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Em Pauta
É preciso dividir o bolo

Apontada como uma das principais causas da miséria do país, é consenso que a desigualdade social precisa ser combatida. A distribuição da renda é o tema debatido por especialistas, fechando a série Em Pauta - 500 anos

Antonio Delfim Netto
é economista e ex-ministro da Fazenda

Passado o período em que as atenções estiveram voltadas prioritariamente para as eleições municipais, há uma discussão que deve ser retomada entre nós: trata-se dos problemas dos relacionamentos funcional e institucional entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que vêm crescendo de forma perturbadora.
Um dos fatores que mais contribui para essa situação é a forma como o poder Executivo dispõe da faculdade de emitir medidas provisórias. O governo da União, ao utilizá-la abusivamente, vem anulando a independência do Legislativo, ignorando suas prerrogativas e fazendo o que quer da autonomia legislativa.
Ao editar medidas provisórias, algumas das quais são reeditadas cinqüenta vezes (e a cada edição com mudanças no texto!), o Executivo invade a esfera do Legislativo e promove uma verdadeira balbúrdia nas atividades do outro poder, o Judiciário. Para decidir sobre um feito, um juiz tem de se valer de programas especiais de computador para saber qual medida está prevalecendo, porque, dependendo da data, poderá estar em vigor uma medida provisória ou uma segunda ou décima versão que não aquela que deu origem ao pleito!
É importante notar que essa faculdade superior exercida pelo Executivo brasileiro acontece numa fase em que suas ações sofrem interferências de toda a natureza, derivadas do processo de globalização. Num processo como esse, acontecem coisas fantásticas. Um país como o Brasil, que se pretende soberano, tem sido constrangido a executar políticas ditadas por conceitos emanados do exterior. Somos obrigados a seguir normas sobre as quais não temos controle. Não que o "modelo" seja totalmente rejeitável. Há coisas perfeitamente razoáveis: equilíbrio orçamentário, o que não é um mal em si; controle sobre a relação dívida/PIB, o que também é saudável; redução do tamanho do Estado, com as privatizações que melhoraram a eficiência das empresas e o desempenho da máquina de governo. Poderíamos até ter tirado melhor proveito do processo, se tivéssemos usado os recursos exclusivamente para abater a dívida pública. Não o fizemos mas, enfim, as privatizações não são um mal.
O maior constrangimento que nos é imposto, contudo, é o da liberdade do movimento de capitais, que torna o país prisioneiro das gigantescas ondas de pessimismo e otimismo que atingem os mercados. Poucas pessoas têm idéia de que o mercado de capitais movimenta 1 trilhão e 200 bilhões de dólares por dia, o que corresponde a duas vezes o PIB anual do Brasil! Essa montanha de dinheiro constitui um risco enorme, que deixa o Executivo brasileiro extremamente dependente do que acontece no resto do mundo. E é esse Executivo de "saia curta" que a cada dia se apossa mais das funções do poder Legislativo, indiferente à enorme perturbação produzida nas esferas do Judiciário.
Por essas razões tornou-se uma questão da maior urgência e relevância discutir os problemas do relacionamento entre os três poderes. O Legislativo precisa ter suas prerrogativas restabelecidas na plenitude e isso compreende fazer as leis. Precisamos de um Judiciário independente, prestigiado e remunerado adequadamente, capaz de fazer com que as leis sejam obedecidas, garantindo os direitos dos cidadãos face aos excessos de um Executivo todo poderoso.

