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Cooperativismo: a força do coletivo
Uma sociedade em que o homem, e não o dinheiro, seria o centro da economia. É isso que propõe a Economia Solidária, que conta hoje com 20 mil iniciativas e 1,5 milhão de trabalhadores no Brasil, segundo dados do Mapeamento Nacional da Economia Solidária, feito pela Secretaria Nacional de Economia Solidária. Em um mundo onde se visa cada vez mais ao lucro, como viabilizar essa outra lógica de produção para ter outro modelo de desenvolvimento? Analisam o tema o articulador comunitário da União Popular de Mulheres de Campo Limpo e Adjacências Rafael Mesquita e os membros do Núcleo de Economia Solidária da Universidade de São Paulo (Nesol-USP) Juliana Braz, Silvia Soares de Camargo e Denizart Fazio.
Trabalho e democracia: novas práticas econômicas
por Juliana Braz, Silvia Soares de Camargo e Denizart Fazio
Pergunte sempre a cada ideia:
a quem serves?
(Berthold Brecht)
Você já se perguntou sobre como seria a sociedade em que você gostaria de viver? Como você acha que as relações deveriam ser? O que você faria diferente?
Muitas vezes reproduzimos ideias, ações e relações, sem nos perguntar de onde vieram e qual seu objetivo; sem nos perguntar como gostaríamos que a sociedade em que vivemos fosse diferente. Um dos motivos disso é que o modelo de desenvolvimento capitalista, adotado pela nossa sociedade, parece ser a única, a melhor, e a forma natural de viver em sociedade. Porém, o sistema capitalista (assim como todos os sistemas sócio-político-econômicos) não é natural, em outras palavras, ele foi e é construído pelos seres humanos. Por isso, também não é o único: é apenas um dos inúmeros sistemas nos quais é possível viver. Tampouco é o melhor, dado que seu objetivo central é o lucro e a acumulação material, independentemente da qualidade de vida e das relações pessoais.
Por que não criarmos um sistema no qual o ser humano seja o centro, em vez da acumulação de lucro e capital? É preciso cuidar para não sermos como o machado cantado por Tom Zé, “que fere o sândalo e ainda quer sair perfumado”. Para isso, é necessário criar novos sistemas sócio-político-econômicos. E, em se tratando de criações humanas, as possibilidades são inúmeras.
Sabemos que isso não é fácil e requer não só que muitas pessoas queiram mudar o mundo, mas também que tenham ações comuns. A economia solidária agrega pessoas que há muito tempo estão tornando esse outro mundo uma realidade, em ações que colocam o ser humano como o centro da vida, e não o lucro de poucos com a exploração do trabalho de muitos. Quem impõe o objetivo da nossa sociedade?
Para que um sistema sócio-político-econômico funcione é necessário que ele seja compartilhado pelas pessoas, de modo que diversas opiniões possam ser contempladas na realização de uma nova sociedade. Entendemos que o caminho mais justo para essa construção é partir do trabalho coletivo e das decisões democráticas. Trata-se de pensar coletivamente o sistema de produção, distribuição e consumo dos bens e serviços, e sua relação com os recursos humanos e naturais com os quais nos deparamos. São essas experiências da Economia Solidária que agora apresentamos.
No campo da produção, os trabalhadores se organizam de forma cooperativa nas chamadas empresas recuperadas que surgiram no final dos anos 1980, em sua maioria, oriundas de massas falidas e que passam a ser geridas pelos próprios trabalhadores. A Uniforja – Cooperativa Central de Produção Industrial de Trabalhadores em Metalurgia (Diadema-São Paulo), que conta com 300 sócios-trabalhadores, e a mina de carvão Cooperminas (Criciúma-SC), que possui mais de 700 sócios-mineiros, são importantes exemplos. Ainda ao falar da produção, tem-se um conjunto de grupos organizados em cooperativas e empreendimentos de economia solidária nas áreas de alimentação, costura, artesanato, produção cultural, dentre outros. As cooperativas de catadores de resíduos sólidos são um importante exemplo da organização dos trabalhadores para o trabalho coletivo. Não podemos esquecer a produção agrícola de pequeno porte e a familiar organizadas em associações, cooperativas e redes de comercialização que se articulam a outros movimentos por uma agricultura livre de agrotóxicos e mais justa, como propõe a agroecologia.
Se é a construção de uma nova economia regida pela autogestão, suas práticas não podem se restringir à organização interna dos empreendimentos, e sim expandir-se para a relação com todo o processo de produção. Exemplos dessa articulação são as cadeias produtivas solidárias como a Justa Trama (cadeia do algodão agroecológico), que agrega mais de 700 trabalhadores divididos em cinco empreendimentos e atua em toda a cadeia, da plantação do algodão, passando pela fiação e produção do tecido, à costura das roupas e sua customização. Os trabalhadores discutem de forma conjunta sobre o preço final e a divisão igualitária dos custos e ganhos de cada um dos empreendimentos envolvidos. Ou seja, a gestão compartilhada extrapola os muros de um único empreendimento.
