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Moacyr Scliar
Páginas de uma vida

O escritor gaúcho Moacyr Scliar esteveno Sesc Carmo na inauguração do evento Horizontes Literários. A seguir, os principaistrechos da intervenção do autor

Mais que escrever, desde que me dou por gente penso em contar história. Não podemos esquecer que a base da literatura é a narrativa, ou seja, é contar histórias. A Bíblia, por exemplo, além de um livro religioso, com preceitos éticos, também é um conjunto de narrativas. Quando eu penso em minhas origens como escritor, relembro meus pais. Eles eram judeus russos e fizeram parte de um contingente migratório que veio para o Brasil nas primeiras décadas do século 20. Eles moravam no Bom Fim, um bairro muito parecido com o Bom Retiro, em São Paulo. Lugar de gente trabalhadora, repleto de imigrantes. Minha família tinha uma marcenaria e éramos pobres. Vivi uma infância carente, mas feliz, pois era um estilo de vida completamente comunitário. Eu lembro que as famílias se juntavam nas portas das casas para tomar chá e chimarrão e nesses momentos se contavam histórias: essa era a rotina de todas as noites. As histórias eram maravilhosas. Para começar, aqueles imigrantes não tinham a menor idéia do que era o Brasil. Das pouquíssimas coisas que tinham ouvido, eles formaram uma imagem fantástica do país. O mais incrível é que a expectativa dos imigrantes era muito prosaica. Muitas vezes, eu perguntei o que eles esperavam ao vir para o Brasil. A resposta do meu pai foi "banana". Além disso, meus pais eram grandes contadores de história. Minha mãe era professora, uma exceção naquele bairro. Para ela, ler era a verdadeira nutrição espiritual. Desde muito cedo ela me introduziu na leitura. Tínhamos uma espécie de ritual: mais ou menos uma vez por mês, minha mãe me levava a uma grande livraria no centro de Porto Alegre. Quando eu entrava lá, me ocorriam duas sensações. A primeira era uma sensação de ansiedade. Eu tinha vontade de comprar todos aqueles livros. Mas, em seguida, vinha a segunda sensação, que era de terror: como podia gastar dinheiro com livros em vez de coisas mais importantes para a casa? Nessas ocasiões, minha mãe vinha com uma frase que ficou na minha cabeça: "Na nossa casa pode faltar qualquer coisa menos livros".

O escritor
Às vésperas de um aniversário de infância, meu pai me prometeu um presente. Disse que seria algo que eu estava esperando há muito tempo. E, de fato, eu queria ganhar uma bicicleta. Ele trouxe o presente. Não era uma bicicleta. Era uma máquina de escrever. Minha primeira reação foi de decepção. Só muito tempo depois eu entendi o recado que estava por trás daquele presente. Era o seguinte: "Com a bicicleta talvez tu vais longe, mas com a máquina de escrever, tu vais mais longe ainda". Mais tarde, entrei na faculdade de Medicina. Essa etapa foi muito importante porque me alargou extraordinariamente o horizonte. A experiência da medicina é transcendente. As pessoas enfermas não conseguem guardar seus segredos para o médico. No meu caso, eu nutria interesse pela Medicina Social. Muito cedo me encaminhei para esse tipo de atuação. Nas vilas populares de Porto Alegre, travei contato com a miséria e isso foi um choque para mim. Imediatamente, comecei a extravasar essa experiência em forma de ficção. Eram histórias que eu publicava no jornal da faculdade. No último ano do curso, juntei essas histórias em um livro.

Kafka
Franz Kafka tem um livro chamado Parábolas e Paradoxos. Suas histórias são baseadas nas parábolas bíblicas. Nesse livro há uma parábola que uso como ponto de partida para meu livro Leopardos de Kafka. Ela diz: "Os leopardos invadem o templo e bebem até o fim o conteúdo dos cálices sagrados. Com o tempo, isso se torna previsível e passa a fazer parte do ritual". Quando se pensa nessa história, nota-se que ela resume todos os regimes autoritários que o mundo conheceu. O que são regimes autoritários? É um regime que vai se insinuando e com o tempo passa a fazer parte da normalidade, ou seja, a transgressão se torna normal. E as ditaduras estabelecidas na América Latina são um exemplo disso. O papel da literatura é mostrar as coisas que estão atrás da notícia. A dimensão humana que está por trás da notícia. É isso que a sensibilidade do escritor transmite.

Érico Veríssimo
Um dia eu o encontrei na rua, tinha uns 14 ou 15 anos, e perguntei se poderia mostrar um conto para ele. Ele aceitou com todo o prazer. Uns dias depois eu voltei à casa dele e ele elogiou muito, disse para continuar que eu tinha futuro. Naquele momento, senti-me como se tivesse ganho o prêmio Nobel. Na semana seguinte, eu abri uma gaveta e encontrei a última página do conto que tinha entregue a ele. Ou seja, ele deve ter lido, mas não entendeu nada. Érico Veríssimo era um homem tão bom que decidiu não me desencorajar.

Maturidade
O amadurecimento é um processo que não pára nunca. Todo texto tem um potencial de aperfeiçoamento. Mesmo depois que meus livros são publicados, eu trabalho neles. Agora, a contrapartida disso é a ânsia de publicar, ânsia que eu vejo principalmente entre os jovens. Acho que eles devem protelar ao máximo a vontade de publicar até se sentirem maduros o suficiente. Foi o que aconteceu comigo. Arrependi-me de ter publicado meu primeiro livro. Na época, não percebi que estava sendo imaturo. Só depois, quando apaziguei um pouco esse impulso, vim a publicar meu segundo livro de contos, Carnaval dos Animais. Aliás, em Porto Alegre, os donos dos sebos estão avisados de que se aparecer um exemplar desse livro não é para vender para ninguém porque eu compro.