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Entrevista
Cristiano Mascaro
"Pretendo ser um cronista do cotidiano". É assim que Cristiano Mascaro define o conceito de seu novo trabalho, publicado pela editora do Senac. Nele, são as cenas prosaicas do dia-a-dia das cidades paulistas que transmitem a poética da imagem fotográfica. As situações não mostram dramas pungentes, nem emoções lancinantes: os flagrantes têm caráter universal que ocorrem todos os dias em qualquer esquina do mundo. O elemento que os torna singulares é a sensibilidade do olhar do fotógrafo. A exposição São Paulo fica em cartaz no Sesc Pompéia até o dia 10.
O que o motivou a viajar pelo interior de São Paulo?
Todo mundo gosta de viajar. No meu caso, até por gostar demais, virei fotógrafo. Além disso, quando eu era garoto, passava as férias no interior. Nasci em Catanduva, morei em Campinas, ia sempre para São José do Rio Pardo e tenho parentes em Cafelândia. Em 1991, quando estava lá pelo quilômetro quinhentos da Raposo Tavares, descobri uma paisagem muito fotográfica: um final de tarde belíssimo. Tirei uma foto quase simbólica. Naquele momento pensei o quanto seria interessante rodar pelo estado, conhecê-lo bem e retratá-lo. Foi aquela foto tirada em 1991 que detonou o processo. No projeto, não havia a intenção de fazer um guia de São Paulo. Assim, logo percebi que a melhor forma de retratar o estado, já que eu não estava querendo fazer um retrato físico, era captar a alma do paulista. Eu quis ser um pouco cronista, pois acredito que a fotografia é uma forma de contar histórias.
Qual foi o critério para o itinerário?
Não foi nada rígido. Eu tive apenas a preocupação de viajar pelo estado todo. Isso inclui capital, litoral e interior. Eu tinha um mapa e ia traçando alguns itinerários, que nunca eram cumpridos de forma muito planejada. Uma vez, saí de São Paulo em direção a Ilha Solteira, mas, de repente, no meio do caminho eu me encantei com um final de tarde incrível depois de uma tempestade. Era domingo e havia um parque de diversões na beira da estrada. Tirei uma foto lá, apesar de nem ter imaginado que aquele parque existisse.
Você disse que, na sua visão, a fotografia está mais vinculada à literatura. O seu trabalho estaria especificamente ligado a algum autor? Seria Nelson Rodrigues?
Tem tudo a ver. Eu sempre falo nele, assim como nos cronistas em geral. Há trabalhos fotográficos que podem ser equiparados a um romance. Pelo estilo do meu, diria que é algo que tem mais a ver com a crônica. Nelson Rodrigues é uma grande figura. Gosto muito dele justamente por ele falar da vida cotidiana e conseguir revelar todo o drama humano. Também acho o escritor Otto Lara Resende fabuloso.
Fotografar a capital é diferente de fotografar o interior? Exige uma outra preparação do olhar?
Tem suas diferenças. Mas o que me fascina, além da postura de cronista, é sobretudo a vida na cidade. Tenho algumas paisagens no livro, mas elas não me atraem muito. É na cidade que as coisas acontecem. Isso me intriga e me fascina demais. No interior, até por não estar mais acostumado a viver lá, eu me senti um pouco pisando em ovos. Mas fui aprendendo a me integrar aos poucos. Procurei ser o mais discreto possível. Não queria fotografar um fato de fora, queria fazer parte dele. Eu queria estar num bar tomando um café ou comendo um pastel com caldo de cana e fotografar pessoas que estivessem fazendo a mesma coisa. Queria ser um deles e, para isso, eu me despi de todo aquele aparato fotográfico. Muitas vezes, o fotógrafo está fantasiado de fotógrafo. O que importa não é a qualidade técnica do trabalho, mas sim o que se conseguiu ver. Sem nenhuma pretensão, espero que meu trabalho seja valorizado não pela técnica, mas pelo que pude dizer de interessante.