E quem produz quer vender. Mas na economia solidária isso não é feito de qualquer forma. A comercialização vem de braços dados com o debate do comércio justo e solidário, pois a relação de compra e venda também precisa de novos princípios. Dessa forma, a ideia do contínuo estímulo ao consumo para maior produção e suposto desenvolvimento dá lugar a um consumo baseado na reflexão sobre o que consumimos, para quê, como foi produzido, que benefícios traz e a quem. Vale lembrar que numa economia solidária produtores e consumidores atuam do mesmo lado numa relação de troca e não de competição. Assim, a constituição de espaços de comercialização da economia solidária proporciona que essa relação se estabeleça de forma justa.
Em um mundo onde os bancos visam cada vez mais ao lucro e investem apenas no mercado financeiro especulativo, onde dinheiro vira mais dinheiro, como financiamos essa outra lógica de produção? A partir do que chamamos de iniciativas de finanças solidárias, sendo as cooperativas de crédito, os bancos comunitários de desenvolvimento e os fundos solidários suas principais expressões. Todas elas têm um objetivo em comum: produzir um outro modelo de desenvolvimento. Assim, os critérios de para quem e como se realiza esse financiamento é oposto à lógica financeira atual: aos pequenos menores juros, a lógica da confiança e da solidariedade prevalece ao ganho financeiro. Um exemplo muito conhecido é um banco gerido pela própria comunidade, que fica no Conjunto Palmeiras, em Fortaleza, Ceará, e que existe desde 1998: o Banco Palmas. Ele dá suporte, com a oferta de serviços financeiros, aos empreendimentos locais e estimula a criação de novos, como a PalmaLimpe, a PalmaTur e a PalmaFashion. O consumo local é estimulado por meio da moeda social local criada pelos moradores do bairro: a Palmas. Essa iniciativa foi inspiração para muitas outras, como o Banco Comunitário União Sampaio, em São Paulo, que articula o debate da diversidade cultural com o desenvolvimento local.
Essa é uma pequena amostra da economia solidária no Brasil, que conta hoje com 20 mil iniciativas e 1,5 milhão de trabalhadores, segundo dados do Mapeamento Nacional da Economia Solidária da Secretaria Nacional de Economia Solidária.
Ao lado dessas inúmeras experiências está a universidade, articulando pesquisa, ensino e extensão, no apoio à consolidação dessas experiências. Essa aliança com os grupos da economia solidária pode se dar de modos muito diferentes, da incubação e assessoria diretamente aos grupos, assessorias na consolidação de políticas públicas, pesquisas que possam contribuir nas ações e projetos de futuro das comunidades. A universidade que se propõe, a partir da extensão universitária, a um diálogo consistente com as comunidades que estão produzindo experiências econômicas transformadoras pode aliar suas áreas de conhecimento e sua estrutura, em ações conjuntas e reflexões sistemáticas que também extrapolem os muros da universidade. Há mais de uma centena de grupos universitários que estão aliando a universidade e as comunidades em torno de experiências da Economia Solidária. Dessa maneira, não apenas as comunidades têm suas experiências potencializadas, mas a própria universidade se vê permeada pela ideia de construções menos hierarquizadas, mais democráticas e autogestionadas.
É nessa trama de experiências chamada de Economia Solidária que milhões de pessoas estão respondendo na prática à pergunta de em que sociedade gostaríamos de viver: uma sociedade em que o ser humano seja o centro da vida, em que as relações econômicas sejam justas e solidárias, as formas de produção horizontais e democráticas, as finanças solidárias, as universidades implicadas com questões públicas relevantes.
“Para que um sistema sócio-político-econômico funcione é necessário que ele seja compartilhado pelas pessoas, de modo que diversas opiniões possam ser contempladas na realização de uma nova sociedade. O caminho mais justo para essa construção é partir do trabalho coletivo e das decisões democráticas”
Juliana Braz, Silvia Soares de Camargo e Denizart Fazio são membros do
Núcleo de Economia Solidária da Universidade de São Paulo (Nesol-USP)
Eu não li, eu não assisti, eu vivo a Economia Solidária
por Rafael Mesquita
É inspirado na música Negro Drama do Racionais MC’s que me sinto à vontade para dizer que somos este movimento de resistência e construção de uma outra sociedade, na qual “me vê, pobre, preso ou morto” não seja mais cultural, mas que a nossa cultura seja nossa principal riqueza, pois o que mais temos aqui são “exemplos de vitórias, trajetos e glórias”. Por isso estamos construindo metodologias e tecnologias sociais que valorizam nossa cultura, nosso modo de vida, através de ações pautadas em princípios como Igualdade, com respeito e preservação às diversidades (povos originários, tradicionais e periféricos), democracia nas decisões e acesso às políticas, cooperação e autonomia. Assim estamos criando outras formas de desenvolvimento e trabalho pautados na autogestão e no bem-estar coletivo.
