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Saúde: uma história recente
Maria Alice Rosa Ribeiro
é professora doutora da Faculdade de Ciências e Letras, da Unesp
A elaboração de uma política de saúde pública começou com a organização do Serviço Sanitário, formado por um Conselho de Saúde Pública responsável pela formulação do Código Sanitário, em conjunto com a Diretoria de Saúde Pública, que também era responsável pela execução das normas sanitárias. Para a execução da política de saúde foram criadas diferentes instituições, dentre elas o Instituto Vacinogênico, o Serviço Geral de Desinfecções e o Instituto Bacteriológico. Ao Serviço Sanitário foi incorporado o antigo Hospital de Isolamento, completamente reformado.
A política de saúde pública constituía-se, fundamentalmente, no policiamento das condições sanitárias das vilas e cidades, das habitações dos pobres, das oficinas, hospícios, asilos etc., no combate às doenças transmissíveis. As medidas adotadas eram isolamento, desinfecções e vacinação, fiscalização dos alimentos, das farmácias e do exercício da profissão de médicos e farmacêuticos. O primeiro Código Sanitário de São Paulo, promulgado em 1894, reuniu as normas de saúde pública, a regulamentação do espaço público e privado e as práticas sanitárias. O combate das epidemias e das moléstias infecto-contagiosas apoiou-se em intervenções que resultaram nas reformas urbanas do fim do século 19 e início do século 20 nas cidades de Santos, Campinas, Ribeirão Preto, de caráter eminentemente sanitário. As reformas sanitárias envolveram a construção de rede de água encanada e de esgotos, a higiene das habitações, as desinfecções dos espaços público e privado e a segmentação do espaço urbano em funções especializadas.
A criação de duas instituições demonstrava a preocupação com a incorporação de conhecimentos científicos recentes no combate às doenças infecto-contagiosas. O Instituto Bacteriológico, voltado para auxiliar no diagnóstico de doenças e na análise da qualidade da água de abastecimento, com base nos exames bacteriológicos, e a Seção de Estatística Demografo-sanitária, responsável pela sistematização de dados estatísticos sobre as condições de saúde da população. Pela primeira vez introduziam-se conhecimentos especializados em apoio às práticas sanitárias.
As desinfecções, coordenadas pelo Serviço Geral de Desinfecções, eram o exemplo mais expressivo do momento de transição em que vivia o conhecimento médico. Nelas havia resquícios da concepção miasmática das doenças, como bem demonstram as pulverizações com substâncias químicas nas escavações e nas remoções de terras feitas durante a execução das reformas urbanas para evitar miasmas. Embora essa concepção estivesse em declínio desde os anos 1870, ela ainda permanecia como explicação de doenças, principalmente daquelas cuja forma de transmissão se ignorava, por exemplo, a febre amarela. Se as desinfecções estavam mais próximas da concepção miasmática, o mesmo não ocorria com o Instituto Bacteriológico, que se ligava à concepção microbiana. O instituto investigava, com base em exames laboratoriais, o diagnóstico e a etiologia das epidemias, endemias e epizootias. Com base nos diagnósticos, o instituto auxiliava na formulação da ação sanitária nos surtos epidêmicos e nas endemias. A polaridade miasma-micróbio estava presente na política e na estrutura da saúde pública, caracterizando o momento de transição em que a velha concepção não havia sido de todo abandonada e a nova não havia sido de todo aceita.
O Hospital de Isolamento completava a estrutura da saúde pública, diretamente voltado ao combate de epidemias. Ele se destinava ao isolamento dos doentes de moléstias infecto-contagiosas, sendo formado por diversos pavilhões, cada qual destinado a uma moléstia: pavilhão da febre amarela e da febre tifóide, da escarlatina, da difteria e da varíola. Cada pavilhão dividia-se em enfermaria feminina e masculina. Os imigrantes eram os mais visados pelas desinfecções, ao lado dos trabalhadores e pobres em geral. As habitações dos pobres, os cortiços e as habitações coletivas estavam na mira das ações dos desinfetantes (a mais variada gama de produtos químicos) e dos desinfectadores (o maior número de funcionários no Serviço Sanitário).