Sérgio Mendonça
é economista e diretor técnico do Dieese

A distribuição de renda pode ser analisada sob duas óticas principais: a pessoal e a funcional. A distribuição pessoal refere-se à relação entre a renda gerada e sua apropriação pelos indivíduos. Já a funcional indica qual é o percentual da renda absorvido pelo trabalho e as demais rendas. Poderia ser mencionada ainda a distribuição regional, que mostra como as diversas regiões participam da geração da renda nacional.
Há muitos anos, o Brasil se situa entre os países com pior distribuição pessoal de renda do mundo. Enquanto na Itália, por exemplo, os 20% mais pobres ficam com 7,6% e os 10% mais ricos ficam com 23,7% da renda (1 para 3), no Brasil esses números são 3,4% e 47,9% (1 para 14), respectivamente.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (1999) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no nosso país, o 1% mais rico se apropria de um pedaço de renda equivalente àquele que fica com os 50% mais pobres. Vamos imaginar 100 pessoas e 100 fatias de bolo: apenas 1 pessoa (mais rica) pega 13 fatias para si; outras 50 pessoas (mais pobres) dividem 14 fatias entre si. Esta é a trágica imagem da distribuição da renda no Brasil.
Na década de 1990, observando a distribuição de renda entre salários, rendimentos dos autônomos, lucros e impostos, percebe-se que o trabalho assalariado vem diminuindo drasticamente sua participação no total da renda nacional. Em 1991, os salários representavam 42% da renda nacional e as "outras rendas" (em que se destaca o lucro), 38%. Em menos de uma década (1999), a posição se inverteu: os salários diminuíram sua participação para 36% e as "outras rendas" aumentaram para 44% sua participação na renda do país. O trabalho autônomo e os impostos têm mantido o percentual de participação em torno de 20%, entre 1991 e 1999.
Nesse mesmo período, o enorme aumento da produtividade verificado na economia brasileira não foi repassado aos salários, mas contribuiu para aumentar os lucros dos empresários. Não se pode deixar de relacionar o grau de concentração de renda no Brasil e a pobreza extrema em que vive aproximadamente um terço da população. A melhora nessa situação depende da orientação da política econômica e social do governo. Graças à queda da inflação propiciada pelo Plano Real - eliminando o chamado "imposto inflacionário" - e a um aumento real do salário mínimo em maio de 1995, houve uma pequena melhora nos indicadores de concentração de renda. Entretanto, a ausência de uma preocupação substancial com essa questão, por parte da política econômica, fez com que aquele pequeno avanço do início do Plano Real estagnasse a partir de 1997.
A retomada do crescimento da economia, a partir deste ano, pôde criar um ambiente favorável para a reversão do triste quadro nacional de país campeão em concentração de renda. Contudo, apenas a combinação de anos seguidos de crescimento com políticas de corte fortemente distributivo permitirá que, no início do século 21, o Brasil reverta esse que é, sem dúvida, o principal obstáculo ao pleno desenvolvimento do país.

Emir Sader
é cientista político e autor do livro A transição do Brasil. Da ditadura à democracia?

Um dos mais graves problemas do nosso país é o da falta de democracia para o debate sobre os grandes temas da vida dos brasileiros. Praticamente, o único espaço com circulação nacional é a chamada grande imprensa - jornais, revistas, rádios e canais de televisão, abertos ou fechados.
O país mudará se mudar a forma como as pessoas pensam, o que só é possível a partir de um espaço realmente democrático, em que todos possam opinar, em igualdade de condições, sobre todos os temas, incluindo os de transcendência social.
Mas não é o que acontece. A grande imprensa tem uma função pública, porque dela dependem as informações que as pessoas têm e os valores para julgar a realidade. No entanto, ela é basicamente composta por empresas privadas, que funcionam de acordo com a lógica do lucro. Esta lógica, por sua vez, choca-se com as necessidades de informação e opinião democráticas.
Por quê? Porque a busca de lucro faz com que esses órgãos privilegiem, por um lado, a publicidade, o que significa privilegiar as empresas e, particularmente, as grandes empresas (boa parte de capital estrangeiro), que respondem pela maior parcela da publicidade na imprensa. Por outro, privilegiam os leitores de alto poder aquisitivo, porque as empresas que anunciam se interessam não necessariamente pelos órgãos com mais leitores, ouvintes ou telespectadores, mas pelos de maior poder aquisitivo, que têm recursos para comprar seus produtos ou serviços.
Como resultado, os principais órgãos da imprensa brasileira estão nas mãos de um pequeno grupo de famílias, que são proprietários e, portanto, em última instância, decidem quem escreve ou fala, para quem, em que medida e quando. Tanto os emissores como os receptores são selecionados conforme critérios de riqueza, que se transformam em poder de influência sobre a cabeça das pessoas.
Assim, embora tenham funções públicas, os grandes órgãos da imprensa estão submetidos a uma lógica privada (a do lucro) e isso impõe um caráter não-democrático ao seu funcionamento.
Não haverá democracia no Brasil enquanto não houver democracia nos grandes meios de comunicação, isto é, espaços eqüitativos para que todos possam se expressar com igualdade de condições.

