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Ficção Inédita
Labirintos

Álvaro Cardoso Gomes



1

Nosso soberano não tinha o costume de executar os desafetos. Mais requintado, mandara construir um labirinto tão complexo que causaria inveja ao próprio rei Minos. Lançados ali, como à boca de um leão faminto, os prisioneiros pereciam, exaustos da procura da liberdade. De modo que, ao cair em desgraça, não quis experimentar a justiça de meu senhor. Deixando mulher e filhos, escolhi o exílio. E sem descanso, perambulei pelo mundo anos a fio, porque se ousasse repousar fatalmente a mão do tirano me alcançaria. Como mesmo assim meu sono resultasse intranqüilo, achei mais prudente deixar as cidades e ocultar-me nas montanhas. Contudo, o rosto de cada pastor lembrou-me o de um espia, de maneira que desci as montanhas e cheguei junto às areias de um deserto nos confins da Terra. Adentrei-o e, meses depois de muito perambular, tomei consciência de que me perdera. Respirei aliviado: perdido de mim, dava-me conta de que também para sempre me perdia de meu perseguidor.

2
Nosso soberano não tinha o costume de executar os desafetos. Mais requintado, mandara construir um labirinto tão complexo que causaria inveja ao próprio rei Minos. Lançados ali, como à boca de um leão faminto, os prisioneiros pereciam, exaustos da procura da liberdade. De modo que, ao cair em desgraça, não quis experimentar a justiça de meu senhor. Deixando mulher e filhos, escolhi o exílio. E sem descanso, perambulei pelo mundo anos a fio, até quase perder a memória de meus temores, porque nosso soberano não tinha o costume de executar os desafetos. Mais requintado, mandara construir um labirinto tão complexo que causaria inveja ao próprio rei de Minos. Lançados ali, como à boca de um leão faminto, os prisioneiros pereciam, exaustos da procura da liberdade.

3
Nosso soberano não tinha o costume de executar os desafetos. Mais requintado, mandara construir um labirinto tão complexo que espicaçara a curiosidade dos notáveis do reino. Reunidos na biblioteca do palácio, os doutos senhores discutiam horas a fio a conformação do labirinto. Pouco imaginativos, uns descreviam-no dotado de corredores de granito e antecâmaras de mármore, ou então de túneis que se perdiam nas entranhas da terra. Mais sutis, outros imaginaram-no como espécie de número Phi, de infinitos decimais, como os tomos de uma enciclopédia, cujos verbetes, maliciosamente, remetessem uns aos outros, ou ainda como uma partitura musical, espécie de moto-contínuo, cujo tema fosse exaustivamente retomado após complicadas variações...
De uma das espias do palácio, nosso soberano seguia a parlenda dos sábios, há tempos encerrados na biblioteca, esquecidos do mundo e da vida, no afã de adivinhar o labirinto.

4
Nosso soberano não tinha o costume de executar os desafetos. Mais requintado, mandara construir um labirinto tão complexo que causaria inveja ao próprio rei Minos. Lançados ali, como à boca de um leão faminto, os prisioneiros pereciam exaustos da procura da liberdade. De modo que, ao cair em desgraça, sua favorita implorou-lhe que a perdoasse, em nome dos amores passados. Nosso soberano livrou-a do pesadelo, vendendo-a a um mercante árabe, que, por sua vez, trocou-a por dez camelos num oásis; do tratador de camelos, a mulher passou para as mãos de um guerreiro, que a perdeu num jogo de dados; o jogador vendeu-a ao jovem Aziz-Hadad, que a deu de presente de aniversário ao ainda lúbrico pai, o negociante de tapetes Aboud Hadad; o negociante de tapetes, por sua vez, mimoseou um certo Abdallah, um mercante de escravos, com a mulher, que se viu, semanas depois, no harém de um turco; este, por seu turno... noites e noites, entre sedas, coxins, abraçada a um torso branco, amarelo ou negro, ou no lombo de um camelo no deserto, sob o peso de cadeias, ela sonhava com o labirinto.

5
Nosso soberano não tinha o costume de executar os desafetos. Mais requintado, mandou-me construir um labirinto tão complexo que causaria inveja ao próprio rei Minos. Noites a fio, debrucei-me sobre folhas de papel, imaginando as mais complicadas formas de perder um homem: corredores que terminavam em cisternas; salões desprovidos de janelas; muros circulares; escadarias que bruscamente terminassem numa parede ou no vazio; ogivas e portas que levassem em ambas as faces ao mesmo aposento; torres cuja altura desafiasse a vertigem dos homens mais corajosos... Ao cair em desgraça, experimentei na carne o sucesso de meu engenho. Não sei por quanto tempo, vaguei pela noite que meu cérebro concebera, até que, enfraquecido, deixei-me cair num canto. Quando percebi que minha hora chegara, sorri de felicidade, porque tinha certeza de que minha obra era mesmo perfeita.

6
"Nosso soberano não tinha o costume de executar...", diante do vídeo, começo a digitar a primeira narrativa do labirinto. Ao término dela, recolho-me para dormir. Então, sonho com a segunda narrativa e, mal acordo, uma força incontrolável impõe-me escrevê-la. À noite, assalta-me o pesadelo da terceira narrativa e assim, sucessivamente, noite após noite e dia após dia, vou compondo a partitura do labirinto.
A centésima narrativa nasce já de um sonho diurno. Trabalhava sobre um importante processo na firma e, de repente, os olhos abertos, apaguei. Acordando do letargo, dominado por uma força incontrolável, escrevi mais essa narrativa. Depois disso, perdi o controle por completo: era só imaginar e escrever. Fui despedido do emprego, deixei de comer e de dormir. Sentado ao micro, sem ao menos ter o trabalho de imaginar, digitava, uma após a outra, narrativas e narrativas. Creio (se bem que não saiba ao certo, pois os números tornaram-se para mim hieróglifos sem sentido) que deva ter chegado a meio milhão de narrativas, e a próxima está pronta a quebrar a casca do ovo.
Imperioso, então, torna-se escrevê-la. Automaticamente, meus dedos digitam "Nosso soberano não tinha o costume de executar...".

7
Jamais tive o costume de executar meus desafetos. Mais requintado, mandei construir um labirinto tão complexo que causaria inveja ao próprio rei Minos. Lançados ali, como à boca de um leão faminto, os prisioneiros pereciam, exaustos da procura da liberdade. À medida, porém, que passavam os anos, mais a sombra da suspeita desceu sobre mim. Um ministro, a favorita, um astrólogo, o arquiteto que perpetrara o labirinto e até o poeta de minha predileção que, enquanto dedilhava a harpa, vivia sob a obsessão do regicídio, foram condenados. Fortifiquei os muros do palácio, portas de ferro substituíram as de madeira e de bronze. Escravos, cujas línguas foram cortadas, velavam-me à noite. Mas seus passos furtivos ou o pio de uma ave transformavam-se em pesadelos, nos quais a sombra com um punhal sufocava-me em meu próprio sangue.
Então, só me restou esconder-me no ventre do labirinto. Munido das plantas, de que era o único possuidor, provido de alimentos e seguido de escravos, a quem mais tarde escrupulosamente envenenaria, nele me encerrei para dar repouso a meu sofrido ser.

Álvaro Cardoso Gomes é autor de Os Rios Inumeráveis (Editora Topbooks), entre outros