Postado em
Rap
A palavra consciente agita a periferia

De origem norte-americana, o rap chegou ao Brasil há quase vinte anos e nesse tempo conquistou adeptos e foi assimilado pela realidade brasileira como força de expressão dos jovens das periferias
Tudo começou em Nova York no final dos anos de 1960. Nos lugares chiques da cidade, mais especificamente dentro das discotheques, o momento era das roupas brilhantes, dos globos espelhados e da disco music. Ignorando todo esse movimento, os jovens pobres e negros em sua maioria, que habitavam os subúrbios, só queriam saber de dançar break. Era uma disputa entre gangues cuja arma era o molejo. Em torno desses grupos, com objetivos sociais tão marcados quanto a batida de suas músicas, surgiu o movimento hip hop, que agrupou ainda o grafite como manifestação visual e, mais tarde, o rap como ritmo.
O termo rap vem das palavras rhythm and poetry (ritmo e poesia) e une arte e discurso político. Esse estilo de cantar falado (ou falar cantado, como preferir) de origem jamaicana, na verdade, foi um dos que mais encontrou eco dentro da cultura americana. A indústria fonográfica logo percebeu o potencial do estilo, e os rappers e os MCs (mestres de cerimônia) conquistaram a atenção do mundo.
Aqui no Brasil, por volta de 1983, começaram a ser ouvidos nomes como RUN DMC, Public Enemy (referência entre nove de dez MCs bazucas) e Nauthy By Nature. São Paulo foi a primeira grande cidade brasileira a fazer parte da rota do hip hop e não demorou para os jovens paulistanos entenderem a essência do rap e apropriarem-se dele para refletir sobre a nossa realidade, denunciando a injustiça social. Foi nessa época que Thaíde e DJ Hum e os Racionais MCs começaram a soltar os primeiros petardos de consciência política e racial na história do rap brasileiro.
Rap camisa 10
Quando chegou aqui, o rap vestiu a camisa 10 da seleção brasileira, por assim dizer. Desligou-se cada vez mais do "modelo" americano e, hoje, respira sem aparelhos (entenda-se megaesquemas de grandes gravadoras). Além disso, os grupos locais não seguem a linha "durão-porém-chique" dos rappers americanos que cantam a bordo de Mercedes ostentando grossos cordões de ouro no pescoço. Ao contrário, o rap brasileiro rumou direto para a periferia das grandes cidades. As letras levantam as bandeiras da justiça e da humildade e são compostas pelos moradores de bairros pobres e para desfrute da própria vizinhança. "Não dá para comparar as letras do rap feito nos Estados Unidos com o feito aqui", explica o DJ Macarrão, que há seis anos pilota suas pick-ups (toca-discos) em festas promovidas na periferia de Santo André. "Aqui a gente fala da nossa realidade sem se preocupar com promoção." "É mais politizado", emenda o grafiteiro Ícaro. "E tem que ser", enfatiza. "Nas condições que a gente vive aqui e sabendo de que maneira eles vivem lá, a gente tem que ser mais consciente."
Macarrão e Ícaro fazem parte da mesma turma, que freqüenta a Casa da Juventude criada pela prefeitura de Santo André. A eles somam-se muitos outros. Manos e minas que têm em comum a vontade de mudar o curso do mundo usando a arte de suas palavras. Quase sem exceção, os rappers montam grupos de três ou quatro integrantes que se apresentam ao vivo. Os MCs recitam a letra sobre as batidas pré-gravadas que os DJs tocam nas pick-ups.
O grupo MV Cautela (MV como abreviação de "munição verbal") se apresenta há três anos "em todos os lugares onde as coisas estiverem acontecendo", como explica o rapper e compositor Davison. "A gente costuma falar pros jovens estudar e se informar", explica o jovem compositor que canta em suas letras coisas como: "Te iludem, confundem teu raciocínio, tornando lento, fique atento [...]". Para escrever as letras, Davison devora livros de História, de onde surge sua inspiração e de onde ele tira suas comparações. "Mas gosto de contos também. Histórias de 'era uma vez...'" Na sua opinião, os rappers precisam ler o máximo possível para aumentar seu arsenal de palavras, o poder de fogo de um rap bem feito. "A leitura, sem dúvida, é a fonte para conhecer novas palavras. Ainda mais quando a gente faz os improvisos, inventando o rap na hora. Você precisa ter muita palavra na cabeça para não falar besteira", ensina.
Tifu é outro rapper que sabe o que diz. Adepto do que ele chama de MRB, Música Revolucionária Brasileira, o MC de 15 anos tem fé no movimento hip hop e, portanto, no rap. "Eu acho que não é uma tendência passageira. Os verdadeiros vão ficar." Aliás, o modismo é outra preocupação dos rappers. O medo é que aconteça com o rap o que aconteceu com o samba, em que, segundo Davison, "tem muita coisa boa ainda mas quem faz sucesso mesmo são os caras que não fazem a parada certa e estão na mídia". E Tifu rebate: "Na verdade, é a gente que não pode deixar virar moda".
