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A história da rede que protege vozes
Imagine um escritor de outro país. Ele é influente em suas ideias, além de um formador de opinião. Nessa mesma nação, há um grupo que detém o poder e não tolera expressão de opiniões, silenciando vozes. O destino do escritor, pacífico, poderia ser a morte. Mas há uma organização que resgata essas pessoas, garantindo sua segurança e a continuidade do seu trabalho.
O que parece uma história de cinema é uma realidade nada incomum. Para resgatar escritores, artistas, músicos, entre outras pessoas que estão sendo perseguidas por expressar suas ideias e opiniões, foi criada, em 2006, a International Cities of Refuge Network - ICORN.
Desde a sua criação, a ICORN já salvou mais de 140 vidas. Entre elas, a vencedora do prêmio Nobel de literatura de 2015, Svetlana Alexandrovna Alexievitch. Para falar sobre este trabalho, a EOnline entrevistou Sylvie Debs, representante da ICORN no Brasil e fundadora da Casas Brasileiras de Refúgio - CABRA.
EOnline: O que é o ICORN?
Sylvie Debs - É uma organização independente que congrega cidades e regiões que oferecem abrigo para escritores e artistas em situação de risco, defendendo a liberdade de expressão, reforçando os valores democráticos e promovendo a solidariedade internacional. O objetivo é abrigar quantos escritores e artistas perseguidos sejam possíveis nas cidades da ICORN e, junto com as redes e organizações parceiras, formar uma rede global dinâmica e sustentável para a liberdade de expressão.
A ICORN protege e promove uma gama cada vez mais ampla de escritores, artistas e defensores dos direitos humanos, incluindo blogueiros, romancistas, dramaturgos, jornalistas, músicos, poetas, escritores de não-ficção, artistas visuais, cartunistas, cantores/compositores, tradutores, roteiristas e editores. A ICORN possibilita que eles continuem a se expressar livremente, em um lugar seguro mas não omisso. Por meio da mídia digital, eles podem alcançar um público ao qual lhes foi negado o acesso antes de partir. Por meio de redes locais e da ICORN, suas vozes também podem ser ouvidas por novos públicos em suas cidades anfitriãs e no resto do mundo.
EO: Como surgiu a ideia do ICORN?
Sylvie Debs - Em 1989, quando foi derrubado o muro de Berlim, aconteceu o massacre na Praça da Paz Celestial e a internet surgiu para o grande público, Salman Rushdie foi condenado à morte por uma fátua do Aiatolá Khomeini, no Irã. Salman foi o primeiro escritor da história da humanidade a ser perseguido no mundo por um pais estrangeiro. Ele escapou da morte, mas cerca de duas dezenas dos seus tradutores, editores e livreiros foram, infelizmente, assassinadas por terem se relacionado de alguma maneira com Os Versos Satânicos. Diante desses fatos, e dos assassinatos de intelectuais, diretores de jornais, sociólogos, professores de universidades e escritores da Argélia, no início dos anos 90, e o próprio Salman, com a assinatura e participação de mais de 350 escritores do mundo, criou, em 1993, o Parlamento Internacional de Escritores (IPW), que lançou o Cities of Asylum Network.
Salman Rushdie, Wole Soyinka e Vaclav Havel foram presidentes e JM Coetzee, Jacques Derrida, Margaret Drabble e Harold Pinter foram membros do conselho. A ideia de criar uma rede de cidades para abrigar escritores ameaçados foi primeiramente acolhida por Barcelona, rapidamente seguida por muitas outras cidades e países, inclusive os Estados Unidos e o México. O IPW foi dissolvido em 2003, mas o esquema permaneceu intacto.
Em 2006, a cidade de Stavanger (Noruega) reestruturou essa rede, criando uma organização internacional de sócios independentes, o ICORN, oferecendo lares seguros para escritores que podiam, assim, continuar se expressando de maneira livre. Uma das primeiras escritoras a ser hospedada por ICORN na cidade de Gothenburg, na Suécia (2006-2008), foi a jornalista investigativa, e escritora bielorrussa, Svletana Alexievitch, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015.
EO: Como nasceu a Casas Brasileiras de Refúgio (CABRA e qual é sua importância no Brasil?
