Postado em
Memória
O ofício do restaurador
Os guardiões do passado
Com cerca de cinqüenta anos de existência oficial no Brasil, a profissão de restaurador e conservador de bens culturais encontra, no mundo das novas tecnologias, um novo fôlego para continuar a luta pela memória
Corria a década de 1920. Precisamente 1922, ano da célebre Semana de Arte Moderna. Na época em que Mário de Andrade criava Macunaíma, Oswald redigia o Manifesto Antropofágico, Tarsila do Amaral pintava as cores tropicais e Villa-Lobos compunha inspirado pela música popular. Esse período particularmente nacionalista dava suporte a uma figura que fundamentava ainda mais a ideologia vigente e despontava cada vez mais no panorama cultural brasileiro: o restaurador. Grosso modo, a figura responsável por reunir, restaurar e conservar bens culturais.
Muito embora o ofício em si seja quase que inerente ao ser humano (os povos primitivos faziam isso quando passavam seus conhecimentos oralmente de pai para filho e nós mesmos o fazemos quando guardamos fotos de nossos antepassados), foi em 1937 que a profissão se oficializou no país. Nesse ano foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o SPHAN (hoje conhecido como IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional), tendo à sua frente o jornalista, escritor e historiador de arte Rodrigo Melo Franco de Andrade. Porém, os governos que se sucederam à era Vargas pouco se importaram com a questão da preservação da memória histórico-cultural brasileira, a ponto de em 13 de maio de 1974, em entrevista ao jornal O Globo, o restaurador Edson Motta, um dos pioneiros, afirmar que o número de profissionais no país era "ridículo". De fato, para um país com um acervo artístico riquíssimo como o nosso, os 42 restauradores existentes oficialmente na época eram uma prova do descaso das autoridades competentes para com os grandes mestres e seu legado.
Em 1973 foi criado o Programa Integrado de Reconstrução de Cidades Históricas Nordestinas e em 1980 surgiu a Associação Brasileira de Conservadores-Restauradores de Bens Culturais (Abracor), órgão com uma posição mais política em relação às questões que envolvem o papel do profissional de restauração na sociedade.
Os museus e as caixas de sapato
Se fosse o caso de definir a função do restaurador, poderia se dizer que ele faz profissionalmente o que cada um de nós, quase que por instinto, fazemos com o que nos é caro. Maria Luisa Ramos de Oliveira Soares, presidente da Abracor, lança esta comparação: "Quando nós guardamos pertences de nossos avós ou a foto de casamento de nossos pais, estamos montando nosso acervo pessoal. É claro que a maioria das pessoas faz isso de forma um tanto atrapalhada, guarda as fotos numa caixa de sapatos dentro do armário. Os museus fazem basicamente a mesma coisa. Eles guardam procurando preservar. E o profissional que faz isso é o restaurador".
O que esse ofício tem de fascinante é, sem dúvida, seu caráter multidisciplinar. Se por um lado ele exige do profissional o domínio de ciências exatas como química, biologia e física, por outro, o restaurador deve entender de cada movimento ou manifestação artística. Isso sem contar o conhecimento de tintas, texturas e técnicas usadas por artistas. "Eu fico fascinada em ver o leque de possibilidades que envolve o ofício do restaurador", comenta Maria Luisa. Ela diz, ainda, que a restauração atrai, evidentemente, a pessoa que tenha sensibilidade para a cultura e para as artes. Porém, ela pode vir dos laboratórios de química ou das faculdades de história. Desde que se preocupe em perceber que o fazer do restauro exige uma comunhão de conhecimentos. "O profissional com uma inclinação para tarefas multidisciplinares está descobrindo que tem um campo imenso", anima-se. "Os biólogos ficam enlouquecidos, porque eles não associavam o que aprendiam na universidade aos danos de patrimônio causados por cupins, por exemplo."
Ética e tinta
Márcia Rizzo é uma dessas pessoas que percebeu o encanto por trás da arte de conservar arte. Aos 17 anos, ingressou na faculdade de artes plásticas, logo em seguida passou a trabalhar com restauradores e apaixonou-se pelo ofício. "Eu aprendi primeiro na prática, depois fui fazendo cursos isolados para preencher as lacunas que achava importantes", conta. "Fiz um curso de química aplicada à restauração, além de cursos de retoque, limpeza e história da arte."
Por se tratar de uma profissão que basicamente cuida da reconstrução de trabalhos de outras pessoas, uma questão importante é a ética que, segundo Márcia, seria disciplina obrigatória na grade curricular de um curso de formação profissional. "Se você não sabe como é a obra, você não restaura. Esse é o correto. Normalmente conserta-se um detalhe. Por exemplo: tem um braço de uma figura com uma lasquinha de tinta faltando. Não tem muito segredo, é só acompanhar a cor do restante do braço. Agora, se falta a mão inteira, não se deve fazer."
O dia-a-dia de um restaurador envolve dedicação, paciência e precisão. Uma das últimas obras que Márcia restaurou foi um quadro húngaro de mais de um século, vítima até de uma guerra. "A camada pictórica daquele quadro estava descolando pela ação do tempo. Além disso, a tela estava rasgada. Primeiro fixei a camada pictórica para depois me concentrar em fechar o rasgo." Mesmo sendo o pincel um dos principais instrumentos do restaurador, Márcia finaliza sugerindo cuidado. "É claro que é necessário ter sensibilidade, mas não é um trabalho artístico, é técnico."
Polêmica na Capela
Aliás, arte e tecnica às vezes conflitam durante uma restauração, gerando polêmica. Principalmente no caso de grandes trabalhos envolvendo patrimônios universais. A Capela Sistina, no Vaticano, nunca esteve tão na pauta do dia quanto no momento em que começou a exigir restauro. Não é para menos, estamos falando de restaurar Michelangelo. Temia-se descaracterizar a obra, limpando-a excessivamente. Depois de muita discussão, os restauradores envolvidos acabaram aplicando um gel de limpeza, deixando-o a metade do tempo necessário. O resultado foi o resgate dos detalhes, porém sem apagar as marcas do tempo, uma prova da longevidade do fascínio pelo artista.
No caso da Capela Sistina, isso foi relativamente simples por se tratar de um afresco (pintura em parede), mas quando o objeto de restauro é uma tela, as coisas ficam mais complicadas. Tecnicamente, o que acontece com a maioria dos quadros é que a camada de verniz que os artistas geralmente aplicavam sobre as tintas, para fixá-las, reagia com o oxigênio, por ser de resina natural. Por isso aquele aspecto amarelecido comum aos quadros antigos. Nesses casos, o papel do restaurador é remover o verniz, devolvendo as cores originais.
Para maiores informações consulte o site www.patrimoniosp.com.br .
|