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Fugere urbem
Vitor Hugo Zenezi Longo



"Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
Que viva de guardar alheio gado;
De tosco trato, d'expressões grosseiro,
Dos frios gelos, e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal, e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Das brancas ovelhinhas tiro o leite;
E mais as finas lãs, de que me visto."

(Tomás Antônio Gonzaga)

Arcadismo. Sabemos que este movimento literário tinha como característica principal exaltar a natureza como um lugar de purificação cuja simplicidade opunha-se à artificialidade da vida citadina. Uma outra característica era a preocupação com o homem natural (que ainda não foi corrompido pela civilização - o bom selvagem de Rousseau - ou, por outro ângulo, aquele ser composto de carne, ossos e sangue a cujos impulsos deve obedecer).
Esse era o tema da professora na sala do colégio estadual da pequena cidade do interior do estado, mais ou menos vinte anos atrás. Na verdade o que vejo é o contorno daquela mulher formado pela luz intensa da janela que tomava toda a parede a revelar um horizonte quase infinito de campos, plantações e céu aberto.
Anos se passaram e estamos no agora repleto de informações, plugs, links e tal. Todos esses anos recebendo, assimilando, deglutindo, reproduzindo e recodificando sons, palavras, comportamentos, idéias e opiniões, a cada segundo, de forma mais instantânea, através dos mais modernos meios.
O conforto e a comodidade proporcionados pelo avanço tecnológico, aliados ao tão desejado padrão de vida mais natural, permitem ao indivíduo uma relação peculiar com o tempo. Passa-se a respeitá-lo com surpreendente naturalidade. Os momentos de lazer, de convivência familiar, assumem especial valor no tempo livre .
Além disso, questões fundamentais como o comportamento social mantêm ainda hoje reflexos do passado, e as relações interpessoais são mais estreitas que as dos grandes centros.
Preservamos nossas "manias". Temos cultura de raiz, festas populares, cururu, catira. Maravilhosos artistas do pintar primitivo, poetas e músicos. "Exportamos" para os grandes centros incontáveis talentos das mais variadas áreas. Temos bem mais que música sertaneja e festas de rodeio, acredite. Nosso horizonte é amplo e inédito a muita gente. Algumas vezes inédito à própria gente dos vários e diferentes interiores deste estado. E talvez aqui, nas cidades de médio porte do interior, estejamos próximos de alcançar este curioso equilíbrio entre o universo da cidade grande e o ideário árcade.
O trabalho desenvolvido pelo Sesc em suas unidades do interior e capital muito tem contribuído para encurtar distâncias, provocar reflexões e estimular a produção cultural, através de iniciativas como os projetos itinerantes 100 anos de Brecht (1997), Lorca na Rua (98), Coração dos Outros - Saravá, Mário de Andrade!(99). Agora, com o Balaio Brasil percorrendo quase oitenta cidades do estado, conferimos uma preciosa possibilidade de estabelecer costuras entre as mais variadas vozes sonantes e dissonantes do interior deste país, numa rara oportunidade de intercâmbio, provocação e aprendizado.
Felizmente, apesar do caráter quase "desbravador", essas ações não estão isoladas.
Nos últimos anos, empresários e - guardadas as proporções - boa parte do poder público têm se voltado para projetos nas áreas de cultura e lazer. Resposta às exigências de um público cada vez mais preparado e questionador.
Este pode ser o início do processo que irá fazer do interior um lugar ainda melhor para se viver.

Vitor Hugo Zenezi Longo é jornalista
e gerente-adjunto do Sesc Rio Preto