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Roberto Romano
Contra a ética barata

Os piores bandidos podem se louvar de comportamentos éticos.

Um luminoso artigo publicado na Folha de S. Paulo (02/08/97), cujo título é a aguda definição de um mal ("A Moda da Ética e a Ética Sem Dor"), Alberto Dines adiantou muito do que temos sofrido na vida política de hoje, sobremodo no Brasil. "Ética sem abnegação", dizia ele, sem "obrigação moral, desobrigada de sacrifícios, converte-se em ornamento. A defesa do meio ambiente pressupõe e impõe uma série de compromissos e até desconfortos, sem os quais torna-se cínica. O discurso ético pressupõe uma existência ética. Aliás, convém acautelar-se com os discursos em geral dissociados de uma vivência correspondente. O Ser Moral que é questionado permanentemente nada tem a ver com o moralismo fetichista. No caso do jornalismo, a ética incorpora-se à técnica, não é disciplina olímpica. O médico que só se ocupa com a doença e esquece o doente rompeu o seu contrato social".
Extraindo a referência aos filósofos cínicos, pois admiro o ideal absoluto de retidão daqueles pensadores, caluniados pelos "virtuosos" ou hipócritas do Ocidente inteiro, concordo em gênero, número e caso com Dines. Dizem que certo filósofo cínico, ao enxergar um mocinho bebendo água na palma das mãos, jogou fora a sua caneca. Testemunho mais adequado do quanto a raça dos "cães" (no grego, a origem para "cínico" é esta) é um bom modelo moral, impossível. Em terra onde ser "alguém" significa comprar ninharias caras (bolsas de plástico vagabundo, ao preço de vários meses de salários familiares, por exemplo), a lição dos cínicos deveria ser acolhida por todos os honestos. Outra lição a ser assumida é o exemplo de orgulho próprio dos cínicos, a sua recusa da bajulação face aos poderosos. Face ao mundo político brasileiro, no qual certa imprensa se caracteriza pela pura e simples adesão aos poderosos (dos palácios ou praças, pouco importa), vale a pena respeitar a prática dos cínicos. Não me estendo por acaso, neste comentário ao texto de Alberto Dines, ao redor dos cínicos. A essência altamente moral da lição fornecida pelo nosso jornalista instala-se numa tradição filosófica pouco freqüentada em nossos meios. Estamos acostumados aos discursos dogmáticos e totalitários que supervalorizam o lado ético da vida social, em detrimento de toda e qualquer moralidade. O último grande embate das doutrinas ao redor do comportamento humano deu-se entre Immanuel Kant e os seus sucessores imediatos, os chamados "idealistas alemães". Em Hegel, sobretudo, marcou-se a suposta excelência da formação ética para os indivíduos. Estes deveriam ser "polidos" pelas formas universais (trazidas pelo Estado), perdendo as "ilusões" de liberdade e de autonomia. O molde da universalidade deveria ser aplicado em toda pessoa privada, assumindo o poder político as funções de grande professor do coletivo. Neste aspecto, Hegel zombou das tentativas kantianas de estabelecer a livre responsabilidade dos indivíduos diante de si mesmos e dos seus iguais.
Isso me leva ao segundo aspecto nuclear das frases de Alberto Dines, citadas anteriormente: para Kant, os enfeites da moral deveriam ser abandonados em proveito da coragem, da ascese, do sacrifício, do caráter. Falar em ações morais visíveis, no entender do grande filósofo, é um contra-senso. A moral existe na consciência invisível, e apenas ali ela se estabelece em plenitude. Kant jamais aceitaria a palhaçada da língua e dos gestos "politicamente corretos".
Moral barata, esse é o nome da "ética" que passou a circular no mundo e no Brasil em data recente. Se ambos os termos, ética e moral, têm origem nos "mores", a verdade é que testemunhamos, no século 20, o triunfo da ética sobre a moral, com o nazismo (em nome dos costumes alemães), o fascismo e o stalinismo. Quando a forma coletiva desses movimentos genocidas moldou as consciências das massas, poucos indivíduos permaneceram morais e livres. Refiro-me aos protestantes "arianos", que poderiam aderir aos privilégios nazistas e foram parar nos campos de concentração, como D. Bonhoeffer. Refiro-me aos poucos católicos que ousaram desobedecer ao Vaticano e a Hitler (unidos através de uma vergonhosa Concordata de Império), acolhendo seus irmãos judeus. Refiro-me aos membros do Partido Comunista soviético, os quais, podendo aderir à burocracia, manter cargos e benefícios, morreram nos campos de concentração. Eles foram poucos. Mas o aristocracismo da moral é a sua condição de existência. A ética, quase sempre, é norma dos rebanhos. Não estranha que a doença "ética" hoje se manifeste como uma espécie de pandemia, impondo os mais diversos controles sociais e políticos. Na verdade, este sempre foi o seu mister. O coletivismo é fonte de escravidão, em todos os sentidos. Os piores bandidos podem se louvar de comportamentos éticos. Morais, poucas pessoas podem ser.
Cientistas que pensam segundo o coletivo ("a comunidade acadêmica") permanecem na mediocridade. Jornalistas que seguem as regras do "público", mesmo ganhando muito dinheiro, são proxenetas puros e simples da "opinião". "O filósofo", dizia Kant, "que pretende ser o seu enunciado verdadeiro, porque repete as certezas das multidões, deveria se ruborizar". Infelizmente, por vários motivos, muitos professores de filosofia aproveitaram a atual onda "ética" para vender livros e ganhar notoriedade. Não vejo nenhum tom de vermelho nas suas faces. Mesmo como enfeite.