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Esporte: vitória e derrota
No Brasil, o que separa o sucesso e o fracasso no esporte pode ser um mero capricho do acaso
A recente participação brasileira na Olimpíada de Sidney foi muito criticada. A ausência do ouro derrubou a performance da delegação e ofuscou o brilho das doze medalhas conquistadas (seis de prata e seis de bronze).
Terminada a festa na Austrália, permaneceu um certo cheiro de fracasso no ar. E foram muitos os responsáveis pelo "fiasco": culparam o cavalo que refugou, a preparação psicológica inadequada e, mais uma vez, veio à tona a teoria que aponta no atleta brasileiro uma inata "síndrome de derrota". O fato é que ao analisar os resultados alcançados, além de confrontar o depoimento de atletas considerados "vencedores" com aqueles cuja atuação foi tida como "inexpressiva", é possível perceber claramente o xis da questão.
O primeiro a falar é Edson Ribeiro, que ganhou uma medalha de prata no revezamento 4 x 100 metros rasos: "Até os 19 anos, nunca tinha me preocupado em ser atleta. Aos 20, enquanto integrava o Tiro de Guerra do Exército brasileiro, fui 'descoberto' e comecei a treinar pra valer". Hoje, aos 28, Edson, que se tornou duas vezes medalhista olímpico (foi bronze na mesma modalidade nos jogos de Atlanta, em 1996), reputa primeiro a Deus e depois ao trabalho árduo os resultados expressivos. A Deus ele deve o corpo privilegiado, talhado pela genética, além da sorte de ter sido observado por um técnico zeloso. Mas o acaso em geral é perverso e nos faz pensar no talento de tantos jovens de potencial desperdiçado nos descaminhos da fatalidade.
Sem receber nenhum trabalho de base específico, o velocista se considera fruto da atitude relaxada que quase sempre marcou a atuação do poder público no tocante ao fomento de políticas para o esporte. Não bastasse ter sido eleito por uma espécie de seleção natural, Edson e seus companheiros de atletismo tiveram (e ainda têm) de suplantar muitos obstáculos para atingir bons resultados. "Nossa pista de treinamento (localizada na cidade paulista de Presidente Prudente) é muito precária e não dispomos dos equipamentos necessários para treinar. Mas é daí que vem nossa força. Nunca recebemos nada de mão beijada. Temos de correr atrás de tudo."
Edson conta que durante o treinamento a equipe é obrigada a adaptar alguns exercícios. Para fortalecer a tração das pernas, por exemplo, em vez de utilizar instrumentos apropriados, é obrigada a empurrar carros.
No entanto, com os recentes resultados positivos, o atletismo vem recebendo um pouco mais de carinho de dirigentes e patrocinadores. Com isso, as condições de treinamento vêm melhorando gradualmente. "Tenho até um pouco de receio da reforma da pista, pois acredito realmente que os resultados são fruto do sacrifício e talvez com esse facilitador a gente relaxe um pouco."
O segundo depoimento vem do nosso maior expoente no atletismo: Adhemar Ferreira da Silva, bicampeão olímpico no salto triplo, nos jogos de Helsinque, em 1952, e Melbourne, em 1956. É fácil reconhecer, no início da sua carreira, os primeiros passos da trajetória de Edson. Assim como o velocista, o saltador começou tarde e foi o mero acaso (além do corpo privilegiado) que deu o primeiro impulso para elevá-lo ao olimpo do esporte. Adhemar começou a treinar no São Paulo Futebol Clube aos 19 anos, levado por um amigo. No início, praticava um pouco de tudo, sem se preocupar com uma modalidade específica.
Já no clube, ao observar um rapaz saltando, Adhemar se interessou e pediu para experimentar. Logo nas primeiras tentativas, sem o menor domínio da técnica intrincada que a modalidade exige, o mundo percebeu que aquele jovem alto era a pessoa certa no lugar certo. "A partir daquele momento encontrei uma pessoa espetacular, que foi o meu técnico Dietrich Gerner. Além de me preparar física e tecnicamente, ele me deu educação, na acepção total da palavra."
Adhemar Ferreira da Silva, que parou de competir em 1960, atua hoje como coordenador de esportes da UniSant'Anna. Os vários anos dedicados às pistas conferiram-lhe uma visão crítica da condução das diretrizes esportivas no país. "Para mim, a participação brasileira nos jogos foi dentro da nossa realidade. Não existe campeão sem trabalho de base. É preciso educar o atleta, o professor de educação física e o técnico, e deve-se educar inclusive o empresário."
Competindo em uma época de amadorismo total (ele conta que não podia receber nem o passe de bonde para ir treinar e, após o primeiro título olímpico, foi obrigado a recusar uma casa para que não cassassem sua medalha), Adhemar conclui que "apesar dos pesares, nada mudou de cinqüenta anos para cá. O atleta continua começando tarde. A maioria dos empresários exige resultados imediatos, quando um trabalho sério deve visar a um longo prazo".
O contraste com a história vencedora dos dois medalhistas é espelhado no depoimento de Maria Elizabete Jorge, a levantadora de peso que representou o país em Sidney. Com 43 anos, Bete pratica a modalidade apenas há onze, quando decidiu largar as provas de corrida "por falta de apoio técnico, já que o financeiro eu nunca tive". A partir daí, à custa de muita perseverança, ela conquistou o índice que a levou aos jogos. Devido a uma infecção na palma da mão, porém, Bete não obteve os resultados que vinha alcançando em outras competições (ela é tetracampeã mundial da categoria master). "Mas, apesar disso, só a possibilidade de estar naquele ambiente já foi uma vitória para mim. Afinal, estava disputando com atletas muito mais novas e muito bem preparadas."
O fardo de sobreviver sem apoio nem patrocínio, segundo Bete, é mais pesado do que os halteres. E, para ela, o acaso, que sorriu para Edson e Adhemar, não foi benemerente. O apoio que ela recebe é mínimo. Vive com a mãe em uma casa cedida pela Universidade Federal de Viçosa e não ganha salário desde 1998. Mesmo assim, treina um grupo de meninas carentes que consegue, a muito custo, convencer a praticar o esporte. "Nunca consegui viver do esporte. Só após a Olimpíada que me tornei atleta do Vasco da Gama e consegui um patrocínio bom. Até então, para competir, tinha de correr de porta em porta no comércio local para conseguir algum dinheiro. Era muito mais cansativo do que levantar peso."