Sylvie Debs - Com o aumento do número de escritores perseguidos, por volta de 800 em 2014, segundo dados do Poets, Essayists and Novelists Internacional of London – PEN, é preciso abrir novos espaços para acolher romancistas, ensaístas, dramaturgos, poetas, blogueiros, editores, tradutores, redatores, jornalistas e caricaturistas ameaçados de morte e tortura. Por esta razão, foi lançado no Brasil o projeto CABRA. Os objetivos são convidar cidades brasileiras a se tornarem cidades refúgio, apoiar a criação de casas de refúgio no Brasil, promover a liberdade de expressão, defender os direitos humanos e contribuir para a solidariedade internacional.
O primeiro passo foi dado em 2014, quando uma comissão de trabalho, formada pelo PEN Internacional de Londres, o PEN Clube do Brasil, o diretor da ICORN, a fundadora da CABRA e dois escritores exilados (do Irã e de Honduras), vieram divulgar o conceito da ICORN neste país, terra de longa tradição de imigração e de integração cultural. A defesa da liberdade de expressão, o respeito aos direitos humanos, o exercício da democracia e a tradição de hospitalidade são os valores essenciais que permitem ao Brasil abraçar plenamente essa causa. Como o ICORN conecta suas cidades membros e seus escritores hospedados numa rede global de solidariedade, criatividade e interação mútua, as cidades brasileiras serão altamente beneficiadas, ao integrar essa rede. Através dos avanços da tecnologia, os escritores da ICORN podem atingir as mídias e audiências em seus países de origem, além de suas vozes poderem ser ouvidas por um novo público na cidade que os acolhe, no além-mar.
Um exemplo dessa solidariedade foi a realização do filme documentário de Marion Stalens, O silêncio ou o exílio com participação dos escritores Ma Jian (China), Mana Neyestani (Irã), Svetlana Alexievitch (Bielorrússia) e Horácio Castellanos Moya (Salvador) em 2012.
EO: Como foi a recepção das atividades da CABRA no Brasil?
Sylvie Debs - Os resultados das atividades foram muito positivos. As instituições brasileiras são em geral interessadas e impressionadas com o trabalho realizado pela ICORN com escritores em risco. A imprensa escrita, a rádio e a televisão deram ampla cobertura, tanto aos escritores hospedados pela ICORN que vieram falar sobre as suas experiências e as suas obras, como à rede internacional de cidades refúgio. Quanto às instituições brasileiras, elas não só foram muito receptivas, mas expressaram o desejo de aderir à rede. Duas universidades em particular, de Ouro Preto e de Belo Horizonte, enviaram observadores à última assembleia geral de ICORN, em Amsterdã. Outras instituições, como o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, deu-nos a possibilidade de organizar mini seminários a fim de comunicar o nosso trabalho para o público brasileiro. O resultado prático é que a Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) vai acolher, a partir de abril de 2016, um escritor para uma residência de escritura de quatro meses. Além disso, a Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG está preparando um acordo que permitirá que a Universidade possa aderir à rede e hospedar o primeiro escritor durante dois anos, a partir do segundo semestre de 2016. O Brasil será o primeiro país de América do Sul a hospedar 2 escritores da rede em 2016.
EO: Com que organismos internacionais vocês trabalham?
Sylvie Debs - No campo dos direitos humanos e da liberdade de expressão, dependemos muito da cooperação com o PEN International, Article 19, Reporters without Borders e alguns outros. Também interagimos com outras redes ativas em ambos os setores, como Free Dimensional, Scholars at Risk, Frontline Defenders, Freemuse, Arts, Rights & Justice, On the Move, Tactical tech e outros mais.
A ICORN continua a desenvolver relações com parceiros e apoiadores novos para aumentar a capacidade de proteger e promover escritores, artistas e defensores em situação de risco no mundo todo. Desde 2010, a ICORN vem se envolvendo em projetos relevantes no Parlamento Europeu e na Comissão Europeia.
EO: Quantas pessoas já foram resgatas pela ICORN?
Sylvie Debs - Desde 2006, mais de 55 cidades se comprometeram com a ICORN. Juntas, elas já abrigaram mais de 140 escritores/artistas em situação de risco.
EO: Como é o processo para um autor pedir ajuda da ICORN?
Sylvie Debs - O escritor preenche o formulário que está disponível no site da ICORN e manda o seu dossiê para que, junto com diferentes órgãos internacionais, possa ser verificada tanto a produção do escritor (publicações, prêmios, traduções, etc.) quanto os riscos aos quais ele está sendo exposto. Dependendo dos resultados das investigações, a ICORN verifica a situação do escritor em relação aos seus documentos (passaporte, visto, etc.) antes de propor a sua candidatura às cidades que estão prontas para receber um escritor.