Beatriz Teixeira Weber
é professora doutora do Depto. de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), em Bauru
Visões reducionistas limitaram a pesquisa sobre a história da saúde no Brasil em várias direções, pois afirmam que a corporação médica já estaria constituída no século 19 e a medicina já teria seu poder consolidado e oficializado ao longo do Império, não ocorrendo tensões significativas entre ela e as diversas práticas de cura, já residuais e sem importância numa sociedade plenamente "medicalizada". Com essa perspectiva, excluíram-se diversos autores sociais que possuem registros históricos menos consolidados nas fontes oficiais, que não chegaram a elaborar concepções formais e nem a publicá-las.
O estudo de relações entre práticas de cura diferentes permite perceber a as propostas desses autores sociais é complexa e que não ocorreu sobreposição de uma prática sobre as outras. O "poder" da medicina foi construído num longo processo que, certamente, percorreu o século 19, só se consolidando, no Rio Grande do Sul, por volta da década de 1940, num período de reorganização das relações sociais em todo o país. Ao mesmo tempo, outras organizações conviveram com a prática médica e, muitas vezes, os usuários as aceitavam melhor do que a medicina acadêmica.
Nas práticas de cura concentraram-se diversos sentidos sociais, numa arena da qual participavam todas as pessoas, pois saúde e doença são campos da vida cotidiana. Até a medicina alcançar a imagem que tem hoje - uma ciência inquestionável e onipotente -, diversas práticas de cura disputaram espaço. Essas disputas significaram embates de concepções e atitudes em que se chocaram diversos projetos e imagens da nação. Muitas organizações populares foram relegadas ao descaso, embora passíveis de serem estudadas e capazes de oferecer um campo privilegiado de análise.
A riqueza do material documental é um forte indício de que as práticas de cura serviram como elemento aglutinador/ordenador da vida para os menos favorecidos pela "ciência". Práticas populares de cura conquistaram seus "lugares" e fazem parte do Brasil nos dias de hoje de maneira fundamental. Centros de atendimento espírita, organizações homeopatas, benzedores, parteiras, curandeiros em geral, todos fazem parte da vida de muitas pessoas, mesmo das que consultam os médicos. Não podemos abordá-los com respostas a priori, vendo só o que nos parece organizado e coerente. Inúmeros campos novos de pesquisa estão abertos para que se perceba como a população deste país construiu sua existência, ainda que fora dos parâmetros apresentados pela cura acadêmica.
José Leopoldo Ferreira Antunes
é professor da Faculdade de Odontologia da USP
As primeiras gestões para a instalação de um Hospital de Isolamento em São Paulo foram movidas em 1875 pelo vereador José Homem Guedes Portilho, que conseguiu a liberação de recursos para a desapropriação da chácara Água Branca dos Pinheiros, na estrada do Araçá, atual avenida Dr. Arnaldo. Para se ter uma idéia de quão descampada era a região, basta lembrar que somente em 1896 foi instalado nas proximidades o cemitério do Araçá.
No dia 8 de janeiro de 1880, o marquês de Três Rios, então vice-presidente da província, inaugurava solenemente o novo hospital, que esteve restrito, durante seus primeiros anos, a um único pavilhão. Com a República, novos pavilhões foram construídos entre 1892 e 1894 pelo engenheiro Teodoro Sampaio e inaugurados por Bernardino de Campos, presidente do Estado, e Cesário Motta Jr., secretário do Interior. Tombados pelo patrimônio histórico, os primeiros prédios do hospital ainda podem ser visitados.
Conquanto seu funcionamento se pautasse pelo "cordão de isolamento", médicos, enfermeiras e pacientes deviam passar por procedimentos de desinfecção para poderem transitar em seus recintos, evitando o contágio mútuo entre portadores de diferentes enfermidades. Em novembro de 1896, o Instituto Bacteriológico foi transferido para o terreno do Hospital de Isolamento, dando início à sucessiva instalação de novos estabelecimentos de saúde, como a Faculdade de Medicina, o Hospital das Clínicas, o Instituto de Higiene e outros, o que tornou o local conhecido como "quarteirão da saúde". Desde seus primórdios, o Hospital de Isolamento consagrou o nome de seus primeiros diretores, como Victor Godinho e Cândido Espinheira, além de ajudar a projetar os demais dirigentes das instituições de saúde que atuavam de modo interligado ao hospital: Adolfo Lutz, Emílio Ribas, Diogo de Faria, Henrique Schaumann, Arnaldo Vieira de Carvalho, Vital Brasil, Ivo Banti, Theodoro Bayma, Geraldo Horácio de Paula Souza e tantos outros. Além do atendimento médico especialmente dirigido aos pacientes mais desvalidos, o Hospital de Isolamento contribuiu para o saneamento das principais epidemias que grassavam no estado. Foi em suas dependências que Emílio Ribas e Adolfo Lutz efetuaram a famosa experiência que provou ser a picada do mosquito infectado a causa de transmissão da febre amarela. Seus profissionais contribuíram para os estudos de identificação etiológica da febre tifóide e participaram dos esforços de erradicação do surto de cólera na capital e da peste bubônica em Santos.
