Postado em
Sam Peckinpah
Com personalidade tão polêmica e controversa quanto sua obra, Sam Peckinpah virou clássico ao realizar alguns dos melhores filmes da história do cinema
Homem de excessos na tela e fora dela, o cineasta norte-americano Sam Peckinpah iniciou a carreira em 1951, na rede de TV CBS, onde trabalhou até 1953 como assistente de direção.
Nascido em Fresno, na Califórnia, em 1925, David Samuel Peckinpah alistou-se na Marinha em 1943 antes de se formar em Arte Dramática na Fresno State College. Depois do primeiro período na CBS, no final da década de 1950, começou a escrever e dirigir roteiros para séries de faroeste criadas especialmente para a televisão.
A ligação de Peckinpah com o western é forte. O filme Meu Ódio Será Sua Herança, lançado pelo cineasta em 1969, é apontado como um grande clássico do gênero, que teve entre 1939 e 1956 seu período de ouro na história do cinema. O longa, indicado ao Oscar de melhor roteiro original, foi estrelado por William Holden, Ernest Borgnine e Robert Ryan, entre outros.
A década de 1960 reservou aos Estados Unidos um período conturbado de transformações, guiado pela Guerra do Vietnã, um dos conflitos armados mais violentos da história, que durou quase 20 anos e alterou o discurso patriótico reproduzido pelos westerns. Embora tenha entrado em declínio no período, o gênero ganhou novo fôlego por meio do olhar nostálgico e áspero de Peckinpah e da produção dos spaghetti westerns italianos.
Para o crítico de cinema e professor Sérgio Alpendre, o diretor antecede a Nova Hollywood, movimento dos anos 1970 que articulou a criação artística com o ideal defendido pelos grandes estúdios e fartas bilheterias, representado principalmente pelos iniciantes Martin Scorcese e Francis Ford Coppola. “Digo isso porque ele realizou filmes modernos como Pistoleiros do Entardecer (1962) – uma releitura do gênero western – e Juramento de Vingança (1965), filme de crise”, afirma. “Podemos concluir que ele é um dos pioneiros, em espírito, ao que iria se consolidar com a Nova Hollywood.”
Sensibilidade radical
O professor do Departamento de Teatro e Cinema da Universidade Virginia Tech Stephen Prince, autor do livro Savage Cinema: Sam Peckinpah and the Rise of Ultraviolent Movies (1998, University of Texas Press), pesquisou documentos e correspondências arquivadas ligadas ao diretor na Motino Picture Academy Library, em Los Angeles. “Fiquei fascinado com as informações sobre seu processo criativo e a realização dos filmes”, recorda Prince.
No livro o professor explorou as conexões com os anos de protestos em 1960, nos Estados Unidos, período fundamental para o trabalho do cineasta que, em sua opinião, não havia sido totalmente estudado. “Sem dúvida Peckinpah tinha uma sensibilidade radical que foi alimentada por esse período da história americana”, acrescenta.
Tal sensibilidade também ajudou a iconizar a personalidade de Peckinpah, que, ao mesmo tempo que produzia filmes influentes, acumulava desentendimentos com produtores – os quais não hesitavam em sugerir alterações e cortes na montagem dos filmes. Na vida pessoal, o diretor abusava do álcool e das drogas. É possível ver retratados nos seus filmes os sentimentos e comportamentos contraditórios fundidos em sua personalidade. Na opinião do jornalista Luiz César Pimentel, Peckinpah era bipolar ou paranoico ou ambos. “Mas numa época em que – imagino – fazia uso de tudo isso para o que lhe afligia emocionalmente”, analisa. “Enxergo um pouco dessa entrega bruta em cada um dos artistas atormentados, de Van Gogh a Lars Von Trier.”
O grande tema
Aliado aos elementos mais importantes do trabalho do cineasta – que vão da dureza temática, caracterização da imagem sombria da vida humana à rejeição do estilo convencional de produção dos estúdios e o jeito de editar e montar –, o uso da violência como fundamento estético é uma das características mais discutidas e influentes, servindo de inspiração para cineastas renomados. Por exemplo, Quentin Tarantino frequentemente o cita como referência. Entretanto, Alpendre acredita que Marcas da Violência (2005), de David Cronenberg, é mais próximo do diretor do que qualquer obra produzida por Tarantino, tendo em vista que este último faz um jogo de alusões, ação que esvazia um pouco as referências utilizadas. “Peckinpah pensava nos efeitos da violência, estudava suas causas nas pessoas, tanto as vítimas quanto as que cometiam atos violentos”, justifica.
