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Água
As reservas de água potável se esgotam

Fonte fundamental da vida, as reservas de água potável fazem parte da agenda de preocupações do planeta. No futuro, sua escassez pode provocar conflitos nas regiões mais dramáticas. No presente, os recursos hídricos do mundo são, na maioria das vezes, tratados com desprezo
Quase 1,5 bilhão de quilômetros cúbicos, o volume de toda a água disponível na Terra, não serão suficientes para atender a carência desse recurso natural nos mais diferentes pontos do planeta já na próxima década.
Educação ambiental para alterar os hábitos de consumo e avanços tecnológicos capazes de recuperar a qualidade da água são duas formas de garantir fontes potáveis para uma população mundial estimada em 9 bilhões de pessoas em 2050.
O alerta sobre a ameaça à água doce no futuro demanda esforços gerais, tanto de instituições como a Unesco, órgão das Nações Unidas para Ciência, Educação e Cultura, como de organizações independentes, caso do Worldwatch Institute. Pesquisadores desses centros coletam e combinam dados para desenhar um cenário futuro da vida no planeta. Em relação à água, há uma preocupação crescente.
Apesar de abundante na Terra, cobrindo 370 milhões dos 510 milhões de quilômetros quadrados da superfície planetária, quase toda água é salgada e por isso mesmo imprópria para o consumo doméstico, industrial e agrícola. Os elevados custos da dessalinização, especialmente pelo alto consumo de energia, desestimulam o aproveitamento potável das águas marinhas.
A porção de água doce na Terra é apenas 2,5% do total. E, ainda assim, 69% desse volume estão congelados nas calotas polares e nos cumes montanhosos. Outros 30% são água subterrânea e apenas 0,3% flui sob a forma de rios e lagos. O que sobra se divide entre a umidade dos solos e o encharcamento das terras que formam os pântanos.
Além de reduzida, pelo menos em comparação ao volume total, a oferta de água doce, em rios e lagos, está disponível de forma desigual pelo planeta. Isso explica por que regiões como o Oriente Médio já enfrentam estresse hídrico. Estresse hídrico é uma situação em que a oferta já não atende às necessidades de consumo de uma comunidade.
A carência crescente de água deve estimular conflitos potenciais na disputa por estoques limitados já no próximo século, prevêem especialistas. Se isso acontecer, estaremos recuando a épocas em que grupos armados lutaram por territórios ricos em recursos naturais, especialmente água, eliminando seus concorrentes pela força bruta.
A água doente
Mas mesmo sem guerras, a água, neste caso a contaminada, provoca milhões de mortes. O cólera, uma das doenças mais freqüentes relacionadas à água, e que se acreditava erradicada, recrudesceu no Peru no início de 1991, um mês após o encerramento do Decênio Internacional de Água Potável e Saneamento Ambiental (1981-90), organizado pela Unesco. Do Peru, a doença espalhou-se por outros países latino-americanos e fez vítimas também no Brasil.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que as doenças relacionadas a águas contaminadas vitimam 250 milhões de pessoas a cada ano. Essas enfermidades matam de 5 a 10 milhões de pacientes, especialmente crianças enfraquecidas pela má alimentação. Vermes no intestino atormentam o cotidiano de pelo menos 1,5 bilhão de pessoas, 25% da população mundial, e matam pelo menos 100 mil doentes a cada ano.
Em regiões atingidas pela falta de água, as mulheres são as mais afetadas. Mulheres e meninas, na África subsaariana, caminham quilômetros a cada dia para garantir o consumo de suas famílias. Acidentes, como o ataque de animais selvagens, especialmente crocodilos, são relatos comuns associados a essa busca distante.
Sandra Postel é diretora do Global Water Policy Project, em Massachusetts, nos Estados Unidos. Uma das autoridades mundiais em água potável, ela vislumbra um cenário preocupante para o abastecimento mundial na próxima década. Se comportamentos até agora negligentes envolvendo o uso da água, e o ambiente como um todo, não forem alterados, o resultado será uma crise sem precedentes, prevê. O Global Water desenvolve estudos e projetos para estimular a tomada de posições preventivas, especialmente por administradores públicos.
Num artigo para a edição março/abril da The Sciences, revista da Academia de Ciências de Nova York, Postel aponta regiões de conflitos potenciais quanto à demanda de água. Essa situação deve-se especialmente ao fato de os 261 grandes rios em todo o mundo, entre eles o Jordão, o Nilo, o Tigre e o Eufrates, passarem por dois ou mais países. Na maioria dos casos, não existe entre esses vizinhos qualquer acordo sobre o uso das águas.