Como a sua formação acadêmica (arquitetura) auxiliou em seu trabalho atual?
A vida é um acúmulo de aprendizado. Temos de estar conscientes de que estamos aprendendo sempre. Quando você julgar que sabe tudo, apague a luz, tranque a porta e vá dormir. Estudei arquitetura e, apesar de ter me envolvido com a fotografia ainda na faculdade, nunca pensei em abandonar o curso, não somente pelo estudo formal e acadêmico, mas para ficar ligado e ter algo a dizer. Certa vez, estava participando de uma mesa-redonda com vários fotógrafos e diante de uma platéia formada por jovens que queriam ingressar na profissão. Perguntaram aos fotógrafos presentes o que era preciso para se tornar um fotógrafo. Cada um de meus colegas disse aquilo que era pertinente às suas respectivas áreas. Quando chegou a minha vez, eu não quis fazer gênero. Disse que era importante ler Machado de Assis. Muitas vezes, pais da minha idade me ligam dizendo que seus filhos não querem mais estudar porque querem ser fotógrafos. Sempre respondo que o jovem não deve parar de estudar e que deve continuar querendo ser fotógrafo. Uma coisa não elimina a outra.
Vivemos em uma época que privilegia a imagem, mas, ao mesmo tempo, parece-me que as pessoas não sabem mais ler essas imagens. Isso é verdade?
Eu acho que as pessoas não sabem ler a realidade que cerca essas imagens. Elas não observam mais as coisas, principalmente em cidades grandes como São Paulo. Tive um professor fabuloso, Flávio Motta, que dizia que nos dias de hoje existe na cidade uma espécie de autismo urbano, talvez porque as pessoas tenham que se fechar num processo de autodefesa. A vida de uma pessoa, hoje, consiste em pegar o elevador, ir até a garagem e entrar no carro. Sempre enclausurada. Só que mesmo São Paulo, tida como uma cidade feia, é muito rica e estimulante. Você não precisa só olhar um prédio bonito. O atrativo da cidade é justamente a movimentação. Se você entra na confluência do Edifício Copan ou no Edifício Itália ou mesmo na avenida Paulista, é tudo muito mutante. Por outro lado, isso acaba sendo uma vantagem para o fotógrafo porque nós, que temos a missão de ver, surpreendemos todo mundo. É estimulante poder usar a fotografia como um exercício de observação crítica e consciente da realidade que nos envolve. Quando você está fotografando é preciso estar consciente e não mostrar uma postura temerosa ou fechada.
No momento de dar o clique, o fotógrafo descarta todos os outros instantes e paisagens que estão à volta. Como se dá a escolha do momento preciso?
O momento não está vinculado ao movimento. Um dia, entrei num bar em Pitangueiras (foto acima) e me impressionou a solidão daquele homem, bebendo uma cerveja sozinho. Parece que ele tinha sido abandonado pela namorada ou pela mulher e estava afogando as mágoas. O lugar estava vazio e ele estava bem no centro. Aquilo me encantou. Até você chegar ao momento de apertar o disparador, existe toda uma história. Não sei se ele me viu ou não. Você precisa representar toda a condição de abandono daquela figura com recursos plásticos da imagem. Isso, às vezes é um gesto, às vezes a luz. Nada garante que aquele foi o melhor momento. Mas cabe a você detectá-lo. O fotógrafo francês Cartier Bresson tinha uma definição muito bonita. Era mais ou menos assim: o momento decisivo é aquele que melhor representa, ao longo do espaço e do tempo, a melhor expressão de um fato. Isso é fascinante e próprio da fotografia.
Vendo o livro, a impressão que se tem é a de que as pessoas vivem muito oprimidas (a exemplo da foto ao lado, em São Carlos). Os fatos e os dramas pessoais dos fotografados nesse projeto lhe causaram que tipo de sensação?