Dialetos urbanos
As letras de rap chamam a atenção pelo conteúdo sempre forte. Letras nas quais termos como "classe dominante", "capitalismo", "opressão" e "injustiça" são recorrentes e invariavelmente aparecem como os grandes males que assolam os desfavorecidos. Porém, além do conteúdo, a estrutura das letras também gera polêmica por ignorar a chamada norma culta da linguagem e reproduzir o estilo das ruas: cheia de gírias e regras próprias de concordância e plural. "É nóis na fita, tá ligado?"
Segundo o lingüista Marcos Bagno, a celeuma se dá na resistência por parte dos supostos dominadores da norma culta que insistem em repudiar a linguagem coloquial. "É uma forma muito sutil de preconceito", explica Bagno. "Existe uma noção de que para determinados contextos e efeitos seria necessário usar um padrão lingüístico apropriado. Mas essa adequação é estabelecida por padrões pouco democráticos. Pode ser que em determinados ambientes, eu queira justamente mostrar que não estou me adequando. Eu posso querer marcar minha diferença e explicitar que não estou compactuando com determinada situação." Esse "preconceito lingüístico", nas palavras do lingüista, agrava-se ainda mais quando recai sobre um discurso tão atual e contundente como o do rap, que denuncia a exclusão. Bagno explica que se trata de um problema sociolingüístico. Uma discussão antiga e não restrita ao universo urbano dos rappers. Basta lembrarmos a maneira jocosa como é tratado o modo de falar dos nordestinos ou dos moradores de cidades do interior de São Paulo, por exemplo.
No entanto, segundo Bagno, os estudos nesse sentido se intensificaram a partir do surgimento do rap nos guetos negros americanos. Momento em que o modo quase dialetal de falar a língua inglesa, saído dos microfones dos MCs norte-americanos, chamou a atenção do mundo. "O intuito, além de tudo, é mostrar que eles valorizam sua cultura e que se opõem ao modo como eles são normalmente tratados", analisa Bagno. "É também uma maneira de reforçar os laços dentro da própria comunidade e marcar as diferenças desta em relação às demais."
Rap literário
De fato, ao contrário do que se pensa, os rappers e demais comunicadores da periferia têm essa consciência e sabem onde querem chegar. O escritor Ferréz, que mora há vinte anos no Capão Redondo, periferia de São Paulo, ganhou páginas em grandes jornais com a publicação de seu último livro, Capão Pecado, um relato sobre a realidade da periferia.
Ferréz conta que agora é cumprimentado pelos "playboys" nos lugares onde vai, mas seu interesse está na impressão que sua obra causa em seus vizinhos e amigos e não na opinião dos críticos. "Quando lancei meu livro de poesia, o Fortaleza da Desilusão, percebi que no dia do lançamento foi o pessoal daqui que tinha colado para dar força", conta o escritor. "Aí pensei que, como foi o pessoal daqui mesmo que colou, poderia fazer um livro para eles. Não vou mais me interessar por nada lá de fora, vou fazer as paradas para nós. O livro é a cara de todo mundo, mano. Não é só a minha cara, é a cara de 204 mil pessoas que moram aqui. Eu tento representar todo mundo na medida do possível." Ferréz também escreve letras de rap para seus amigos e acredita que há um novo movimento no processo de composição dos versos. Uma preocupação maior na transmissão da mensagem. "Eu vejo que os grupos de rap têm muita vontade de compor, mas, às vezes, não têm conteúdo. Falta informação na área. Eu pensei 'eu tenho uma pá de conteúdo, uma pá de coisa que eu leio e que poderia usar no rap'. Daí eu comecei a fazer as letras para os grupos. A gente ainda está desenvolvendo o esquema do rap com a literatura."
Sobre a discussão do preconceito lingüístico em relação aos rappers e seu jeito de falar, Ferréz é categórico: "A periferia está fazendo seu linguajar, o Nordeste tem seu linguajar próprio. Todo mundo se adaptou, mano. Por mais que tentem fazer a gente engolir, a gente se adaptou e foi criando novas formas. O cara tem de saber que ele pode falar 'é nóis na fita', mas ele tem de ter a consciência que ali tinha de ser plural. Mas tem que levantar a bandeira mesmo, falar desse jeito porque esse jeito é nosso".
O Sesc Itaquera localiza-se numa das maiores regiões periféricas de São Paulo, abrigando um grande número de grupos musicais de rua que não encontram espaço para mostrar suas idéias. A unidade, por sua vez, tem como um dos seus objetivos conquistar o público adolescente, estimulando-o a participar interativamente de ações socioculturais, além de prepará-lo para se inteirar dos problemas da comunidade. Pensando nisso, o Sesc Itaquera tem realizado periodicamente eventos sobre a cultura rap, que resultam na integração das bandas, possibilitando também que os jovens se conheçam e passem a freqüentar a unidade, usufruindo de seu equipamento único na região. Os grupos que representam o rap na Zona Leste relatam nas suas letras a violência e o caos que dominam a periferia. Apresentam-se em escolas da região e praças públicas, incentivando os jovens a buscar novas formas de desenvolvimento pessoal, desviando-os do caminho das drogas e da marginalidade. Dentre os grupos de maior expressão, destacam-se o D-Crime, o R-ZO e o XIS, que ganhou o prêmio de melhor videoclipe de rap do VMB2000, concebido pela MTV. |