Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Ficção Inédita
De amor e ódio

Rachel de Queiroz

Está morrendo? Não, não está morrendo. Antes morresse. Mas, como diz o médico, pode viver assim muitos anos, pode até enterrar todos nós.
Meu Deus, quando olho para a criatura, todo torto, atirado naquela cama, a mão em gancho, o pé duro, a boca de lado, os olhos muito abertos e me parecendo tão humilde - vou tendo aquele dó. Coitadinho, coitadinho... mas aí recordo o que ele fez, e me ataca um ódio que piedade nenhuma abranda.
Teve um ictus. Assim que o doutor diz. A gente fala que foi derrame, paralisia, ar - eles dizem ictus. Tomei horror de médicos. As mentiras que eles podem inventar, esses nomes em latim e em grego que usam para confundir os leigos - e o pouco caso que eles têm pelos "leigos".
Justamente, ele é médico ou era, porque agora não é mais nada. Agora só pode pensar em tempo passado. Era, fazia, queria. Agora é um morto-vivo. Castigo de Deus, não há dúvida. Castigo. Deus é pai mas também pode punir.
E pensar que o nosso romance começou por intermédio das crianças. Na praia, a Regininha, que tinha então três anos, cavava buracos na areia. Jorge, o mais velho, batia bola com outros garotos. Ele chegou - um moço sério, magro, muito branco, via-se que não costumava vir à praia com freqüência e se queimar no sol. Deitou-se na areia perto da menina e daí a pouco estava a cavar um túnel junto com ela. Jorge aproximou-se desconfiado, com aquele costume que tinha de zelar pela irmã. Quando levantei os olhos do jornal, vi que o moço chamava o vendedor da Kibon. Regina veio me perguntar se podia tomar sorvete, o estranho aproveitou para falar comigo, disse que as crianças eram muito simpáticas, bem educadas - essas lisonjas que facilitam uma aproximação.
Casamos daí a uns meses. Eu hesitara, sempre tivera medo de dar padrasto aos meus filhos, e, além disso, fora tão infeliz no primeiro casamento. Mas a verdade é que fiquei louca por aquele homem. E ele por mim, faça-se justiça. Apesar da terrível crueldade que fez comigo, não posso negar que gostasse demais de mim. É certo mesmo que tudo nasceu, justamente, desse amor que ele me tinha. Na nossa lua-de-mel, as crianças ficaram na casa da minha irmã mais velha. Mas, ao chegarmos de Campos de Jordão, trouxe-as de volta para o apartamento. Aí, confesso, foi um pouco difícil acostumar meus filhos à presença daquele homem, a ocupar um lugar que sempre fora deles. Regina não se conformava em dormir sozinha num quarto, e Jorge, apesar de aos sete anos se considerar um rapaz, vinha de madrugada me pedir remédio, alegando dor de barriga, dor de cabeça, insônia. Eu fingia não perceber a irritação de meu marido, que me parecia demais. Afinal de contas, eram crianças, e ele devia ter pensado nisso quando resolveu se casar com uma viúva, mãe de dois filhos pequenos.
Com pouco eram três inimigos. Ele se irritava com tudo que os meninos faziam. Um dia Regina, por exemplo, o tratou por "você" e ele reagiu como se a pequena lhe tivesse dito um nome feio.
- "Senhor", tem que me tratar por "senhor"!
Se os garotos pegavam um objeto dele, se apanhavam um lápis, se rasgavam uma revista, se abriam uma gaveta, explodia um vulcão e se seguiam dias de zanga. A maior injúria era eu me deitar na cama com um dos dois. Na noite em que Jorge teve dor de ouvido e eu fiquei com o menino no quarto, parecia até que eu estava dormindo com outro homem.
Meus filhos iam assim se habituando a só me fazer carinho e a só conversar comigo quando me viam sozinha. Na frente do "outro" tomavam um ar distante, sonso ou medroso, que me enchia de angústia e sentimentos de culpa.
Curiosa foi a seção que tacitamente adotaram contra o padrasto: deixaram de o chamar de "tio" como faziam a princípio (papai, como eu tentava ensinar, nunca o chamaram) e até mesmo de Dr. Paulo, como ultimamente. Para os meninos, meu marido deixou de ter nome. Quando se viam forçados a uma referência direta, diziam constrangidamente "ele". Já estávamos casados fazia mais de dois anos e cada dia a situação se tornava mais intolerável. Bem no fundo do coração ia me ocorrendo a idéia de um desquite. Mas eu não conseguia tomar decisão nenhuma - minha Nossa Senhora, que amor eu tinha àquele homem!, mas nem tanto amor me cegava, vendo aquela dureza, aquele ciúme de um homem feito, quarentão, contra duas crianças sem pai.
A crise chegou, afinal, no dia do aniversário de Jorge. Veio tão diferente do que eu esperava, tão imprevista, que não pude agir de outro modo. Deus que me perdoe se não escolhi meus filhos. Mas na hora me parecia até que eu estava sendo heróica, que me sacrificava por eles... Jorge convidara todos os seus amigos do prédio, fiz um bolo de velinhas - realmente houve muita gritaria e barulho. Meu marido saiu de casa ostensivamente, alegando que eu não tinha o direito de abalar o edifício inteiro com cantoria e uivos, e que essas festinhas eram costumes da roça. Não me bastava dentro de casa a algazarra de duas crianças mal-educadas, eu ainda convocava cinqüenta!