As situações foram as mais diversas. Eu não pretendi fazer um mosaico com a cara do brasileiro. A vida é complexa e cheia de inquietude. Na verdade, eu não tive a intenção de fazer um livro apenas sobre pessoas felizes. Encontrei pessoas nas mais diversas situações e estados de espírito e fui registrando. Mas, claro, não pretendia fazer um livro ufanista.
O seu estado de espírito também influiu?
Sim, claro. Às vezes eu acordava e pensava no que estava fazendo. Vinha uma crise existencial, uma dúvida se aquilo tinha sentido. Eu até escrevi um diário com impressões que pensei em usar no livro, mas achei que iria sobrepor duas linguagens. Eu sou mais fotógrafo do que escritor. Também havia dias em que acordava a toda, porque tinha ido dormir pensando numa foto. Aliás, nem dormia, queria acordar cedo imaginando que aconteceria um terremoto que me impediria de voltar àquele lugar. Dá uma angústia muito grande. Isso é coisa de fotógrafo.
Como foi o processo de seleção das 150 fotos que compõem o livro?
Foi a "escolha de Sofia". Tanto é que na exposição há duas fotos que não estão no livro. A escolha não foi feita de uma vez. Ao longo desse um ano e meio, a cada período de viagem, eu ia me abastecendo das cópias de serviço e ia selecionando. Mas não podia tomar nenhuma decisão enquanto não tivesse feito a última foto, porque ela poderia mudar tudo. Na verdade, da forma como esse trabalho foi conceituado, ele não terminaria nunca. Em determinado momento, fui obrigado a abandoná-lo.
A escolha foi só sua?
Eu pedi a ajuda de muitos amigos. Pessoas de quem eu gosto e que são bons olheiros. Esse livro mudou um pouco a minha vida de fotógrafo. Deixei de fazer um trabalho de observação da paisagem urbana com um material pesado e cai numa câmera de 35 milímetros. Muitas vezes eu me senti inseguro. Mas, em compensação, fotografei muito mais, até porque estava procurando um caminho que remetesse ao tempo em que eu nem trabalhava como repórter fotográfico.
Não há nenhum comentário sobre as fotos, além do nome da cidade. Isso foi proposital?
Acredito que qualquer comentário seria redundante. É sempre algo que fica aquém da foto... ou além, o que também a prejudicaria. Raramente você consegue algo que a complemente, a não ser no jornalismo, em que você coloca uma legenda que tenha um dado mais objetivo. Eu queria que fosse algo mais intrigante, por isso coloquei só o nome do lugar. Além disso, fui descobrindo rimas e articulações entre as fotos. Fiz uma foto em Barretos de uns brutamontes se abraçando a um pau-de-sebo com aquelas mãos rudes. No livro, eu a coloquei ao lado de uma foto de um rapaz passando um cartão para outro com mãos superdelicadas, tirada no Mambo Bazar (mercado GLS alternativo que acontece em São Paulo). Não há nenhuma observação pejorativa, mas essa organização proposital serve para mostrar como as atitudes humanas podem ser tão diversas tendo os mesmos elementos. Uma contraposição entre a brutalidade e a delicadeza.
Com o lançamento do livro e a exposição, você imagina o fechamento de um ciclo que começou com aquela foto da Raposo Tavares?
Acho que, na verdade, é o início de um ciclo. Eu não vou aposentar minha câmera. Para mim, é a retomada de um processo. Tenho o projeto de fazer alguma coisa semelhante mas mais abrangente, com todo o Brasil. Avançar no tempo faz você perder a juventude e os cabelos, mas dá experiência. Você passa a se sentir seguro de que pode fazer um bom trabalho. Quando você está convicto de um projeto e tem paixão pelo que faz, você o fará da melhor forma possível. Depois dessa exposição, eu já vou acordar com outras minhocas na cabeça.