EO: Como alguém pode ajudar a rede?
Sylvie Debs - A ICORN depende da boa vontade de financiadores, do trabalho fantástico de nossos parceiros em nossas cidades e de várias organizações e indivíduos entusiasmados que se engajam na rede. Estamos expandindo rapidamente e sempre precisamos de mais ajuda e de mais recursos para continuar nosso trabalho. Estamos crescendo em ritmo acelerado porque um número cada vez maior de escritores e artistas perseguidos está procurando a ICORN em busca de proteção.
Há muitas formas de se engajar e nos ajudar em nosso trabalho para proteger e promover os defensores do princípio da livre expressão, que buscam abrigo em residências nas cidades de refúgio da ICORN: você pode fazer doações, ajudar a sua cidade a se tornar uma cidade de refúgio e abrigar escritores/artistas em situação de risco, ou se unir a nós como nosso parceiro e embaixador dos escritores e artistas da ICORN.
Para poder oferecer residências a um número crescente de escritores e artistas que procuram a ICORN, a rede precisa de mais cidades interessadas, sendo atualmente 55. Há um número crescente de pessoas que estão à espera de um lugar para se refugiar. Com mais cidades se juntando a rede podemos ampliar o trabalho. Antes de assinar o Contrato de Adesão, sua cidade precisa identificar parceiros formais, estabelecer financiamento e apoio para o programa, achar uma instituição coordenadora e acomodação para o escritor/artista.
EO: Como fazer parte da rede?
Sylvie Debs - Qualquer cidade que queira trabalhar em prol da liberdade de expressão para escritores e artistas, e se comprometer com os termos contidos no contrato de adesão, pode se unir à ICORN e se tornar uma cidade de refúgio.
Ao assinar o contrato de adesão com a ICORN, a cidade concorda em:
• Tomar providências para a relocação e recepção de um escritor/artista na cidade.
• Facilitar a regularização da situação legal para o escritor/artista.
• Fornecer uma residência adequada para o escritor/artista e sua família.
• Fornecer ao escritor/artista uma bolsa/verba apropriada durante sua estada.
• Ajudar o escritor/artista a se integrar na comunidade local, tanto em termos sociais quanto artísticos.
• Nomear um coordenador da Cidade de Refúgio para apoiar o escritor/artista em questões legais e práticas.
O financiamento e a coordenação de uma cidade de refúgio dependem de cada cidade. O modelo de gestão da cidade dependerá de suas próprias leis e regulamentos, das parcerias, ofertas culturais e oportunidades de financiamento. A ICORN lhe ajudará a encontrar a melhor solução.
EO: Como foi auxiliar a Svetlana Alexandrovna Alexievitch, que posteriormente ganhou o Prêmio Nobel de Literatura?
Sylvie Debs - No caso da escritora e jornalista bielorrussa Svletana Alexievitch, foi o mesmo procedimento que para qualquer outro escritor perseguido e ameaçado. Era preciso encontrar um abrigo para ela para poder continuar fazer o trabalho de jornalismo investigativo, fazer suas denúncias e realizar as pesquisas e entrevistas para escrever seus livros.
EO: A internet tem o poder de facilitar a comunicação, mas também deixa muitos rastros, como é possível garantir a segurança de um autor refugiado em outro país em meio a isso?
Sylvie Debs - Se você entrar no site de ICORN poderá ver que uma cidade da rede está com um escritor hospedado, mas não aparece nem o nome, nem a foto, nem a biografia. Dependendo do grau de risco e de inseguridade, alguns escritores não podem estar expostos aos meios de comunicação. Outros precisam usar pseudônimos. Outros, uma vez fora do país de origem, estão salvos e fora de riscos. Cada situação é diferente e pode mudar no meio do caminho. Sempre são pessoas fragilizadas e com situações provisórias. Raramente, eles podem voltar para seu país. Em 2011, a escritora e defensora dos direitos humanos da Tunísia, Sihem Bensedrine, que estava hospedada na cidade refúgio de Barcelona, voltou do exílio em 14 de janeiro de 2011, no dia em que o ditador fugiu do seu país. Obviamente, é sempre preciso tomar muito cuidado com a Internet e a segurança de nossos escritores.