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Enraizada na Alma

O artista pernambucano J. Borges é um dos mais conhecidos artistas populares brasileiros
O artista pernambucano J. Borges é um dos mais conhecidos artistas populares brasileiros



Marcada pelo autodidatismo, arte popular brasileira vive momento de valorização


Após ter contato com a arte popular brasileira na década de 1950, o colecionador Jacques Van de Beuque comparou aqueles artistas aos pianistas que tocam com alma e sentimento, em vez de dominar teclas e notas. Fascinado pelos objetos que encontrou nas feiras nordestinas, o então estudante de Belas Artes passou a adquirir os que lhe agradavam, sem saber que começava uma das mais amplas coleções do gênero. Nos 64 anos que se passaram de lá para cá, a arte popular brasileira conquistou prestígio e se transformou, acompanhando mudanças profundas do próprio país.

A nomenclatura “popular” não se refere a um estilo. É o que esclarece a antropóloga e curadora Angela Mascelani, que administra o acervo de mais de 8 mil peças do Museu Casa do Pontal (RJ) – onde está a coleção de Jacques Van de Beuque, morto em 2000. “A arte popular refere-se à origem socioeconômica e cultural dos artistas, que desenvolvem as habilidades de forma autodidata. Eles produzem de maneiras muito diferentes uns dos outros, tanto em relação ao suporte quanto ao estilo”, explica a especialista, que considera a arte popular feita no Brasil uma das que mais se renovam na temática e estética. “O passado, porém, não é descartado e deixa suas marcas. Por isso, a arte popular fala tanto da nossa identidade.”

Apesar de ser unânime a existência de raízes nas culturas e tradições regionais, a conceituação de arte popular e arte naïf varia. O pesquisador Oscar d’Ambrosio, que compõe o júri da 12ª Bienal Naïfs do Brasil, define a arte popular como um guarda-chuva que abarca arte naïf, folclore e artesanato. Os dois últimos seriam manifestações coletivas, enquanto a primeira seria individual e marcada pela origem em classes populares. “A principal diferença entre artesanato e arte naïf é que o artesanato pode ser feito em série e a arte naïf possui uma característica diferenciadora, no estilo e na forma de trabalho”, afirma o pesquisador.

O curador Diógenes Moura, responsável pela 12ª Bienal Naïfs, observa que esse tipo de arte começou a se modificar mais fortemente com a chegada, no Brasil, da televisão e da internet. “Os pintores passaram a incorporar imagens que não faziam parte daquele imaginário popular. Abriu-se um mundo exterior para o que essa pintura interior retrata”, diz. Para Moura, por meio da arte naïf é possível observar a transformação do Brasil rural em urbano. “Nos trabalhos da bienal, há desde uma pintura com elementos religiosos até cenas da vida cotidiana de grandes multidões, que retratam essa urbanidade”, exemplifica o curador, que considera ser possível ao público fazer uma leitura sutil de como esses artistas percebem as cidades e o mundo onde vivem.

O contato com as novas informações amplia o universo de referências e repertório dos artistas, observa o pesquisador Oscar d’Ambrosio. “Há obras em que os artistas divulgam fatos da mídia, como a corrupção ou os problemas ambientais”, descreve. “Olhando muitos trabalhos atuais, você pode fazer uma leitura sobre como os artistas de origem popular enxergam o Brasil hoje. É um retrato do país pelas lentes da arte.”

Para a curadora Angela Mascelani, as obras de arte vindas de camadas populares permitem também pensar questões relativas ao “ser brasileiro”. “As camadas populares, que têm a oralidade como âncora de suas vidas, têm o seu olhar sobre a cultura e nos passam isso através de suas obras”, relata. “É como se essas pessoas que não deixam registros escritos escrevessem os seus devaneios por meio de suas obras e deixassem seus testemunhos.”

