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Música para educar
Adepto da formação integral do ser humano, o compositor e professor Koellreutter mesclou ensinamentos das ciências exatas e filosofia na sua prática pedagógica
Após assistir a um filme em sala de aula, o professor prefere não engatilhar uma discussão com os alunos e sugere que eles retornem para casa para pensar no que viram e desenvolver uma conversa mais produtiva no dia seguinte. Essa era a postura de Hans-Joachim Koellreutter, músico, compositor, ensaísta e educador alemão, que preferia contrariar a ansiedade de todos a manifestar conclusões apressadas. Koellreutter trocou a Alemanha pelo Brasil no final da década de 1930, naturalizou-se e trabalhou movido pelo interesse na educação musical do país, influenciando a nossa história da música moderna.
Sua relação com essa forma de expressão remonta à descoberta de um instrumento: a flauta. No livro Hans-Joachim Koellreutter: Ideias de Mundo, de Música, de Educação (Editora Peirópolis/Edusp, 2015), a autora, Teca Alencar de Brito conta que o interesse do compositor pela música se deu ao encontrar uma flauta guardada no armário de um quarto onde teve que permanecer de castigo. Levado e criativo, divergia da família não só pelas travessuras de menino, mas, posteriormente, no âmbito da política. Nascido em Freiburg, Alemanha, em 1915, tinha o pai médico e o tio professor de direito internacional. Profissões de respeito se não deixassem à sombra envolvimentos contrários ao seu ideário em formação. O pai era monarquista e servia ao rei da Suécia, já o tio era amigo de Adolf Hitler.
Comprando briga desde jovem, Koellreutter não escondia o descontentamento com o mapa de relações políticas e familiares ao qual pertencia. Decidiu romper o contato com todos – exceto sua irmã – e se mudar para Berlim, em 1934. Contudo, o período histórico da Alemanha também se mostrou fortemente inóspito ao seu modo de vida e suas crenças. Devido à ameaça do regime nazista, Koellreutter mudou-se para o Brasil em 1937, mas não veio sozinho. Trouxe a noiva, a judia Ursula Goldschmid, como companhia.
Pelo mundo
Esse movimento de migração de compositores ao redor do mundo foi comum no período entre guerras. O russo Igor Stravinsky, autor da obra A Sagração da Primavera, seguiu o fluxo dos músicos que no início do século 20 escolheram a França como moradia. Porém, quando a 1ª Guerra Mundial (1914-1918) ganhou força, viajou para a Suíça. “A longa vivência e convivência de Koellreutter no Brasil foi entrecortada por viagens e estadias no Oriente (Índia e Japão) e na Europa”, reforça Teca, que além de autora do livro sobre o compositor é professora do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e criou há 30 anos a Teca Oficina de Música, núcleo de educação musical localizado em São Paulo.
Ao buscar refúgio no Brasil, Koellreutter não saiu ileso das consequências do totalitarismo que repudiava. Ficou preso cerca de três meses durante o ano de 1942, sob a acusação de ser nazista, embora tivesse posição política contrária ao regime. A ação decorreu da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e, fora a cicatriz emocional, rendeu a ele experiências como limpador de janelas e vendedor de uma loja em São Paulo. Na sequência, aceitando a proposta de um conhecido da prisão, trabalhou como vendedor de guarda-chuvas e papel carbono, “por um período curto e sem muito sucesso”, observa Teca. “Em 1938, no entanto, já lecionava matérias teóricas no Conservatório de Música Brasileira, no Rio de Janeiro. Logo depois deu aulas particulares, e foi flautista e saxofonista no restaurante Danúbio Azul, no bairro carioca da Lapa.” Nesse período teve contato com um dos futuros ícones da música brasileira, Antônio Carlos Jobim. Koellreutter deu aulas de iniciação musical e piano para Jobim no colégio carioca Brasileiro de Almeida.
O currículo do mestre era admirável. Estudou flauta, piano, musicologia, composição e regência de coral na Staatliche Akademische Hochschule für Musik em Berlim, de 1934 a 1936. A curta permanência na academia se encerrou de forma abrupta; expulsão motivada pela postura política do aluno. Na sequência, fundou o Círculo de Música Nova, um movimento contrário à política cultural nazista e terminou os estudos no Conservatoire de Musique, em Genebra. A vivência acadêmica foi permeada por viagens e cursos em outras cidades da Suíça e Budapeste, na Hungria. O ideário libertário e cheio de relações entre as ciências humanas e exatas moldaram a postura de Koellreutter em toda sua trajetória pessoal e determinou sua prática pedagógica.
Proposta pedagógica
Sua proposta pedagógica, datada do começo dos anos 1980, era voltada para a formação integral do ser humano, não só como musicista, mas com grande foco humanista. Koellreutter acreditava que a música e a educação musical contribuíam efetivamente para a modificação do homem e da sociedade, bem como para a potencialização da consciência. Para ele, a maneira como o ser humano vive e vê o mundo depende do nível da consciência.
Teca explica que a “teoria koellreutteriana da consciência” é importante para compreender seus textos, bem como as influências recebidas pela física, fenomenologia, filosofia oriental, psicologia e sociologia. Todos esses campos do conhecimento formam a interdisciplinaridade que conduz o legado teórico deixado pelo compositor. “O dado mais relevante da visão educativa de Koellreutter foi o fato de ter acreditado no potencial de cada pessoa, para compartilhar responsabilidades na transformação da realidade, e estar convencido de que ideias são mais fortes do que preconceitos”, opina o educador e musicólogo Carlos Kater, que teve a oportunidade de entrevistar Koellreutter.
