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Cinema
Cinédia: a Hollywood tupiniquim
Mês passado, a Cinédia completou 70 anos: um projeto cinematográfico ambicioso do jornalista Adhemar Gonzaga, que pretendia criar uma Hollywood brasileira
Foi no início dos anos trinta que nasceram os primeiros clássicos do cinema falado brasileiro e que a nossa cinematografia alcançou certa plenitude. Porém, se o filme sonorizado era um novo atrativo para o público em todo o mundo, a nova linguagem mostrava-se um grande desafio à produção nacional. Foi nesse contexto que o jornalista Adhemar Gonzaga, integrante do grupo responsável pelas revistas culturais Para Todos, Selecta e Cinearte, inaugurou a Cinédia, o mais arrojado empreendimento cinematográfico da época, que em 2000 completa 70 anos.
Sem qualquer experiência na produção de filmes, apesar de ser um estudioso da sétima arte, Gonzaga construiu não apenas um estúdio, mas importou equipamentos, montou laboratórios, criou uma distribuidora de filmes e contratou nomes de valor, tais como os diretores Humberto Mauro (Ganga Bruta, de 1933 ) e Mário Peixoto (Limite, de 1931).
Na década de vinte, a maioria das produções nacionais estava voltada para a realização de cinejornais e documentários. Ocorre que naquele período a produção nacional já dava mostras de que podia dominar os recursos do cinema narrativo de ficção, os chamados filmes "posados". Assim, entre 1924 e 1930, Adhemar Gonzaga e seu colega Pedro Lima veicularam uma forte campanha em defesa do cinema brasileiro por meio das revistas do grupo. Foram propostas as seguintes medidas: uma lei que obrigasse os cinemas a exibir filmes nacionais, a concentração de esforços em torno da realização de "posados", a criação de uma distribuidora única de "posados" nacionais, a isenção da taxa alfandegária cobrada pelo governo na importação de filme virgem e o desenvolvimento de um modelo de industrialização calcado, sobretudo, em Hollywood, ou seja, com o fator artístico fortemente inspirado no cinema americano dos anos vinte.
Próximo filme: "um estúdio!"
Barro Humano, de 1929, foi o primeiro filme feito com a colaboração intensa do grupo responsável pela revista Cinearte, desde a orientação sobre o argumento, escolha de artistas até a produção do filme e direção, executada por Adhemar Gonzaga. O filme, o primeiro arroubo cinematográfico do jornalista, foi um grande êxito de público e bilheteria. No roldão do sucesso, respondendo a um repórter que lhe perguntou qual seria seu próximo filme, ele afirmou: "Um estúdio!". Assim, no dia 15 de março de 1930, os jornais anunciaram nas manchetes culturais: "Uma nova empresa - Produções Cinédia. Adhemar Gonzaga produzirá vários filmes no Cinearte Estúdio".
A construção dos estúdios no bairro carioca de São Cristóvão foi o resultado de vários anos de luta de Gonzaga pela efetiva implantação de uma indústria cinematográfica no Brasil. O investimento foi feito com os fundos de uma herança paterna, já que de outra forma seria impossível angariar o montante necessário para uma empreitada daquele porte. Os estúdios criados por Adhemar foram ocupados por todas as empresas cinematográficas do país, inclusive pela sua Cinédia. "A minha empresa foi fundada para edificar o verdadeiro cinema brasileiro. Ela foi lançada exclusivamente com nosso esforço e nossos capitais. Vamos mostrar que podemos criar uma arte nossa, nova e legítima, capaz de transformar o sorriso dos pessimistas num grito de entusiasmo", disse Gonzaga na época.
Em vinte anos, Adhemar Gonzaga realizou quase mil curtas-metragens (entre cinejornais, documentários e ficção) e 93 longas-metragens, dos quais 56 são produções próprias. De acordo com Alice Gonzaga, filha de Adhemar, produtora, diretora e atual superintendente da empresa, pode-se destacar alguns filmes por seus méritos específicos: Alô, Alô, Carnaval, o maior musical; Ganga Bruta, o clássico; Bonequinha de Seda, o espetáculo; O Ébrio, a maior bilheteria, o sucesso; 24 Horas de Sonho, o luxo; Pinguinho de Gente, o maior orçamento.
