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Balaio Brasil
Um pouco de tudo
O show que estava prestes a começar no domingo, dia 19 de novembro, não era só de música. E até por isso, a vocalista não era bem uma cantora. Seu ofício envolve igualmente a emissão de palavras, mas palavras cujo suporte primeiro, em vez da voz, é o papel. Sobre o palco iluminado, na companhia de quatro músicos, a poetisa mineira, Adélia Prado, desinibida com tanta gente, declamava (ou cantava?), acompanhada de acordes barrocos, os versos contidos em seu livro Oráculo de Maio.
No auditório do Sesc Vila Mariana, tinha início mais uma das 150 atrações que compuseram o Balaio Brasil, resultado das andanças dos técnicos do Sesc pelo país afora. O projeto buscou realçar a produção nacional nas áreas de teatro, música e dança que ainda não tivesse galgado as escadas da mídia de massa; manifestações por vezes esquecidas no canto de uma praça qualquer, no centro de uma cidade minúscula de um certo interior.
Não que Adélia Prado padeça do desconhecimento alheio, nem que os anônimos mil, que luziram as unidades do Sesc mês passado, careçam de talento. Longe disso. O fato é que é raríssima a oportunidade de flagrar, no rádio ou na televisão, a poetisa alimentando sua própria arte ajaezada pela música composta por Mauro Rodrigues especialmente para os poemas. Por se insinuar com a atmosfera rebuscada dos versos do Oráculo, a cadência barroca foi eleita pela escritora, uma entusiasta do oboé e do violoncelo. "Eu adoro falar. Desde criança recitava na escola. As palavras ditas me encantam muito. A palavra falada, é verdade, vira uma outra coisa - ganha em oralidade, audição. Recitar é uma das coisas que mais me dá prazer. E faço isso com muita naturalidade", disse Adélia Prado antes de sua estréia como cantora.
Assim como Adélia, em outro ponto da cidade - precisamente na afamada praça do Poupatempo, adjacências do Sesc Carmo - a Cia. de Dança Grial, pernambucana da gema, apresentou um espetáculo que sintetizou o caldo do Balaio. Em Auto do Estudante que se Vendeu ao Diabo - Um Fausto Popular Brasileiro, a diretora Maria Paula Costa Rego levou às últimas conseqüências o conceito de fusão. "Nossa intenção é fazer um espetáculo de dança na rua. A coreografia é baseada em um folguedo natalino tradicional da Zona da Mata pernambucana, o Cavalo-Marinho."
Ao som da música A História de um Soldado, do compositor russo Igor Stravinski, o grupo mistura teatro e dança, encenando o enredo de um cordel escrito nos anos de 1930 por João Martins de Ataíde. "Esse autor paraibano se inspirou no filme O Estudante de Praga, de Stellan Rye, marco do expressionismo alemão", explica Maria Paula. "Nosso enredo é todo faustiano." O encontro de tantas manifestações distintas e originárias de tantos estados encantou a diretora, que busca criar uma linguagem brasileira por meio da essência dos folguedos. "É maravilhoso poder sentir o gosto e o cheiro de outros lugares, além disso, é muito bom encontrar nas diferenças regionais aspectos tão semelhantes."
"Um cuepo de Cueca-Cuela"
"Uma cabruêra! Foi assim que eu vi o Balaio, como uma grande cabruêra", brada o paraibano José Guilherme do Amaral Nogueira, que em seguida explica o vocábulo estranho nessas bandas sulinas. "Cabruêra, termo antigo do sertão da Paraíba, significa uma reunião de cabras; um conjunto de valentes. O bando de Lampião era uma cabruêra, por exemplo."
Cabruêra também é o nome do conjunto constituído por seis músicos que se conheceram nos bancos da Universidade Federal da Paraíba e hoje espalham sua música múltipla pelo país todo. "Tocamos baixo, sanfona, violão, viola de cantoria com doze cordas e percussão. Fazemos um som cujas referências são urbanas (hip-hop, rock, rap e blues), pois moramos em Campina Grande, mas temos influência direta no Movimento Armorial, ou seja, tem ciranda, forró, coco-de-embalada e maracatu."
José Guilherme diz que uma cabruêra como essa do Balaio é muito importante para dar visibilidade a manifestações que normalmente ficam confinadas: "Viemos representar uma cena musical muito forte que tem lugar na Paraíba, mas que o Brasil não conhece. Do mesmo modo que trouxemos algo novo, nós também levamos bastante coisa de volta".
Do extremo sul do país, aportou um outro grupo musical que faz da mistura uma virtude e uma marca pessoal. O Sombrero Luminoso, de Porto Alegre, se irmana com os "primos" da fronteira e canta seu pop rock pouco usual no mais legítimo portunhol. Os hermanos Santiago Neto, Renato Mujeiko, Sid, el Magnifico, Tchê Gomes e Luis Mauro Filho emplacaram há cerca de três meses o hit Mi Casa, Su Casa numa rádio popular de Porto Alegre e a partir de então o grupo decolou. "Nosso trabalho segue uma linha estética particular que utiliza o dialeto falado na fronteira do Brasil. É uma música que as pessoas não identificam direito de onde é, mas assim mesmo sentem que ela é nossa", explica Santiago Neto.
Além do rock, muito forte no Rio Grande, as referências austrais estão presentes nos pajadeiros (cantores da fronteira) e no figurino, "que tem um pouco dos anos 1970, mas é também futurista". Para os guris do Sombrero, tocar no Balaio foi a primeira experiência de se apresentar fora do estado de origem. "Ficamos muito felizes de representar o pé do Brasil. Temos certeza de que esse tipo de evento, que mistura gente de toda a parte, faz parte íntima do gaúcho, que está cercado de fronteira por todos os lados."