Kater afirma que o gosto pelo novo e original era patente, “assim como pela liberdade de entendimento e pela criação de alternativas de expressão na arte, na educação e na própria vida”. Como músico e compositor, também procurou transcender e ir além dos padrões tradicional.
Muitas faces
Alguns trechos de textos escritos por Koellreutter exemplificam seu pensamento intelectual e artístico: “Eu só respondo como professor quando o aluno pergunta. A gente se autoeduca coletivamente por meio do debate, do diálogo”. A interlocução com Koellreutter também era muito profícua. Teca conta que, durante uma conversa com o professor, ele fez o seguinte comentário: “Escute aqui, Teca: natural é fazer xixi. Tudo o mais é cultural!”. A pesquisadora lembra entusiasmada do fato. “Ele era uma espécie de orientador que eu tinha fora da academia”, revela. Essa resposta bem-humorada surgiu quando Teca falava
com ele sobre o trabalho que desenvolvia com crianças, que tinham agido de forma espontânea, expressando-se naturalmente ao tocar um instrumento, sem guia de compasso ou tempo métrico, como é de praxe com os adultos. “Koellreutter nunca foi um professor de música que só falava de música. Interdisciplinaridade, que hoje é tão falada e tão difícil de colocar em prática já era exercitada por ele desde muito jovem”, relata.
O compositor de muitas faces e atuações ia na contramão do que era proposto, negando análises precipitadas e quantitativas na educação. “Propostas como as dele têm o grande mérito de lembrar o papel decisivo de protagonista que desempenha o artista-criador e o educador musical, em vista da formação ampla dos alunos (e não apenas técnicomusical), bem como de sua responsabilidade na transformação da sociedade”, analisa Kater.
O educador, que faleceu em 2005, introduziu a técnica atonal-dodecafônica de composição nos anos 1940 no Brasil. O vasto conhecimento de Koellreutter também foi direcionado para cargos institucionais. Nos anos 1960 foi artista residente em Berlim, dirigiu o Instituto Cultural da República Federal da Alemanha e chegou a fundar uma escola de música ocidental em Nova Déli, Índia, em 1969.
Na década seguinte, foi diretor do Instituto Cultural da República Alemã em Tóquio e, no Brasil, dividiu-se entre São Paulo e Rio de Janeiro, tendo passagens em institutos culturais e conservatórios. Fundou em 1985 o Centro de Pesquisa em Música Contemporânea, na Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Também ministrou aulas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). Em meio a tantas realizações, os 90 anos de vida de Koellreutter parecem pouco.
Experimentação entre fronteiras
Compositores estrangeiros que viveram no Brasil no período entre guerras influenciaram a música erudita e popular
O período entre guerras aproximou culturas e renovou não só a música moderna brasileira, influenciando, também, instrumentistas que tiveram trajetória reconhecida na música popular. Os suíços Ernst Widmer, Walter Smetak e Ernst Mahler são vistos como referências importantes pelo compositor brasileiro e professor de composição da EMESP – Tom Jobim (Escola de Música do Estado de São Paulo) e de matérias teóricas da Academia da OSESP, Rodrigo Lima. “Widmer veio para o Brasil nos anos 1930 e morou no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul e foi para Salvador. Foi Koellreutter quem o convidou para visitar o Brasil e ele logo se instalou na Bahia, onde organizou o curso de composição da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia (UFBA)”, explica. Nessa época, a escola se tornou referência da música de vanguarda.
Lima confirma que foi grande a quantidade de músicos que lá estudaram, não somente os ligados à música de concerto. Ele menciona Paulo Costa Lima, que ainda é professor de composição da UFBA, e artistas da música popular, como Tom Zé, lembrando que Smetak era escritor, escultor e fazia seus próprios instrumentos. “Dizem que Gilberto Gil adorava ir à faculdade para olhar os instrumentos do Smetak. Caetano Veloso cita o compositor no disco Araçá Azul (1973) – sua obra mais experimental – na faixa Épico”.
Lima vê a chegada dos três como uma espécie de frescor. “Trouxeram para a música o que faltava, ou o que, de certa maneira, o nacionalismo proibia: a liberdade. E não só para a música erudita, de concerto, mas para a popular. Isso ressoa até hoje nos músicos ligados à experimentação, como Tom Zé”, exemplifica. O músico baiano teve Ernst Widmer, Walter Smetak e J. Koellreutter como professores.
Pensamento musical
Trajetória e pensamento de Koellreutter é tema de encontro no Centro de Pesquisa e Formação
O nome do encontro não poderia ser mais oportuno. Hans-Joachim Koellreutter: Ideias de Mundo, de Música, de Educação ajuda a sintetizar os pontos de atuação do educador que influenciou a história da música moderna no Brasil. Realizado no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) em dezembro, teve como convidada Teca Alencar de Brito, educadora musical e autora do livro Hans-Joachim Koellreutter: Ideias de Mundo, de Música, de Educação.
A atividade permitiu a troca de ideias e proposições do músico, compositor e educador alemão naturalizado brasileiro Hans-Joachim Koellreutter, que chegou ao Brasil em 1937. Para o pesquisador do Centro de Pesquisa e Formação, Danilo Cymrot, o centenário de nascimento de Koellreutter não poderia passar em branco. “Sua vinda ao Brasil, em virtude da ascensão do nazismo, marcou de forma definitiva o cenário cultural brasileiro do século 20 e repercute até hoje. Foi um intelectual e um compositor instigante, um grande humanista e um educador-referência. Formou várias gerações de músicos brasileiros e influenciou diversos movimentos artísticos”, comenta. “Enfrentou provincianismos, transgredindo as fronteiras entre o nacional e o estrangeiro, o erudito e o popular, o ocidental e o oriental. O lançamento do livro de Teca Alencar de Brito é, portanto, mais do que oportuno.”