficado em São Paulo, eu estaria no cemitério ou no Carandiru. Foi o que aconteceu com os meus amigos da época."
O novo cotidiano
As experiências traumáticas pelas quais as famílias hoje assentadas passaram – como o conflito, a ocupação e a constante briga pela terra – ficam atualmente menos evidentes no dia-a-dia desses trabalhadores rurais. Das lutas, restou apenas o passado comum, que os une, pois a sobrevivência já está garantida pelo pedaço de terra que cada um deles possui. "A época do acampamento é um momento muito difícil. Depois que acaba, começamos a ver a vida com outros olhos. Aquela é uma fase de formação de família, de nascimento de uma ideologia. Quando acampado, percebi que sozinho eu não era ninguém, não poderia chegar a lugar nenhum", conclui Souza.
É claro que o dia-a-dia desses assentados está fundamentado nas relações de trabalho próprias do ambiente rural. Lá, o agricultor se levanta às cinco horas da manhã para fertilizar a terra, plantar ou colher. Às dez e meia, ele almoça. Às quatro e meia da tarde já é hora de voltar para casa para jantar e se preparar para a maratona do dia seguinte.
Para o assentado Natalino Bueno dos Santos, 37 anos, o período de acampamento faz com que as pessoas reconheçam que todos dependem uns dos outros. "Temos esse clima de solidariedade no assentamento porque passamos pela mesma situação de dor e angústia no acampamento. Em outras fazendas, em que os moradores não precisaram vivenciar tudo aquilo, a união é bem menor."
Pode parecer estranho o fato de Natalino pertencer a uma das famílias do assentamento que não faz parte de cooperativa. Mas ele, que é pai de quatro crianças, decidiu, depois de dois anos como cooperado, que poderia viver melhor se partisse para um trabalho exercido por um grupo de famílias. "Não posso negar que o trabalho coletivo, dentro da cooperativa, foi muito importante, mas surgiam muitas discussões entre os cooperados. Por isso, uni-me a outras quatro famílias para trabalharmos juntos." Nai, como é conhecido por seus vizinhos, diz achar importante qualquer forma de agrupamento, seja ele totalmente coletivo ou semicoletivo, como aquele em que atua hoje.
Os assentados acabaram se acostumando com as diversas escolhas possíveis de trabalho no campo, mas Nai afirma que, apesar de as pessoas se darem bem, independentemente da forma como desempenham o trabalho agrícola, sempre existirão diferenças. "É como se tivéssemos religiões diferentes. Um procura respeitar o outro, mas não falamos a mesma língua."
A antropóloga Maria Helena Miranda, doutoranda da Universidade de São Paulo que desenvolve sua tese em um assentamento rural, salienta o fato de o sistema cooperativo de produção não ter sido criado no ambiente rural, mas na cidade. "O trabalhador rural, de modo geral, não quer ser mandado. Deseja um pedaço de terra para dele fazer o que quiser, para trabalhar quando e como quiser", conta ela. "Eu acreditava que o cooperativismo era a melhor forma de associação, mas vi que, por ser estruturado sob rígidas regras de horário e de conduta, acaba sendo desvalorizado." Para a antropóloga, a palavra de ordem de um assentamento é liberdade, e as cooperativas acabam barrando esse anseio, tese comprovada pelo número de famílias que são associadas à cooperativa na agrovila 4 –representam apenas cerca de 30% do total.
"Antigamente, tudo era comunitário nos assentamentos: o refeitório, a creche... Hoje, me parece que essa concepção extremada de socializar tudo está sendo deixada de lado", completa Maria Helena. Para obter êxito no ambiente rural, ela acredita que o cooperativismo precisa passar a fazer parte da cultura dos camponeses, e uma das soluções que sugere é que a cooperativa organize apenas o processo final da produção e que o restante da atividade fique a cargo de cada família.
Anseios da juventude
A oposição entre os ambientes urbano e rural não se reflete somente nos possíveis sistemas de produção. Não é difícil notar que a cidade exerce um enorme fascínio sobre alguns jovens do assentamento, que vêem a moçada da cidade em melhores condições de vida. "Eles têm um dia-a-dia difícil e ficam com a pele enrugada pelo trabalho puxado na lavoura", analisa Maria Helena. Segundo ela, tudo isso acarreta um problema de baixa auto-estima, pois há uma supervalorização da cidade e das facilidades que por lá existem. Ao mesmo tempo, o trabalhador rural é, em geral, menosprezado. "Para recuperar a auto-estima desses jovens, é preciso lhes oferecer esporte, cultura e lazer, principalmente", diz ela.
Valdir Paulo é um assentado de 18 anos que passou seus primeiros dois anos de vida como acampado e até hoje vive numa das agrovilas da Fazenda Pirituba. Parou de estudar na oitava série, porque precisava ajudar sua família no trabalho, e diz que tem vontade de voltar aos estudos, mas que seu grande desejo é um dia tornar-se sócio da cooperativa. Para ele, a vida do jovem no assentamento costuma ser monótona, mas no momento está envolvido num grupo de jovens que estão fazendo um trabalho de conscientização da sociedade local para manter o lugar limpo. "Mas antes era tudo muito parado, e eu não saía de casa, pois não havia nada para fazer."
Valdir conta que o MST está preocupado com o futuro dos jovens e que tem realizado atividades e aberto discussões para incentivá-los a permanecer no campo e valorizá-lo. No último mês de março, por exemplo, aconteceu o III Encontro Nacional de Jovens, em Campinas. "Descobri que os mais novos têm uma grande responsabilidade perante esse povo que conseguiu terra para viver. Somos nós que vamos dar continuidade a tudo isso", conclui ele.
Só na agrovila 4 da Fazenda Pirituba, há 201 crianças de zero a 13 anos, segundo o último censo feito na região, em 2000. São dados que dão uma média de quatro filhos por família. Isso gera um problema de herança da terra, uma vez que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não permite a partilha. "Entre os sitiantes tradicionais, a terra não era infinitamente dividida, porque, dessa maneira, se tornaria improdutiva. Criavam-se padrões para estabelecer essa herança", conta a antropóloga Maria Helena. "O primeiro filho, por exemplo, poderia ser o único herdeiro. Ou somente os filhos homens teriam esse direito. Hoje, a experiência do assentamento rural é algo novo, que ainda está se concretizando. As possibilidades que vejo é de que as próximas gerações assentadas se desloquem para outros acampamentos ou assentamentos, o que poderá aliviar a tensão provocada pela escassez de terra", completa ela.
Essa, de fato, parece ser a alternativa mais recomendável, pois partir para a cidade pode não ser uma boa opção. A qualidade de vida, principalmente nos grandes centros, vem se deteriorando a cada dia, e as possibilidades de conseguir emprego e moradia se tornam cada vez mais difíceis. Apesar disso, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 1996 a 2000, houve um crescimento de aproximadamente 8% no total de residentes em áreas urbanas, enquanto, no mesmo período, a população do campo cresceu apenas 3,5%.
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