O nome "Emílio Ribas" foi-lhe atribuído em 1932 como homenagem póstuma ao famoso sanitarista. Nas décadas seguintes, sucessivas reformas e ampliações, apesar das restrições orçamentárias, ampliaram ainda mais sua capacidade, compatibilizando-o com as demandas crescentes de uma sociedade em constante expansão. Sua designação atual - "Instituto de Infectologia Emílio Ribas" - põe em relevo seu empenho histórico no campo da pesquisa. Difteria, varíola, leptospirose, sarampo e meningite são apenas algumas das palavras trazidas nos corações e mentes dos profissionais e pacientes que ali encontraram guarida. Os esforços recentes da instituição em ampliar o atendimento aos pacientes com Aids marcaram ainda mais profundamente a imagem do hospital.
No início do ano, o Emílio Ribas completou 121 anos de funcionamento contínuo, uma impressionante "maioridade" pouquíssimo divulgada, apesar do impacto para a saúde coletiva. Era hora de celebrarmos as conquistas do serviço público no Brasil e ao menos por um momento desviar os olhos para os esforços em fazer deste um grande país.
Yara Nogueira Monteiro
é professora doutora e pesquisadora do Instituto de Saúde, da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo
A hanseníase, anteriormente denominada lepra, é uma doença que atualmente tem cura, mas apesar disso continua apresentando uma gama enorme de problemas decorrentes de uma herança milenar de estigmatização, que envolve tanto a doença como seu portador. A hanseníase representa grave problema de saúde pública, e, ao se analisar os dados internacionais, pode-se verificar que o Brasil ocupa o segundo lugar em número de doentes, perdendo apenas para a Índia.
Essa doença foi introduzida no Brasil durante a colonização do território, quando o imaginário medieval da figura do leproso, do pavor da doença, do banimento do doente, se fizeram presentes em todo território nacional, de forma que por muito tempo a segregação foi vista como uma norma a ser seguida. Medidas de exclusão tomadas ao longo da história fizeram com que o doente se transformasse numa espécie de pária e que a mendicância se tornasse, praticamente, a única forma de sobrevivência até praticamente o início do século 19.
A partir da década de vinte, o governo do estado de São Paulo adotou a política de isolamento compulsório. Acreditava-se que, através da exclusão total dos portadores da doença, seria possível acabar com a endemia. Para que essa política se efetivasse foi necessário criar uma rede asilar capaz de abrigar todos os infectados, o que implicava altos custos financeiros além da adoção de medidas legais que possibilitassem a criação de um regime de exceção. Para tanto foram construídos quatro asilos-colônia e um sanatório (Santo Ângelo, Pirapitingui, Cocais, Aimorés Padre Bento) localizados em diferentes pontos do estado. Todos tinham características semelhantes, tais como serem construídos em grandes propriedades rurais distantes dos centros urbanos. O fenômeno da internação em massa fez surgir uma série de problemas, dentre eles os das crianças sadias que ficavam ao abandono por ocasião do internamento de um genitor, ou de ambos. Para elas foram criadas instituições especiais, os Preventórios, que acabaram por apresentar as mesmas características dos asilos citados.
Em nossas pesquisas pudemos verificar que a política de saúde imposta em São Paulo acabou por dar origem a um verdadeiro mundo paralelo, e que este se constituiu num organismo de alta complexidade, contendo uma massa heterogênea constituída por milhares de pessoas. Dentro dele havia diversificações várias, tais como: de faixa etária, sexo, estratificação social. Para exercer o domínio, os asilos acabaram por reproduzir a sociedade que os circundavam e foram criada normas internas e formas de gerenciamento que possibilitassem a vigilância, definissem papéis, atribuições, penalidades etc.
Através de documentação variada, como prontuários, correspondências, fotografias, entrevistas, normas e regulamentos, pudemos reconstituir o cotidiano do doente internado e a estruturação institucional. Nossos estudos, que resultaram numa tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo, revelaram a existência de um mundo à parte, no qual milhares de pessoas viviam segundo normas específicas, sendo-lhes vedado até mesmo os mais elementares direitos constitucionais.
