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Ficção
A prima-dona
Alcione Araujo
Vestida com um diáfano robe vermelho, de óculos escuros, cabelos enrolados em bobes, o rosto emplastrado de cremes, e aliviando-se do abafamento com o sopro do ventilador sobre a cabeceira da cama, Diva olha com indiferença a paisagem que desfila pela janela aberta, enquanto a voz gravada de Maria Callas cantando a ária "Follie! Delírio vano e questo!", da ópera La Traviata, ressoa pela cabine.
Recostado em almofadas e travesseiros recendendo a alfazema, seu corpo balança suavemente ao sabor dos movimentos do veículo.
Esse estado de silêncio, cansaço e desalento é rotineiro nos dias seguintes às apresentações bem-sucedidas. A quietude denuncia a sombria nuvem de depressão que paira sobre ela, prestes a descer e cobri-la suavemente. Parece que o sucesso do recital, em qualquer das inúmeras cidades em que vem se apresentando, em vez de animá-la, leva-a a pensar, com o peso de um coração ressentido, no que teria sido a sua carreira se tivessem sido outros os acontecimentos de sua vida. Diva não chega a ser fatalista, mas acha que não é por acaso que os fatos da vida se articulam uns com os outros. Crê em alguma misteriosa ordem que os induz a seguidos desfechos adversos.
A luz que irrompe pela janela é a das dez da manhã e espalha-se sobre a vasta e escampada planície com o mesmo ímpeto que o sol do meio-dia explode em outras regiões. Só pode ser enfrentada com olhos protegidos, semicerrados, com a mão em aba na testa. O calor, que vem com a luz, entorpece qualquer ameaça de vento. A paisagem tremula pelo efeito da cortina de mormaço que se ergue da areia tórrida. Esparsos arbustos, esquálidos e retorcidos, cobertos por grossa camada de poeira, lembram rígidas esculturas de pedra, sem nenhuma brisa que balance as folhas que lhes restam. O ar deslocado pela passagem do veículo ergue uma névoa de pó rente ao asfalto - só assim, lambidas pelo vento fortuito, as folhas mexem-se, tímidas.
Pela porta entreaberta do armário vê-se - dependurados, ordenados e cobertos de plástico - uma fieira de figurinos de cores, tecidos, modelos e épocas as mais diversas. Roupagem real para gente imaginária, irrealidade de uma moda pertencente a mundos extintos ou sonhados, habitados por deuses, rainhas, princesas, guerreiras, heroínas, cortesãs e operárias que as confundem com fantasias carnavalescas ou com um museu de história do traje.
Na moldura do amplo espelho da penteadeira estão fixados cartões, bilhetes, flores secas, fotografias amareladas. Algumas de uma criança com uma mulher, aparentemente sua mãe; da mesma criança com um casal idoso que lembra avós. Outras, em tamanho maior, de uma adolescente de braço dado com um homem sorridente e de cabelos brancos. Esse mesmo homem, já mais velho, com uma moça, certamente ela, mais jovem, tendo ao fundo o teatro La Scala de Milão. Num porta-retrato sobre o tampo da penteadeira, uma foto com a mesma moça ao lado de ninguém menos que Maria Callas. Sobre o mesmo tampo, uma profusão de lápis, bastões, pastas, potes, vidros, caixas, esponjas, escovas, pentes etc - e uma aparatosa caixa de música, encimada por um casal de bailarinos.
Três leves batidas na porta da cabine e ela indaga, sem mexer nada além dos lábios:
- Quem é?
- Orlanda - responde uma voz feminina.
- Entra - autoriza.
A porta se abre. Orlanda assoma trazendo uma pequena bacia de alumínio com água quente. Fecha a porta atrás de si e pega a toalha de rosto, pendurada na maçaneta do armário. Protege a cama com uma parte da toalha, sobre a qual põe a bacia, deixando solta a parte maior. Conduz uma das mãos dela - que continua distante, ouvidos na música, olhos na janela - e mergulha as pontas dos dedos na água quente.
- A senhora está cansada de dar pena. E não é pra menos. Nessa última cidade - como é mesmo o nome? Olhos d'Água? - parecia que a apresentação não ia acabar nunca, de tanto que pediram bis.
