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Trabalho
Dinheiro suado

Garis, carteiros, pedreiros assumem o legado de Hércules e, com suor e esforço físico, batalham o pão de cada dia

Na Grécia antiga, a mitologia criou deuses e heróis. Dentre as centenas de personagens, o invencível Hércules habita o nosso imaginário até os dias atuais. Sinônimo de força física e intrepidez, o herói é reconhecido por dar cabo de doze trabalhos sobre-humanos. Suas façanhas lhe renderam o Olimpo e, máxima glória, seu nome tornou-se adjetivo.
É sem dúvida no esporte que as lembranças de Hércules estão mais presentes. Nos Jogos Olímpicos, antigos ou modernos, seus feitos foram alegorizados em provas físicas. No decatlo, que une dez modalidades, talvez resida o paroxismo do esforço. Na arena esportiva, alguns seres humanos, à força da mídia, ganharam status mitológico; fora dela, outros homens e mulheres realizam proezas hercúleas sem receber, no fim do evento, o reconhecimento devido.
No cotidiano prosaico da vida, há muitos trabalhadores que permanecem quase anônimos, alheados do sucesso, cujo empenho é muitas vezes desprestigiado. São os trabalhadores cuja faina depende da lida das mãos, dos pés, do fôlego, do físico, são, enfim, os ditos (com tom por vezes pejorativo) trabalhadores braçais.
Talvez pela presença incômoda de um ranço oriundo da escravidão, talvez devido a traços remanescentes da cultura ibérica, nossa sociedade coloca em um plano inferior os serviços que têm como um dos substratos o suor. Mas, na verdade, isso ocorre no mundo todo. Esta matéria pretende fazer uma retratação, dentro de suas humildes possibilidades, perante algumas profissões que não recebem o respeito adequado. A seguir, publica-se a saga de alguns dos Hércules modernos cujo feito atlante (para ficarmos nos adjetivos de origem grega) é sobreviver e dar sustento a uma família com os proventos minguados do próprio trabalho.

Alta quilometragem
É muito tentador buscar a correspondência entre uma prova esportiva e a tarefa desempenhada em uma profissão. Assim, o nosso gari representaria qual esportista? Difícil dizer. Afinal, os profissionais de limpeza urbana realizam um trabalho pesadíssimo. Ora estão varrendo as calçadas, ora correm atrás dos caminhões, recolhendo os indefectíveis sacos de lixo do meio-fio. Porém, mais estafante que a labuta em si é a maratona em que se transforma a vida dos garis, normalmente originários das camadas mais desfavorecidas da população.
Acompanhem estes dois exemplos: "Sou nascido em Itaíte, uma cidade perto de Feira de Santana, na Bahia. Tenho 52 anos e estou em São Paulo há 22. Faz quatro que trabalho limpando as ruas", informa José Veloso da Silva. Ele trabalha na região de Pinheiros e anda cerca de sete horas por dia, varrendo o chão. Pega no batente às seis da matina, quando se apresenta no alojamento provisório na Cidade Universitária. Larga às duas da tarde. José não consegue contabilizar a quantidade de quilômetros que percorre todos os dias, mas sabe que para chegar ao trabalho na hora estipulada, às 3h30 da manhã já tem de "estar no mundo", como diz, para pegar a condução das quatro, lá em Vargem Grande Paulista, município onde mora, situado depois de Cotia. Ele diz que já se acostumou à andança: não tem mais dor nas pernas ou cansaço; tanto que freqüenta a quarta série do primário de um curso supletivo. Mesmo com a rotina puxada e o salário baixo (recebe 356 reais mais benefícios), José não reclama. "Eu gosto de ser gari. É a profissão que me dá o sustento e, além disso, tenho 52 anos, mas com fôlego de 18." Seu companheiro de trabalho, Genivaldo de Jesus Ferreira, de 37 anos, é mais intransigente com a profissão. Baiano de Monte Santo, morador de São Paulo há 17 anos, ele diz que existe muito desrespeito aos garis. "As pessoas xingam e olham torto." Genivaldo, ao contrário de José, já trabalhou com caminhão de lixo. Nesse caso, ele relata, a situação torna-se ainda pior. "A correria é maior. Tem de andar no ritmo do 'bicho' para dar conta do serviço. São trinta toneladas de lixo que cabem na caçamba. É perigoso se machucar." O gari conta que esta é a pior época do ano para o serviço, porque as folhas estão caindo. "O trabalho aumenta muito."