Em cinco áreas de estresse hídrico atual (mar de Aral, Gângis, Jordão, Nilo e Tigre-Eufrates), a população pode aumentar de 30% a mais de 70% até 2025. Postel acredita que o Egito é o caso mais preocupante. O país já retira para consumo dois terços das águas do Nilo. O problema é que 85% do fluxo do rio origina-se na Etiópia. No passado, esse país empobrecido fez pouco uso dessas águas. Mas, nos últimos anos, começou a construir um diversificado sistema de represas. A intenção é confinar em seus limites a riqueza desprezada antigamente. Ao mesmo tempo, o Egito desenvolve grandes projetos de irrigação. Que argumentos serão utilizados na partilha?
Mesmo regiões historicamente estabilizadas quanto a enfrentamentos, caso da Península Ibérica, podem conhecer disputas pelo menos diplomáticas no que concerne ao uso das águas. Ao longo desta década ocorreram vários pequenos atritos entre portugueses e espanhóis pelas águas do rio Douro.
O mar de Aral, na antiga União Soviética, é considerado o pior desastre ambiental do século. Quando se decidiu desviar as águas de dois rios que o alimentavam, ele começou a secar. O mar de Aral já foi o quarto maior corpo interno de água do mundo. Hoje, encolheu para dois terços desse volume. As águas se afastaram 25 quilômetros do antigo porto de Muynak e o leito do antigo mar ficou exposto, varrido por ventos que espalham especialmente doenças respiratórias e câncer. Com seus antigos barcos de pesca apodrecendo no leito seco, a população também ficou sem alimentos e desempregada, com a falência da indústria pesqueira. Muynak e os arredores lembram o castigo de uma praga bíblica.
Água rara
O Brasil tem o maior estoque de água doce do mundo, um volume de 12% do total. Mas nem isso evita que cidades grandes e pequenas enfrentem problemas de abastecimento. De prédios de apartamentos, nas grandes cidades, às modestas casas de pequenas localidades, caixas d'água estão incorporadas ao cotidiano da população. Sem despertar a suspeita de que refletem um abastecimento pouco confiável.
No Brasil, como em outros países subdesenvolvidos, a precária manutenção das redes urbanas de distribuição de água é o maior comprometimento na qualidade de prestação desse serviço. Neste inverno, parte dos 15 milhões de paulistanos tiveram cortes em seus suprimentos de água. Como acontece em outros países, os responsáveis pelo abastecimento atribuíram o corte a "falta de chuvas".
A justificativa climática para o controle público dos níveis de água remonta a pelo menos oitocentos anos, quando, no século 12, Parakramabahu, rei do Sri Lanka, antigo Ceilão, construiu e reformou milhares de instalações, entre reservatórios, diques e canais. Apenas um dos reservatórios, o mar de Parakramabahu, estendeu-se por 3 mil hectares, com capacidade para alimentar as culturas de outros 10 mil hectares. O rei, que entrou para a História, sabia que a natureza é imprevisível. Ao estocar cada gota de água sobre suas terras, ele assegurou um reinado longo e profícuo. Em São Paulo, a cada dia, a rede de furos da Companhia de Saneamento Básico de São Paulo (Sabesp) desperdiça 925 milhões de litros. Essa produção equivale a toda produção do sistema Guarapiranga, no sul da cidade. Em São Paulo, estudos demonstram que mudanças de hábito no uso da água permitiriam uma economia de quase 80%.
Mas a educação ambiental para o uso da água também passa por uma outra política no uso de terras. O desmatamento que desnudou regiões inteiras retirou até mesmo as matas ciliares, as cobertas que acompanham o curso dos rios. A função das matas ciliares é controlar a erosão, a destruição das terras de cultivo pelas chuvas pesadas que carregam para os rios a parte mais nutritiva do solo. O desmatamento, além de provocar erosão, também diminui a capacidade de retenção de água e com isso fontes d'água se esgotam mais rapidamente à época da seca, quando as menores temperaturas do inverno diminuem a evaporação e, com elas, a freqüência das chuvas.
Ulisses Capozoli é jornalista especializado
em jornalismo científico
Fonte gelada - A água doce dos icebergs Se a escassez de água confirmar as previsões dos especialistas, a tendência é que os grandes icebergs antárticos sejam rebocados para regiões carentes e bombeados para fornecer água potável. A idéia de utilizar a água doce dos icebergs foi concebida pelo explorador polar francês Paul-Émile Victor. Nos anos 70, um príncipe saudita chegou a oferecer água de icebergs a clientes potenciais. Os icebergs antárticos, por serem geralmente planos, podem ser transportados com mais facilidade que os blocos de gelo irregulares do Ártico. |
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