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Fernando Reinach

Crédito: Leila Fugíí
Crédito: Leila Fugíí



O biólogo e pesquisador fala sobre uso de animais em pesquisas científicas, alimentação orgânica, aquecimento global e outros temas que afetam a vida das pessoas


Especialista em biologia molecular, Fernando Reinach foi professor do Departamento de Bioquímica da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do primeiro projeto genoma brasileiro. Atualmente, é sócio-gestor do Fundo Pitanga e colunista do jornal O Estado de S. Paulo. Na entrevista a seguir, Fernando fala sobre o distanciamento da sociedade moderna em relação à natureza, o uso de medicamentos, as leis de propriedade intelectual, a pesquisa científica com animais e outros temas da ciência presentes no cotidiano.


O politicamente correto que perpassa diversos setores da sociedade causa problemas para a pesquisa científica, como no caso do uso de animais em pesquisas?
Eu não acho que seria politicamente correto você proibir o uso de animais em pesquisa científica. Só existem três opções: testar com animais antes de testar em seres humanos, testar apenas em seres humanos ou colocar diretamente no mercado. Uma quarta opção seria não ter o medicamento. Acho muito legítimo nesses movimentos todos a ideia de você não fazer mais do que o necessário. Se você precisa matar uma vaca para comer, você faz da maneira menos cruel possível. Se você for testar um medicamento, você pode testar em dez beagles, não precisa testar em 30. Mas, em casos como o do uso de cães em pesquisas eu vejo também uma hipocrisia, porque as pessoas comem frango. Por que os beagles são mais importantes que as galinhas? Por que pode fazer pesquisa em rato e não pode em cachorro?

Existe um distanciamento da sociedade moderna em relação à utilização de animais na alimentação?
O que acontece com as pessoas nas grandes cidades é que elas não associam mais o seu alimento com a morte de um animal. Por exemplo, poucas pessoas já foram ver uma vaca ser morta em um matadouro. Mas, se você levar isso no extremo da biologia, você precisa lembrar que os vegetais também são seres vivos. E nós comemos os vegetais vivos. Na natureza, fora as plantas, que produzem a própria comida a partir da luz solar, todos os outros seres vivos se alimentam de outros seres vivos. Parece que as pessoas não têm essa percepção. O ser humano foi se distanciando tanto da natureza que ele começou a achar que poderia viver sem ela. É uma ilusão. 

Em um de seus textos, você já afirmou que nem todo alimento orgânico é saudável. Por quê?
Tem duas questões a serem levadas em conta quanto à agricultura orgânica. A primeira é ter certeza de que ela é orgânica e que foi produzida de acordo com os métodos necessários. A outra questão está relacionada à agricultura tradicional. Por exemplo, se você usa estercos de animais em vez de adubos químicos, esse esterco precisa ser bem curtido para ser seguro. Do contrário, você fica doente, já que metade do volume das fezes de todos os mamíferos são bactérias. Nos Estados Unidos, aconteceram grandes problemas em fazendas de produção orgânica que tiveram casos de contaminação. Nesse aspecto, o orgânico é parecido com os agrotóxicos. Na dose certa, é seguro. Mas, se não cuidar, é perigoso. Outro problema do orgânico é a discussão sobre se a produtividade seria suficiente para alimentar a população do planeta, ou se ele será sempre condenado a produto de luxo. O orgânico produz menos por hectare, então é preciso usar mais terra e desmatar mais. Mas eu, por exemplo, só consumo orgânico.

Você enxerga também um distanciamento das pessoas em relação à produção de alimentos?
Um dos problemas das escolas e da educação hoje é que as pessoas não têm a menor ideia do que é produzir o seu alimento. Seria muito interessante se as crianças passassem uma semana em um sítio produzindo tudo o que comem. Pensando assim, as pessoas iriam se deparar com uma realidade muito mais complexa. Por exemplo, se você quisesse comer alface hoje, teria que ter plantado 30 dias atrás. As pessoas também se esquecem, muitas vezes, da perspectiva da tecnologia da produção de alimento. Em sociedades indígenas mais primitivas, como os Yanomami, cada pessoa gastava de 30% a 80% do dia dela para obter o alimento. Era preciso andar na floresta, coletar, preparar etc. Com a agricultura, foi diminuindo esse tempo. A sociedade percebeu que precisava de menos pessoas produzindo alimento. Hoje você tem 5% da população de um país produzindo, trabalhando com tecnologia moderna e fazendo alimento para milhares de pessoas. Imagina como seria o mundo se as pessoas precisassem gastar 80% do dia para isso. Muita gente defende que o desenvolvimento cultural da humanidade veio com o advento da agricultura, porque permitiu que sobrasse mais tempo para outras coisas.