Passou a noite sem falar com ninguém. No dia seguinte, chegou em casa para o almoço com o rosto ainda mais carregado. Mal comeu. Mas não parecia zangado, parecia antes triste. Ao café, disse-me que assim que as crianças saíssem para a escola precisava ter comigo uma conversa muito séria. Fiquei esperando, de coração grosso.
Ele começou muito branco, com o braço passado nos meus ombros. Sim, confessava que nos últimos tempos andava irritado, infeliz. Via que me magoava e isso lhe doía muito. Mas hesitava em me dizer a terrível verdade, antes de ter uma certeza definitiva. Agora, que chegara a essa certeza, não podia mais fugir, tinha que contar...
Fazia tempo se sentia doente. A tosse noturna - tosse de fumante, lhe parecia antes - se agravava, e deu para lhe aparecer uma febrezinha às tardes. Falta de apetite, cansaço -acabara fazendo uma radiografia do pulmão. Resultado alarmante. Exame de escarro: positivo. Tuberculose já bem instalada, bem adiantada. E enquanto eu soluçava, num desespero, ele ia me consolando. Tuberculose não é mais moléstia incurável. Não existe sequer mudança de clima. Basta que o doente queira e tenha paciência - sim, o principal é a paciência. Aqui mesmo no Rio, com um bom especialista, ele ia tratar de ficar bom.
Havia, contudo, uma condição dolorosa: claro que iria me custar muitíssimo, mas não se tratava dele, nem sequer de mim - tratava-se das crianças. Seria preciso tirá-las de casa, porque nem comigo elas estariam em segurança.
- Meu bem, tenho horror de pensar nisso, mas quem sabe você não está contaminada também? Convivendo comigo, na intimidade do casamento. Tem que afastar as crianças. Afinal, seria um crime...
Lembrei timidamente um sanatório. Ele riu, amargo. Sanatório! Só por conta do Instituto, e nesse caso ele teria que se submeter a um processo complicado de licença para o tratamento, talvez mesmo aposentadoria.
- Você sabe quanto vou receber de ordenado se me aposentar agora? Não dá nem para o nosso sustento.
Meu coração deu dez voltas, mas vi que ele tinha razão. Seria mesmo um crime arriscar as crianças. Mandamos Jorge para um colégio de Friburgo. A menina foi morar com minha irmã.
Eu via meus filhos em visitas rápidas. Cheguei a um ponto em que evitava abraçar meus filhos, beijá-los - quem sabe não estaria passando para eles o maldito micróbio? E via, entretanto, que eles se ressentiam e não acreditavam nas explicações que eu lhes dava.
Três anos durou essa situação. A doença do meu marido não progredia, mas os exames continuavam a dar resultados positivos. Cada vez em que ia ao médico ele voltava para casa desconsolado. Proibia que eu comentasse o caso com alguém - tinha horror de que se espalhasse a notícia da sua moléstia. Também nunca me levou às consultas do especialista - dizia que toda aquela história o humilhava. O próprio tratamento fazia-o longe das minhas vistas, tomando as injeções no hospital onde trabalhava.
Certa noite, de repente, meu marido sentiu-se mal. Foi levantar-se, deu uma coisa nele, caiu no chão. Corri pensando numa hemoptise mas não vi sangue nenhum. Tive que o arrastar para a cama, pois ele não mexia o corpo. Nem falava. Ambulância, hospital.
- Foi um ictus, explicou o doutor do pronto-socorro.
Quase morri de aflição. Pobre do meu amor, não bastava a moléstia do peito, o heroísmo escondido com que enfrentara a tuberculose. Tuberculose? O doutor se admirou. Não notara nada para esses lados, mas ia fazer um exame completo. E examinou. Convocou-me para lhe dizer o que eu sabia. Novos exames. Vieram outros médicos. Porém, a escuta, a radiografia e o laboratório não confirmaram nada. Meu marido tinha os pulmões perfeitos. Eu já não compreendia coisa nenhuma e apelei para o especialista cujo consultório Paulo freqüentava todas as semanas para o tratamento de pneumotórax.
O professor chegou - com certeza havia um engano, o colega nunca o procurara. Aliás, era fácil ver que jamais fizera pneumotórax: na pele lisa, sobre as costelas, não se via sinal de agulha...
- A senhora não sabe que para fazer pneumotórax injeta-se ar na pleura?
Não, eu não sabia de nada, nunca vira ninguém fazer pneumotórax e não tinha motivos para duvidar da palavra de meu marido...
Sim, nunca duvidara de meu marido! Acreditava cegamente nele - e, meu Deus, tudo aquilo fora uma farsa. Aqueles anos de sofrimento, meus filhos me tratando quase como a uma estranha. Ah, demônio. E agora me fitava com os olhos muito abertos, balbuciava com a língua presa explicações que ninguém compreendia, naturalmente querendo inventar mentiras novas para desculpar as antigas!
E hoje ninguém entende por que tomei ódio dele - eu, a esposa dedicadíssima. Nunca mais o quero ver - farsante, malvado, miserável. E nem ao menos morre. Os médicos dizem que pode ficar quinze, vinte anos no estado em que está, paralítico e mudo - ainda é jovem, bem tratado - sim, pode nos enterrar a todos!

Rachel de Queiroz é escritora, autora de
O Quinze e Memorial de Maria Moura, entre outros