Na opinião dos especialistas, além da atualização, vive-se também uma onda de valorização da arte popular. O último momento marcante de reconhecimento havia sido nos anos 1970, quando existiu um esforço de dar maior valor à arte nacional. “A partir dos anos 2000, a gente vive um segundo momento de valorização da arte popular, pois as obras de arte do modernismo, como Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Portinari, desaparecem do mercado”, destaca d’Ambrosio. Para ele, a partir de então o mercado de arte brasileiro começa a se alimentar de três áreas: grafite, arte feita por egressos de faculdades públicas e arte popular, que tem apelo de mercado para ocupar um espaço que outras artes mais tradicionais acabaram perdendo.

Angela espera que o reconhecimento leve as pessoas a estudarem e entenderem melhor a arte popular brasileira. “Hoje, esses conhecimentos são mais transmitidos por matérias jornalísticas do que por pesquisas, gerando material mais informativo do que reflexivo”, analisa, e aponta esse motivo para explicar por que na escola se fala muito pouco sobre a importância da arte popular. A situação, porém, tem mudado: “Hoje já existem mais pesquisas de graduação, mestrado e doutorado sobre o tema. Há maior interesse, mas ainda é preciso um tempo para que esses trabalhos venham a público”. 



Diversidade temática

A curadora Angela Mascelani elege alguns dos principais temas presentes na arte popular feita no Brasil

Vida rural: com os afazeres domésticos e o trabalho no campo, os animais domésticos e as rotinas da lavoura e de cuidados com a terra.

Vida urbana: abordando a vida na cidade e especialidades profissionais, como médicos, dentistas, professores, e toda a gama de profissionais que a vida na cidade requer e possibilita surgir.

As ruas, com sua liberdade e prazer: são as brincadeiras de crianças, os jogos de adulto, tais como o futebol, a sinuca, o pingue-pong e outros que reúnem as pessoas nos momentos de lazer.

Ciclo da vida: com imagens que falam do nascimento, da infância, da vida adulta, do namoro, do casamento e da morte.
Festas populares: tratando da dimensão festiva da vida humana, das celebrações que se fazem coletivamente por todo o país.

Religiosidade popular: com criações que transcendem a dimensão figurativa e apresentam mundos fantásticos que dizem respeito aos indivíduos e sua liberdade criadora, capaz de inventar o inexistente.

 

Cardápio variado

Exposições traçam panorama da produção artística popular e naïf

12ª Bienal Naïfs do Brasil: a partir de 7/8
Realizada pela unidade Piracicaba do Sesc desde 1992, a Bienal Naïfs do Brasil foi criada com o intuito de privilegiar a participação dos artistas plásticos produtores de obras enquadradas na categoria de arte ingênua, espontânea, instintiva, popular ou naïf, concebida em sua maioria de maneira autodidata. Nesta edição, que tem curadoria de Diógenes Moura, o evento trará também instalações, intervenções e apresentações artísticas na cidade. Além disso, haverá maior representatividade de outros suportes e técnicas além das tradicionais telas e pinturas: esculturas, gravuras, bordados e tecelagem, entre outros. Das 726 obras inscritas, o júri escolheu 106 trabalhos de 81 artistas de 16 estados do Brasil.

O Brasil na Arte Popular: 18/5 a 10/8
A convite do Sesc Belenzinho, o Museu Casa do Pontal (RJ) apresenta mais de 400 obras, de 51 artistas de 12 estados brasileiros. Com curadoria da antropóloga Angela Mascelani, a exposição traz obras cujas temáticas abrangem as atividades cotidianas, festivas e imaginárias do povo brasileiro. Ganha destaque o artista individual, com pensamento, criação formal e soluções plásticas encontradas, destacando-se Mestre Vitalino, Zé Caboclo, D. Isabel, Noemiza, Ulisses, Adalton Lopes, Nino, Francisco Laurentino, Manuel Galdino, GTO e Nhô Caboclo. Há também destaque para as coletividades criadoras, com estilos próprios e marcas comuns, caso do Alto do Moura (Pernambuco), Vale do Jequitinhonha (Minas Gerais) e Juazeiro do Norte (CE).