Apelidado pela crítica de “Bloody Sam” e “poeta da violência”, o diretor tinha consciência de sua fama no meio e sabia que havia feito um grande filme em Meu Ódio Será Sua Herança. “Ele sentia um orgulho especial dessa obra estranha e perversa”, diz Prince. Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia (1974) foi um filme defendido pelo cineasta por ter sido feito sem nenhum compromisso ou interferência dos produtores. “Mas ele também sabia que era um filme tão grotesco que iria alienar a maioria dos espectadores. Acho que ele realmente gostava disso”, opina Prince.
Personagens e conflitos
Peckinpah era conhecido por criar uma atmosfera tensa e volátil no set de filmagem, um conjunto que espelhava os conflitos emocionais na história que estava sendo contada. Segundo Prince, isso permitiu que os atores se tornassem os personagens. “Vendo o elenco de Meu Ódio [...], sentimos que aqueles personagens são reais e não só atores interpretando um papel”, explica o estudioso.
Segundo Pimentel, para o cineasta “não havia desperdício de película”. O jornalista diz ter ficado impressionado ao assistir pela primeira vez Os Implacáveis (1972). “Um filme de ação punk rock, com aquelas perseguições, Mustang vermelho voando. Steve McQueen estapeando a Ali McGraw, musa da época. Tudo muito cru, respingando suor e sangue da tela”, conta.
Sem dúvida, a arte na qual Peckinpah fez escola articula sentimentos ambíguos. Sua filmografia está aí para comprovar. Na medida em que desafiou os cinéfilos e a indústria de Hollywood, o diretor, que morreu em 1984, aos 59 anos, confirmou o caminho sem volta como poeta de um cinema sem meias-palavras. “A violência, os planos, a câmera lenta, os gritos, os diálogos, todo o contexto, nada é à toa”, completa Pimentel, enumerando alguns pontos-chave da obra do cineasta.
Cinema autoral
Habilidoso em criar conflitos, o diretor criou uma estética particular.
Veja os filmes mais comentados de sua obra:
Meu Ódio Será Sua Herança (1969)
Marco do western, o filme segue a trilha deixada por mestres do gênero, como John Ford e Raoul Walsh, acompanhando a trajetória de pistoleiros em fuga depois de roubar um banco. História contada com muita técnica e apuro no uso da câmera, além de cenas épicas de violência.
A Morte Não Manda Recado (1970)
O objetivo de se vingar dos sócios que o abandonaram no deserto é o mote deste filme dirigido e produzido por Peckinpah. Tendo como ator principal Jason Robards e a participação de Stella Stevens, que nos anos 1960 foi coelhinha da revista Playboy nos Estados Unidos.
Sob o Domínio do Medo (1971)
Com atuação marcante de Dustin Hoffman, que de pacato professor de matemática se vê forçado a mudar de personalidade para defender a si mesmo e a mulher, interpretada por Susan George, em uma das cenas de violência sexual que até hoje provoca discussões entre os cinéfilos.
Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia (1974)
Em duas horas de suspense e ação, Sam Peckinpah desenvolve um roteiro no qual um latifundiário mexicano oferece 1 milhão de dólares para quem entregar a cabeça do responsável por engravidar sua filha. Na época, o filme não pôde ser exibido na Alemanha, na Argentina e na Suécia.
Arte em retrospectiva
Filmografia completa do diretor pode ser vista em mostra em São Paulo
De 14 a 23 de julho, o CineSesc recebe uma mostra que vai agradar em cheio os fãs de cinema americano, principalmente a fase dos anos 1960 e 70: é a Retrospectiva Sam Peckinpah, cineasta conhecido como poeta da violência e autor de clássicos que inspiraram uma geração de diretores.
A organização da mostra e a sequência de exibição dos filmes possibilitarão ao público a apreciação da obra em perspectiva, já que o evento apresentará a filmografia completa do diretor.
Segundo a gerente adjunta e a técnica de programação da unidade, Simone Yunes e Kátia Caliendo, a proposta do Sesc busca novas cinematografias, mas também um resgate da memória do cinema. Para elas, o diretor Sam Peckinpah é um ícone do cinema autoral americano que sempre manteve suas convicções, postura que está refletida em sua obra.