Ao examinarmos a questão da hanseníase, verificamos que, apesar de todo o custo social e financeiro decorrente da política de isolamento compulsório, a doença continuou crescendo, o estigma continua existindo.
Luiz Manoel M. M. Gomes
é cirurgião dentista e coordenador do Programa de Odontologia do Sesc/SP.
A odontologia como ciência e também como arte sempre teve a difícil missão de reabilitar dentes, bocas e sorrisos.
Com certeza, hoje nós estamos muito mais bem aparelhados para atender os que necessitam da nossa atenção profissional que os profissionais que atenderam nossos pais. Não estamos aqui questionando competência profissional ou habilidade manual, dois importantes requisitos para a prática da odontologia, e sim a tecnologia que atualmente dispomos em um consultório odontológico, que já foi até chamado de gabinete dentário.
Para isso acontecer foi necessária a contribuição de abnegados e ilustres pesquisadores que, com muita dedicação, encontraram soluções para reabilitar com restaurações, próteses, procedimentos cirúrgicos e implantes aquilo que a natureza criou com perfeição e a maioria dos indivíduos ainda não consegue manter em ordem: a saúde bucal.
Atuando na odontologia há 25 anos, sempre me deparei com perguntas muito pertinentes, que refletiam as preocupações dos meus pacientes:
- Doutor, quando você vai substituir esse motorzinho por um que não faça tanto barulho?
Ultimamente, a curiosidade recai sobre o raio laser:
- Doutor, você ainda não está usando raio laser para remover a cárie? Li na revista que com o raio laser é possível fazer um tratamento sem anestesia e sem dor.
Outra pergunta muito comum:
- Não dá para fazer uma restauração mais estética, aquela "branquinha"?
Para responder a essas perguntas sempre gostei de conversar com o paciente e de refletir com ele sobre as possibilidades de usar essas técnicas e suas indicações. Nesse papo cordial, descontraído e sempre ético, invariavelmente concluímos (eu e o meu paciente) que todos desejamos ter acesso à tecnologia de ponta. Mas, e o investimento? Será que estamos preparados para arcar com os custos? Quem teria acesso a tal tecnologia? E o segmento mais carente da sociedade, que nunca teve possibilidade de receber tratamento odontológico, seria mais uma vez excluído desse processo?
No Brasil, mais de 60% da população acima de 63 anos apresenta ausência total de dentes, números da Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), elaborado com base na Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), no ano 2000, dos 160 milhões de brasileiros, 20 milhões nunca foram ao dentista, ou seja, 12,5% da população. Esse percentual aumenta para 32% nas áreas rurais. Aos 30 anos o brasileiro apresenta, em média, 18 dentes com necessidade de restauração.
Ao observar esses números, não podemos ter dúvidas de que as carências já instaladas na população na área da saúde bucal são enormes e tendem a aumentar. Também não temos dúvidas de que a odontologia atual dispõe de conhecimentos técnico e científico avançados, mas resta a pergunta: será que há alguma esperança de levar o atendimento odontológico à toda a população?
Mas, voltando às perguntas formuladas pelos meus pacientes, a que eu mais gosto de responder é:
- Doutor, como eu posso cuidar melhor dos meus dentes? É possível evitar que meu filho venha a ter as mesmas experiências que eu tive num consultório odontológico?
E a minha resposta, com satisfação, é um sonoro sim; e procuro mais uma vez refletir com meu paciente. Coloco o motorzinho sem barulho, o raio laser, as restaurações estéticas e os implantes num plano "inferior de modernidade" quando falamos de odontologia preventiva, práticas educativas de saúde bucal, enfim, quando falamos de promoção da saúde bucal.
A OMS estipulou as seguintes metas para serem atingidas no Brasil até 2010:
o que crianças, ao completarem 12 anos de idade, tenham apenas uma cárie;
o que todos os brasileiros até 18 anos não tenham perdido nenhum dente permanente;
o que 90% das pessoas na faixa de 35 a 40 anos tenham, pelo menos, 20 dentes em condições funcionais e que apenas 2% sejam desdentados;
o que somente 5% da população na faixa de 65 a 74 anos seja desdentada.
Não há nada mais moderno na área da saúde do que estimular as mudanças nos hábitos da população por meio da informação e da orientação, capacitando o indivíduo a atuar na melhoria da sua saúde e qualidade de vida.