Qual a sua opinião sobre a questão da alopatia versus a homeopatia?
Eu prefiro não pensar assim, em uma contra a outra. Prefiro pensar no que funciona ou não no combate a uma doença, e o método para você saber isso é o teste duplo-cego. Por exemplo, se eu quero saber se uma droga cura dor de cabeça, vou dividir mil pessoas em dois grupos. Uma parte vai ser medicada com a droga, a outra vai receber um placebo sem saber, e o avaliador não pode saber quem de fato tomou o remédio. Ter uma amostra suficiente em um teste duplo-cego é a única maneira aceitável de saber se algo funciona ou não. A minha birra é quando você começa a abandonar esse critério científico de avaliação. Muita gente acha que certas terapias não podem ser submetidas a esses testes, por estarem ligadas a questões espirituais. Então você não pode falar que qualquer erva não vai funcionar. Está errado. E está errado também falar que toda erva funciona. Funciona se passou em um teste duplo-cego.

Nessa variável, é considerada a autossugestão e o conforto que certos métodos podem trazer? Rezas e cristais, por exemplo, trazem um conforto para certa faixa da sociedade.
Tem testes duplos-cegos feitos com placebo que mostram que ele funciona e que a autossugestão da pessoa imaginando que está sendo tratada ajuda. Escrevi um artigo uma vez sobre o efeito de reza em operação de coronária. Pegaram um grupo de pessoas e confrontaram com outro grupo de pessoas que iria receber rezas. O resultado foi que, se você fala para a pessoa que vai rezar, ela demora mais para se recuperar. Se você só reza e não comunica, os dois grupos têm o resultado igual. A explicação era a seguinte: a pessoa acha que a situação é muito mais séria quando alguém diz que vai rezar por ela.

De onde você acha que vem a desconfiança em relação a remédios, vacinas e afins?
Boa parte da culpa é dos cientistas. A diferença entre ciência e religião é que, no mundo científico, é preciso ter evidências e provar com experimentos. A religião tem que ser respeitada pelo que ela é: um conjunto de crenças que não precisam ser justificadas. A ciência é um conjunto de crenças que precisam ser justificadas. Mas a ciência ficou muito complexa, então o ensino começou a virar dogmático. O professor diz que o átomo existe e o aluno precisa acreditar, porque está no livro. Na hora que você toma essa atitude, você está fazendo igualzinho à religião. Quando os cientistas começaram a tomar essa atitude dogmática perante a sociedade, o cientista que lida com um conhecimento que teoricamente poderia ser demonstrado se comporta como um religioso ao dizer que “o átomo existe” ou “o remédio funciona”. Na hora em que a ciência se arrogou esse direito de falar sem justificar, ela ficou igual à religião. Na hora em que ela ficou igual à religião, as pessoas passaram a achar que quem diz que colocar um cristal na cabeça vai ajudar a curar o câncer é igual a quem diz que uma radioterapia vai curar. Apesar de o tipo de conhecimento ser muito diferente, no fim os dois estão se comportando da mesma forma, e a reação natural do ser humano é achar que pode escolher a crença que lhe pareça mais apetitosa.

Antes, uma pessoa melancólica escrevia um samba para a namorada. Hoje, usamos medicamentos para não sentir tristeza. Há um exagero da indústria farmacêutica?
É necessário esclarecer o uso que se faz dessas drogas. A depressão é uma coisa muito mais forte que a melancolia, e muitos estudos mostram que esses remédios funcionam. A questão é saber quando você precisa tomar um remédio para um distúrbio relativamente leve ou até quando você tolera esse problema. Por exemplo, quando não existiam remédios para dor de cabeça, as pessoas toleravam a dor. É a mesma coisa, só que uma é uma dor física e a outra, emocional. Esses remédios para depressão muito séria também ajudam na melancolia. Aí entra na questão se você vai tomar ou aguentar. Não é diferente de quem decide tomar um remédio para dor de cabeça leve. Além disso, há também as pessoas que não tomam esses remédios, mas bebem ou usam outras drogas. O número de pessoas que chegam estressadas em casa e tomam uma dose de uísque é enorme.

Você acha que nos tornamos uma sociedade sedada?
Hoje temos menos experiência de dor. Antigamente, alguém quebrava o pé e sofria de dor durante três meses. Hoje, não. Existe uma sedação física, assim como existe uma sedação intelectual. Mas isso é sobre quanto cada pessoa quer tolerar. É fácil falar que é bom ter um pouquinho de dor se você nunca sofreu uma depressão profunda. É uma opção do indivíduo.

Um dos temas recorrentes na sua coluna é o aquecimento global. A ciência tem recursos para provar que há de fato um aquecimento global?
O problema da questão do aquecimento global é que você não pode fazer um experimento. Você precisaria dividir a Terra em duas, parar de emitir CO2 em uma e, na outra, continuar emitindo. Em dez anos veríamos o resultado, mas a gente não tem como fazer isso. A única maneira, então, é você observar a série histórica do passado e tentar projetar no futuro. Muitas coisas na ciência são feitas com esse tipo de raciocínio: você vê a série histórica, o que aconteceu nos últimos anos e tenta projetar no futuro. O problema é que, no caso do aquecimento, o tempo envolvido é muito longo. Você dizer que observou durante 50 anos que todos os dias o sol nasce e se põe não dá a certeza de que irá ver o sol nascer amanhã, mas a série histórica do nascer e pôr do sol é tão longa que não se questiona isso. No aquecimento global é a mesma coisa. Ele é tão certo quanto o nascer do sol, mas para os cientistas já existe uma probabilidade muito alta de ele estar ocorrendo.