Cinema "falado"
Segundo Máximo Barro, professor da FAAP e historiador de cinema, "Gonzaga inicialmente repudiava o cinema sonoro enquanto arte. Mas, depois de uma viagem aos Estados Unidos, percebeu que não haveria como evitar o novo recurso. Essa transição, do cinema mudo para o falado, gerou uma crise, pois tudo se tornou mais caro. Antes, era possível fazer cinema com uma câmera de madeira, mas com a mudança tudo teve de ser reequipado com materiais de alto nível. O som era gravado em discos e a partir deles dublava-se o filme. Não havia sonorização nas salas". Para o professor, o erro da Cinédia foi não importar os técnicos junto com os equipamentos: "O que os técnicos brasileiros entendiam de gravação? Nada. E mais ainda, nem dinheiro tinham. Era feita uma tomada e tinha de ser aquela!".
Mas para Alice Gonzaga, essa particularidade representa um mérito do pai: "Seu objetivo era criar um cinema brasileiro feito por brasileiros. Como um bom nacionalista, ele não admitia uma suposta inferioridade dos nossos técnicos".
Em Ganga Bruta (1933) já se utilizou a sonorização, mas foi A Voz do Carnaval, do mesmo ano, o primeiro filme falado e trilhado por sambas e canções de grandes músicos da época, como Lamartine Babo, Noel Rosa, Francisco Alves e Benedito Lacerda.
Máximo Barro conta ainda que quando foi fundada a Cinédia tinha, segundo os ideais do grupo criador, o intuito de produzir filmes dramáticos, sérios, e nunca filmes carnavalescos. Para o grupo, fitas desse gênero eram de qualidade inferior e serviam de "ópio" para o povo. Mas, no fim das contas, foi necessário produzi-los para que filmes "sérios" pudessem ser financiados. Mesmo assim, a forma encontrada por Gonzaga para sustentar a Cinédia ao longo dos anos 1930 e 40 não foi a realização de filmes de ficção, que concorriam desigualmente com os grandes filmes americanos, mas a produção de documentários e cinejornais.
As dificuldades
Alice constata que "a maior dificuldade que a empresa enfrentou no passado é a mesma de hoje: a distribuição, que compromete o retorno financeiro do investimento". Assim, em 1941, Gonzaga suspendeu os planos de produção de filmes, mas, segundo Alice, jamais se cogitou o fechamento da empresa. Em 1942, o cineasta americano Orson Welles (diretor do clássico Cidadão Kane), vinculado à empresa RKO, veio ao Brasil para filmar o documentário It's All True e alugou os estúdios da Cinédia. "A passagem de Welles pela Cinédia deixou uma grande lição. Quando os americanos cancelaram o apoio financeiro e técnico para a realização do filme, ele pôde contar apenas com a infra-estrutura e os técnicos brasileiros. E mesmo assim realizou uma obra-prima", conta Alice.
Na opinião do professor Máximo, isso deve ter representado uma grande dificuldade para o cineasta americano, já que o equipamento utilizado era de cinema mudo adaptado ao sonoro, comprado de segunda mão nos Estados Unidos. Gonzaga tentou ainda fazer filmes em São Paulo, mas, em 1956, retornou ao Rio, transferindo os estúdios para o bairro de Jacarepaguá, onde funcionam até hoje, tendo seus espaços e equipamentos alugados para a produção cinematográfica, televisiva e publicitária.
A síntese do sonho de Adhemar Gonzaga está nas palavras de Máximo Barro: "Ele jogou tudo numa aventura: o cinema. E por isso atolou-se em dívidas. Deveríamos abençoá-lo".
Cinema e carnaval - Os filmes que foram o carro-chefe da Cinédia "Graças aos filmes musicais carnavalescos, o público ia ao cinema para ver filme brasileiro. O cinema não fez esses artistas, eles já tinham sucesso nos discos e no rádio. O público queria ver os astros. Pessoas como Carmem Miranda, Braguinha, Mário Reis e Ciro Monteiro faziam filmes para saciar os antigos fãs. A Cinédia fez a pré-chanchada, que seria produzida largamente pela Atlântida a partir de 1940", explica Máximo Barro, professor e historiador de cinema brasileiro. O grande sucesso desse gênero produzido pela Cinédia foi Alô, Alô, Carnaval. Segundo uma crítica publicada em 1936, no jornal A Noite: "O público carioca, sempre inclinado a aceitar e aplaudir as produções nacionais e fã das canções carnavalescas, vai gostar do filme, cuja permanência, no cartaz do Alhambra, durará, talvez, até quando o ruído alegre dos pandeiros e dos tamborins começar a galvanizar as multidões para a imensa folia de Momo". Torna-se evidente que este era um gênero promissor. "Após este filme, a Cinédia passou a fazer, obrigatoriamente, em todo mês de fevereiro, um carnavalesco. Os filmes estavam datados, portanto, a durar um ano. Às vezes, colocavam no título uma música de carnaval que nem era tocada no filme! Mas, enfim, eram um sucesso", relata o professor. |