E é isso que é Economia Solidária para nós, este movimento que se propõe a reconstruir nossa sociedade colocando o homem no centro da economia, e não o dinheiro.
“Eu sei quem trama, e quem tá comigo, o trauma que eu carrego, pra não ser mais um preto f*****... Você deve tá pensando, o que você tem a ver com isso? Desde o início, por ouro e prata... Senhor de engenho, eu sei, bem quem você é”
Somos um movimento que atua entre a legalidade e a transgressão, na luta pela descriminalização e reconhecimento pelo Estado de nossas “novas” formas de organização para o trabalho.
Sendo assim, uma de nossas práticas para essa construção é a educação popular, na qual reconhecemos que todos têm saberes, e que o conhecimento só é construído a partir da troca, tornando assim todos os espaços em locais de troca de saberes, fazeres e produtos, participação política e autogestão, tendo como objetivo a criação de novas tecnologias sociais voltadas para o maior bem-estar coletivo, e não a escravidão moderna.
Sempre reconhecemos, valorizamos e difundimos a cultura popular, tradicional, originária, cigana, hip-hop e todas que fazem parte da construção de nossa periferia.
“Crime, futebol, música, c******, eu também não consegui fugir disso aí, eu sou mais um, Forest Gump é mato, eu prefiro contar uma história real, vou contar a minha...”
Conhecemos o Movimento de Economia Solidária em 2008, quando estávamos organizando uma Feira Sociocultural no Jd. Maria Sampaio, periferia da Zona Sul de São Paulo. Organizada de forma coletiva, foi um momento em que juntamos todos os recursos pessoais e materiais disponíveis em nossa comunidade e fizemos mais de dez horas de festa com prestação de serviço à comunidade, uma feira popular e solidária e atividades culturais, tudo tendo a comunidade como protagonista, uma festa de “nóis pra nóis”. E foi aí que tivemos nosso primeiro contato com a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade de São Paulo (ITCP-USP) e o movimento de Economia Solidária. Foi então que descobrimos que as metodologias e os valores praticados e disseminados em nosso cotidiano estavam também sistematizados e organizados na luta política.
A partir desse momento tivemos a oportunidade de conhecer e trocar com muitos coletivos e pessoas que praticam estes valores e metodologias na sua forma de reprodução da vida, podendo assim potencializar nossas ações já existentes, como os espaços de troca de produtos, saberes e fazeres e a criação de novas tecnologias, para dar conta das demandas históricas de exclusão social, econômica e política.
“Não foi sempre dito, que preto não tem vez, então olha o castelo e não foi você quem fez, c****... Olha quem morre, então veja você quem mata, recebe o mérito, a farda, que pratica o mal.”
Diante disso decidimos construir nosso próprio banco, o Banco Comunitário União Sampaio, para democratizar os serviços financeiros e bancários, possibilitando o acesso ao crédito de forma justa e democrática, um banco com dois objetivos estratégicos:
“Uma negra, e uma criança nos braços, solitária na floresta de concreto e aço”
1. Fortalecer as ações de combate ao machismo, à violência contra a mulher e doméstica, por meio de práticas que possibilitem uma emancipação política, social e financeira dessa mulher, como a oferta de cursos de corte e costura, assessoria técnica para iniciar e aprender a gerenciar seu negócio, crédito para comprar matéria-prima e equipamento, e inclusão dela em redes solidárias de troca de serviço local.
“O dinheiro tira um homem da miséria, mas não pode arrancar, de dentro dele, a favela” (sua cultura)
2. Fortalecer a economia local pelo incentivo à economia da cultura, iniciativa que cria a Agência Popular de Fomento à Cultura Solano Trindade, que articula o fomento à produção e à comercialização da produção artística local, e o projeto Redes, que incentiva o protagonismo juvenil.
Sendo assim, hoje somos uma alternativa real de geração de trabalho e renda com base nesses princípios e metodologias, que valorizam os agentes culturais locais fortalecendo uma rede de proteção popular, com mais de 100 agentes, que permitiu que organizássemos coletivamente em junho de 2014 um grande festival de cultura e economia solidária com mais de 10 mil pessoas no Capão Redondo, tendo nossa comunidade como protagonista.
“Uma de nossas práticas é a educação popular, na qual reconhecemos que o conhecimento só é construído a partir da troca, tornando todos os espaços locais de troca de saberes, fazeres e produtos, participação política e autogestão”
Rafael Mesquita é articulador comunitário na União Popular de Mulheres de Campo Limpo e Adjacências.