Existe alguma certeza sobre se ele realmente tem sido provocado pelo homem?
Existe uma discussão sobre o quanto disso é causado pelo homem, o quanto é um fenômeno que independe do homem e o quanto seria possível reverter se o homem mudasse de comportamento. A certeza sobre ser causado pelo homem já está bem próxima, mas a grande dúvida é qual a velocidade do impacto. Não se sabe ainda se será a nossa geração ou as próximas que irão ver as consequências. Mas o que os cientistas estão dizendo é que, independentemente disso, é necessário começar a se mexer. É aí que está a dificuldade, porque existe uma tendência do homem, que é a tendência dos animais em geral, de não conseguir pensar muito no amanhã. Poucos animais pegam a caça, enterram e comem no dia seguinte. A maioria não faz isso. A gente até pensa bastante no amanhã, nos nossos filhos e netos, mas se eu disser que você deveria parar de tomar café porque talvez os seus descendentes daqui a 230 anos serão influenciados por isso, você talvez não pare. A gente tem tantos problemas mais urgentes no futuro próximo que não consegue pensar no mais distante. É como alguém que compra o carro em 36 vezes. Ele não pensa na 36ª parcela, só nas primeiras. A mesma coisa é com o desmatamento, com tudo. Existe uma dificuldade de tomar uma decisão no presente pensando em decisões futuras.

A sociedade dá as costas às decisões que terão consequências apenas a longo prazo?
Não é que dá as costas, mas não prioriza. O cara que financia algo em 36 meses sabe que vai ter que pagar, mas ele tem outras preocupações. A sociedade toda é assim. Já é uma aberração na natureza existir um ser vivo que pensa duas gerações para a frente. A gente tenta se esforçar e pensar mais no futuro, mas há uma dificuldade que parece ser intrínseca ao nosso cérebro, até porque também é uma questão de sobrevivência você pensar mais no curto prazo.

Qual sua opinião sobre as questões éticas que surgem por conta da aceleração das pesquisas na biotecnologia, como a possibilidade de escolher a cor do olho de um filho?
Na história da humanidade, a cada nova descoberta você tem uma opção para fazer. Aquilo que era um dogma passa a ser uma escolha. Houve um tempo em que as pessoas pensavam que, se você não fizesse sacrifícios para os deuses, não iria chover. Aí surgiu a previsão do tempo e percebemos que a chuva não tem a ver com isso. A dúvida era a mesma que surge hoje em relação ao sexo dos bebês, por exemplo. Antes você não podia tomar decisões e agora você pode. A cada vez que ocorre um progresso científico, surge um dilema e uma decisão nova a ser tomada. 

Como você vê a questão da patente de plantas e sementes, como no caso da Monsanto, multinacional que patenteou a soja transgênica?
Originalmente, a gente não era dono de nada até surgir a propriedade de objetos físicos. Hoje, isso não é questionado. Tem gente que rouba, mas a gente aceita a propriedade de coisas físicas: o seu carro, sua casa, sua camisa. Na revolução industrial, na Inglaterra, surgiu a possibilidade de você ser dono de ideias. Por exemplo, digamos que você havia passado dez anos desenvolvendo uma máquina de costura. Se não fosse a propriedade intelectual, uma vez que você vendeu a primeira máquina, qualquer um poderia desmontá-la e construir outra igual. Ninguém mais tentaria fazer algo novo se, no momento em que divulgasse a ideia, fosse ser copiado. Então, percebeu-se que se teria de proteger a ideia, o que deu origem às leis de patente. É essa lei que permite o financiamento de tudo o que é novo. No caso de uma semente, a patente é sobre o gene que está dentro dela. Quem fez estudos e financiou as pesquisas tem a propriedade daquele gene. O caso da Monsanto é o mesmo da máquina de costura: você pode escolher usar a semente normal ou a transgênica. Se você quiser usar a transgênica, você vai ter que pagar. Eu acho que é um grande progresso da humanidade você ter proteção das suas ideias. Agora, se as leis devem ser melhoradas é outra história que eu acho que deve ser discutida. Mas, sem a propriedade de ideias, ninguém faria nada novo.


“Apesar do tipo de conhecimento ser muito diferente, religião e ciência estão se comportando da mesma forma, e a reação natural do ser humano é achar que pode escolher a crença que lhe pareça mais apetitosa”


“Um dos problemas das escolas e da educação hoje é que as pessoas não têm a menor ideia do que é produzir o seu alimento. Seria muito interessante se as crianças passassem uma semana em um sítio produzindo tudo o que comem”


“A cada vez que ocorre um progresso científico, surge um dilema e uma decisão nova a ser tomada”


“Por que os beagles são mais importantes que as galinhas? Por que pode fazer pesquisa em rato e não pode em cachorro?”