Aguinaldo Luiz de Lima
é integrante da coordenação da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP

A cidadania deve ser o centro da discussão sobre distribuição de renda e justiça social. Esse enfoque é necessário para desfazer a falsa idéia de que o crescimento econômico é suficiente para melhorar a vida das pessoas. Do pós-guerra até os anos 1970, o Brasil foi capaz de assegurar taxas de crescimento econômico elevadas e gerar empregos, mas isso não significou que internamente houvesse distribuição de renda e justiça social. Vários indicadores comprovam que o Brasil é o campeão das desigualdades, com escandalosa disparidade, expressa de diversas formas, entre ricos e pobres, na relação de gênero, nas questões raciais e no acesso a serviços públicos.
Os anos 1980 (considerados economicamente, para o Brasil, a "década perdida") e os anos 1990, com crise da dívida externa e estagnação econômica, provocaram a desestruturação da produção e do mercado de trabalho nacional, aprofundando o abismo econômico na distribuição de renda.
Analisando o estágio atual do capitalismo, o economista Celso Furtado acredita que a globalização das atividades produtivas levará a uma maior concentração de renda e terá como contrapartida uma ampliação da exclusão social.
Podemos afirmar que crescimento econômico não significa desenvolvimento econômico da sociedade, e que o desequilíbrio na distribuição de renda promove desigualdade na justiça social, expressa principalmente na negação de direitos fundamentais, o que compromete diretamente a cidadania. Partindo desse ponto de vista, somos colocados diante do desafio de resgatar a cidadania, o que significará buscar outros padrões de distribuição de renda que promovam a justiça social.
Ninguém duvida que o direito ao trabalho e a uma remuneração digna é de fundamental importância para garantirmos que ocorra distribuição de renda e justiça social, mas nem sempre é óbvio de quem é a responsabilidade de assegurar a garantia desse direito.
As empresas não se sentem responsáveis porque seu objetivo é a maximização dos lucros, portanto, elas utilizam os ganhos de produtividade proporcionados pelo desenvolvimento tecnológico com esse fim. Os governos, que em grande maioria assumiram uma orientação de não interferência nos mecanismos de mercado, demostram-se incapazes de atacar as causas do desemprego.
Coube à organização popular, colocando como eixo básico o resgate da cidadania na luta pelo direito ao trabalho, acrescido da preocupação com a degeneração do tecido social, fruto de uma sociedade desigual e injusta, garantir o direito ao trabalho e construir um outro padrão de crescimento e desenvolvimento econômico.
Nesse sentido, iniciativas coletivas de geração de trabalho e renda e de acesso ao crédito, que reúnem trabalhadores desempregados e excluídos socialmente, apontam para a construção de uma "economia solidária". Essas experiências estão avançando para um estágio de importância, servindo também de base para a formulação de políticas públicas no Brasil.
A cidadania está associada ao padrão de distribuição de renda e justiça social e cabe ao conjunto da sociedade definir esses padrões.