Sem cansaço
Ainda no terreno das comparações, uma obra de construção civil pode ser equiparada a um estádio de atletismo, onde se disputam várias provas. No canteiro de obras, encontram-se diversos profissionais que realizam as mais variadas funções. Engenheiros, empreiteiros e mestres-de-obras circulam entre os operários, responsáveis, digamos, pelo "serviço pesado".
Para erguer um prédio de grande porte, por exemplo, três profissionais são indispensáveis: o carpinteiro, o armador e, claro, o pedreiro. Todos eles têm múltiplas responsabilidades e se entregam a um serviço duro, que exige, além de força física, muita concentração. "Já pensou se eu construo uma parede torta?", questiona José Nunes Rodrigues, natural de Rui Barbosa, na Bahia. Há 25 anos em São Paulo, o pedreiro ajudou a verticalizar a paisagem paulistana, embora poucos paulistanos tenham se dado conta de seu feito. Antes, quando ainda residia no interior nordestino, José era roceiro. Pegava pesado na enxada e depois de todo esse tempo chega a dizer que o trabalho no sertão é ainda mais puxado que na cidade. "Acho que não consigo mais puxar uma roda de farinha. Muita gente pensa que no Nordeste o cabra não trabalha, mas não é assim não. Lá, a precisão é muita e desde cedo tive de ajudar meu pai." E olha que num canteiro ele carrega sacos de cimento com mais de 50 quilos. Pela necessidade de trabalho, não pôde se dedicar aos estudos: nunca freqüentou a escola. Hoje, orgulha-se de "saber ler alguma coisinha" e "fazer" o nome. A auto-estima aumenta na medida em que essa conquista foi fruto de um esforço pessoal muito grande. O pedreiro experiente garante que não se cansa mais com o trabalho. Faz muxoxo quando tem de fazer uma laje de concreto, e acha pouco o salário de R$ 2,03 por hora trabalhada. Morando em Taboão da Serra (município da Grande São Paulo), precisa levantar cedo para bater cartão às 7h e, depois do expediente, casa, banho e cama.
José comenta que o pessoal na obra fica um pouco irritado quando um jogador de futebol, desses famosos, cujo salário passa dos 100 mil reais, reclama que está cansado. "Olha, isso dá uma bronca danada. Onde já se viu cansar de jogar bola?"
O carpinteiro, outro profissional indispensável em uma obra de grande porte, fabrica as fôrmas, alinha as lajes e faz o escoramento das paredes. No caso de Valdeci Alves Feitosa, natural de Arcoverde, Pernambuco, a roça e a carpintaria foram seus únicos ganha-pães em 57 anos de vida. Cortando, pregando e medindo as madeiras, ele se lembra do trabalho perigoso que fez na construção da barragem da hidrelétrica de Paulo Afonso, na Bahia, quando ora "estava a noventa metros do chão", ora "enfiado nas galerias subterrâneas". Mas no fim das contas Valdeci gosta do que faz, apesar de se cansar um pouco quando tem de ajudar a construir uma laje (sempre ela). Muito zeloso, o carpinteiro chega uma hora antes do horário. Gosta de ficar jogando conversa fora e pensar na aposentadoria, que está próxima. "Infelizmente, não posso parar de trabalhar, mas quero continuar mexendo com madeira, como marceneiro."

Quando o carteiro chegou...
Faz parte do anedotário nacional uma máxima: o carteiro, junto com o médico, é uma das profissões mais respeitadas. Afinal, mesmo com o advento inexorável da tecnologia e de todos os seus corolários, é ele quem leva as boas novas para os rincões mais inacessíveis do país. E para cumprir essa nobilíssima tarefa, com um salário modesto (360 reais por mês), é necessário andar muito.
O carteiro Rui Francisco dos Santos, nascido em Recife há 35 anos, garante que caminha diariamente cerca de 15 quilômetros. Ele cobre uma área que vai do começo da avenida Brigadeiro Faria Lima até o Parque do Ibirapuera. Quem está familiarizado com a geografia da Zona Oeste de São Paulo sabe que é muito chão para poucos pés. "Depois do trabalho, eu fico cansado. Fazemos um esforço muito grande, tanto físico como mental, afinal não podemos entregar correspondência em endereço errado, não é mesmo?" Francisco acha que, apesar de muito importante, as pessoas não dão o valor devido ao trabalho de carteiro. "Muitas não sabem o peso do malote (cerca de quinze quilos) e reclamam se a entrega está atrasada; além disso, não têm cuidado em prender os cachorros." Ele conta que além do percurso diário, às vezes é obrigado a correr para escapar de mandíbulas pouco amistosas. "Pelo menos eu mantenho a forma."

Pegar no pesado - Uma homenagem às profissões que "suam"

Um dos grandes problemas que ameaçam a qualidade de vida é o sedentarismo. A falta de atividade física, muitas vezes decorrente de um cotidiano atribulado, pode afastar o indivíduo de uma vida saudável. Porém, alguns profissionais encontram em seu próprio dia-a-dia uma forma de suprir essa falta.
A seguir, a Revista E publica uma lista-homenagem com alguns exemplos das inúmeras profissões que precisam suar a camisa para sobreviver:

-gari
-pedreiro
-garçon
-bike courier
-office boy
-estivador
-bóia-fria
-jardineiro
-carteiro
-carregador de mudança

-faxineira
-carpinteiro
-pescador
-pintor
-limpador de janelas
-estoquista
-lavrador
-borracheiro
-mecânico
-marceneiro