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por Guilherme Gontijo Flores
					por Guilherme Gontijo Flores
	
	τ δ σημανοντα κα σημαιννμενα τν πραγμτων στν πειρα
	(Sexto Empírico)
	Language is a perpetual Orphic song,
	which rules with Daedal harmony a throng
	of thoughts and forms, which else senseless and shapeless were.
	(Percy Bysshe Shelley)
	
	Mas como nós falássemos a mesma coisa
	as mesmas coisas mesma língua & dialeto
	parecia possível retratar as margens
	de cada termo contratar o nosso acerto
	nas mãos do mundo & apertarmo-nos as mãos
	entre toques & dedos & a carícia calcinada
	dos dias numa nova ordenação do cosmo
	então num gesto fácil nomear o mundo
	flores de toda espécie com seus gostos cores
	seus caules folhas frutos formas invisíveis
	ou que nunca aprendemos por nunca querermos
	por só preguiça de androceu & gineceu
	seus novos nomes poderiam ser mais nossos
	ao inventarmos juntos palavra a palavra
	toda a sintaxe enquanto descemos a senda
	encravada de asfalto nos veios da serra
	neste carro qualquer os pés esvanecidos
	por baixo do painel as mãos ainda pensas
	ainda que sentados o olho sobre o vidro
	anuncia a tormenta cinza sobre a mata
	compostos de amarelo & púrpura & carmim
	preenchem o que resta no pouco de céu
	que ainda se desnubla neste fim de dia
	enquanto desbotoamo-nos nalgum sorriso
	você dizia flor & flor eu respondi
	pacovás manacás caraguatás hortênsias
	pé-de-maracujá de-pêssego de-ameixa
	tudo conforme a si nestas palavras todas
	& no vazio dos saberes concebíamos
	o pé-de-pau o pé-de-planta o mato-bravo
	por cima muito mais por cima do capim
	importado pra humanizar o chão da terra
	pra transformar o lá no cá & reunir
	o diverso em qualquer espaço & então perder
	cada diversidade que há por sobre o chão
	até que se reverta tudo no carvão
	incendiante que nos consumirá inteiros
	& apodrecidos voltaremos às palavras
	disseminadas pelo vento da borrasca
	você dizia onça & onça eu respondi
	embora não houvesse um animal sequer
	à nossa vista regulada pelo parco
	enquadramento dado pelo para-brisas
	se estavam embrenhados pelo breu das brenhas
	ainda rumavam sobre o nosso olhar da mente
	num contraste concreto ao verde fulminante
	que a mata oferecia a todos sem recusas
	& sem acolhimento em seus insetos
	que vez por outra se espalhavam esmagados
	nos ferros do automóvel transformado esquife
	de tantos seres fulgurados na linguagem
	& apagados da correnteza da existência
	igual aos vaga-lumes que na densa noite
	se apagam a perder de vista & ninguém sabe
	se voltarão um dia à formação do fogo
	nas entranhas ou se findaram como tudo
	teima em findar teima em findar teima em findar
	como o clichê de agora recordar a infância
	por certo deslembrada pela mó do tempo
	para encontrar perdida alguma brincadeira
	“é pra falar paca-tatu cotia não”
	“paca-tatu cotia não” “preste atenção
	paca tatu cotia não” “paca-tatu
	cotia não?” “paca-tatu COTIA NÃO”
	“mas que piada é essa?” “bom deixa pra lá
	você devia só falar paca-tatu”
	você dizia pedra & pedra eu respondi
	enquanto olhávamos pasmados as montanhas
	imaginando a massa mineral por baixo
	do som compacto que ecoava nos motores
	de cada carro & completava os silêncios
	deliberados com a forma sem compreensão
	desta pedra-sabão da bauxita ao granito
	& da criação de novas pedras preciosas
	em nossa mente dupla ampliando o catálogo
	das ametistas turmalinas esmeraldas
	para fundar em meio às cores outras cores
	na cristalografia muda das viagens
	você dizia índio & índio eu respondi
	& hesitamos perante as peles dos curtumes
	da nossa história categórica infinita
	& refinada pelo olhar microcromático
	mais necessário para revirar a história
	do que a ambiopia precavida da política
	você dizia tempo espaço forma fundo
	& tempo espaço forma fundo eu respondi
	sabendo que imperava misturá-los todos
	para cartografar as temporalidades
	inverter previsões fundir as perspectivas
	sob a cama do corpo sob o sal do corpo
	você dizia sol você dizia som
	& cada vaga se criava na explosão
	dos concebíveis sol & som que eu respondi
	você dizia sempre & sempre eu respondi
	cada um revelava um amuleto-caixa
	com seus besouros dentro & acreditamos sempre
	saber o que haveria dentro como dentro
	dos corpos encerrados sob a própria pele
	tudo seguia num desvio como as curvas
	da serra seguia certo & incomunicável
	como um diálogo qualquer & como o nosso
	mas diga você viu?  a baía lá embaixo?
	aquelas construções não há cimento algum
	parecem reverter só a devastação
	a paisagem do rio continua crescendo
	em outra geografia para além da cidade
	humana & desumana urbana & contraurbana
	& ao mesmo tempo abala & ao mesmo tempo exige
	nossa dicotomia a formação da fala
	& tudo se dissolve em decomposições
	para firmar o nó que nós anunciaremos
	em pântifes branetas pentisáveis
	qual trompe conlecida em danastério
	cansite a flença ranga de maláveis
	& assim maremos dalo com gamério
	quirado & daporemos entre clague
	que anfite a fopla gulda do samério
	xaremos prolas nântias junto à nague
	condistupêndias lêmpiras do crosto
	té pencararmos tastos essa antrague
	para enxugarmos o que desce em nosso rosto
	enquanto a chuva assola asfalto carro mata
	bichos & pedras plantas vidros pensamentos
	& o musgo frágil da palavra iniciada
	sem coisa em mente que lhe force a uma meta
	estanca úmido peguento em nossas bocas
	somos silêncio & o fim da serra como o fim
	da chuva já se vê embora essas palavras
	perdurem num sentido vago & verdadeiro
	nunca nos encontramos claro & bem sabíamos
	que em todos os lugares como neste carro
	as mãos se encontram de algum modo insondável
	por asperezas do que toca & é tocado
	de quem de nós presente o espaço do sentido
	diferente de pé submerso & língua alheia
	após as curvas palmilhadas do declive
	sem respostas que forjem uma ponte firme
	para falarmos mesma coisa língua pacto
	& tudo desce feito rio lamacento
	transbordando enxurrada revirando terra
	para as voragens do relâmpago na noite
	& tudo esbarra nas barrancas desse rio
	para açular açudes todos contra tudo
	que em torno vive & é mais sagrado que as palavras
	& tudo se difere em turbilhões que acabam
	por se acabar no mar que cobre esta baía
	& tudo nos convida & a tudo nós cedemos
	
	apostando de novo na invenção do mar
	
	
	Guilherme Gontijo Flores (Brasília, 1984) é poeta, tradutor e professor de Língua e Literatura Latina na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Lançou traduções de As Janelas, Seguidas de Poemas em Prosa Franceses, de Rainer Maria Rilke (Crisálida, 2009, em parceria com Bruno D’Abruzzo) e A Anatomia da Melancolia, de Robert Burton (UFPR, 2011-2013), entre outras. Publicou os poemas de brasa enganosa (Patuá, 2013), finalista do prêmio Portugal Telecom, e o poema-site Tróiades