Efre Antonio Rizzo
é sociólogo e gerente do Sesc Carmo

Muhammad Yunus, Ph.D. em economia, chefe do Departamento de Economia da Universidade de Chittagong, fez uma revolução em Bangladesh, então um país com elevada densidade populacional (830 hab./km2), índices de pobreza extremamente altos e 90% de analfabetos. Seu ponto de partida: a economia real, sua fé nas pessoas e muita persistência.
Yunus denunciou o sistema perverso que hoje permeia as relações entre o trabalho e o capital, com seus procuradores internacionais dentro de intrincadas articulações que preservam a moderna situação de dominação ricos x pobres. Denunciou o sistema que está aí para não mudar nada e que só privilegia os já privilegiados. Acreditou na capacidade inventiva da criatura humana e criou o microcrédito, um programa de auto-assistência, em grupo, transformando em sócios do banco que fundou (Banco Grameen) milhões de pessoas que viviam em pobreza absoluta e hoje já têm lugar para morar, alimentos na mesa e podem até mandar seus filhos para a escola.
O que ele fez foi sair dos manuais e abraçar o mundo real. Em determinado momento de sua vida, percebeu que as análises das conjunturas econômicas internacionais sobre os quais se debruçava diariamente em suas aulas nada tinham a ver com a população que vivia nos arredores da universidade. Enquanto ele raciocinava em bilhões de dólares, esta trabalhava com centavos de dólar. Ele começou a descobrir a economia do dia-a-dia, das ruas, e foi deixando os conceitos acadêmicos e teóricos, desafiando poderosos organismos controladores do atual status quo. Suas idéias, hoje, após quase trinta anos, já estão presentes em muitos países.
Sem a pretensão de analisar aqui o binômio salário/emprego, algumas considerações são possíveis, tendo como fundo a experiência de Yunus.
A economia das ruas. Para implementar políticas públicas relativas à distribuição de renda, neste país, é preciso calibrar nossa percepção da realidade social. Derrubar o muro que separa nossos gabinetes, nossas salas de aula e nossos centros de pesquisa da realidade da rua. Isso significa uma reviravolta em nosso sistema sociocapitalista e paternalista de ver as coisas. Precisamos, também, estar atentos e questionar os debates muitas vezes estéreis das academias, dos encontros internacionais, dos simpósios que criam magníficos conceitos e programas, úteis apenas para preparar a agenda da próxima reunião. Muitos planos de governo e propostas de organizações privadas apenas contribuem para a tranqüilidade da consciência de seus responsáveis, quando não escondem motivos muito menos dignos.
Confiança nas pessoas. Quando falamos em políticas públicas não podemos nos fixar numa simples distribuição de renda, mas priorizar uma distribuição de oportunidades, principalmente para os mais desfavorecidos. Criar mecanismos que permitam que todos os indivíduos tenham acesso, por si mesmos, à renda que lhes garanta uma existência digna. Alavancá-los, como se diz em administração. Dar-lhes autonomia. A melhor política pública é aquela que torna o indivíduo dono de seu destino, e não a que o transforma em eterno dependente. Ninguém se sente bem recebendo esmolas ou doações, mas todos se sentem confortáveis quando tratados como seres humanos capazes. A promoção humana é antes uma questão de justiça social, não de caridade. É preciso acreditar nas pessoas, na capacidade criativa inata do ser humano, em suas aspirações e responsabilidades.
Persistência. Outro aspecto importante a destacar é a necessidade da permanência de determinadas intervenções sociais públicas. É escandaloso verificar as alterações que ocorrem, neste país, com a mudança de governo. Parece até que não há compromisso com a construção do bem comum. O ambiente social é lento na apropriação dos bens que lhe são devidos. Por isso, precisamos criar uma sociedade que pense longe e que veja as etapas de seu desenvolvimento serem respeitadas. As políticas públicas devem estar voltadas para a melhoria da qualidade de vida de todos os cidadãos, sempre. Não pode ser instrumento de promoção partidária e, como tal, descartável. É preciso consolidar as conquistas sociais.
Em tempo: o caminho percorrido por Muhammad Yunus está em sua autobiografia O Banqueiro dos Pobres (Ática). Vale a pena ler.