Ei-la! Por trás da máscara de cremes, óculos escuros e bobes na cabeça, a soprano Diva Bustamante deixa entrever, numa reação tipicamente sua, vestígios de sua alma estremada. O desdém, tão meticulosamente estudado e ensaiado, acabou incorporado à genérica indiferença para com fatos e emoções banais. Nesse momento, como acontece sempre que ouve Callas, está transportada a um elevado estado de comoção. Diante da referência à apoteose da noite anterior, ela assente com lentos movimentos de cabeça. Diva Bustamante, sempre a mesma! Aparenta indiferença, esboçando às vezes um sorriso resignado, até mesmo uma leve sombra de tristeza no rosto, se ouve a menção a algum êxito seu. Como se nem mesmo a sucessão de bis seja o bastante; como se nada esteja à altura do seu talento, como se detestasse os aplausos porque nunca são o suficiente, como se nenhuma apoteose pudesse compensar o calvário de injustiças de que se sente vítima.
Diva assente com lentos movimentos de cabeça e murmura num tom melodramático - talvez contagiada pela música.
- O cansaço chegou à minha alma.
Orlanda tira um alicate de cutícula de uma frasqueira. Limpa-o com uma toalha.
- A senhora bem que está merecendo umas férias. Por que não pensa nisso?
Diva gira o pescoço na direção dela. Esmagados, os bobes criam desconforto para a cabeça e os cremes do rosto sujam a almofada. Ela volta à posição anterior.
- Já cansei de explicar, Orlanda, e você não entende! - reage Diva com impaciência, - Se eu parar por férias, por doença, ou pelo motivo que for, como é que eu vou ganhar dinheiro? Do que vamos viver?
Orlanda troca a mão mergulhada na bacia. Enxuga-a e tira a cutícula dos dedos de Diva, cujas pontas se estendem em longas unhas vermelhas, descascadas aqui e ali. Esmera-se para que o alicate ponteagudo sob o balanço do veículo não fira a pele fina da mão.
- Deus é testemunha de que não desejo uma ruindade dessa pra senhora, nem sou agourenta, dona Diva. A senhora sabe. Mas vai chegar uma hora que o cansaço vai ser tanto, que o corpo não vai agüentar se mexer. Nem pra soprar a voz pra fora.
- Só vou pensar nessa hora quando ela chegar - diz Diva, sem se voltar para Orlanda - E você sabe pra onde eu vou.
- Nem me fala, dona Diva! Nem me fala! A senhora também já sabe o que acho daquilo. É o lugar mais triste que eu já vi na vida! É mais triste do que cadeia, do que hospício, do que hospital, cemitério, manhã chuvosa ou pôr-do-sol! - persigna-se e fecha os olhos por um instante, como se fizesse um inaudível juramento. Retoma com mais convicção:
- Sabe quando é que a senhora vai pro Asilo dos Artistas? Nunca, dona Diva! Juro por tudo que há de mais sagrado. Enquanto Deus me der vida, a senhora não vive naquele asilo.
Apesar da generosidade enfática de Orlanda, Diva distancia-se da conversa. Seus olhos voltam-se para a janela, onde a paisagem monótona se repete, e os ouvidos para a voz de Callas, que ecoa por toda a cabine. Quem, como Orlanda, conhece Diva há mais tempo, sabe que esta é a hora de se calar e concentrar no trabalho.
Na penumbra da cabine - calça, camisa, sapatos espalhados pelo chão - os olhos azuis de Ralph surgem sob as pálpebras, que acabam de se abrir, ao som abafado da voz de Callas. Apenas de cuecas, permanece quieto sobre a cama, as pupilas se movendo no seu raio de visão, tentando adivinhar onde está - dúvida rotineira para quem dorme sempre bêbado e na primeira cama que o acolha. Mais do que os abafados trinados de Callas, é o movimento do conhaque no interior da garrafa deitada no chão e o familiar ruído do motor do veículo que lhe identificam a cama e a cabine cotidianas. Tateando, encontra os óculos escuros quase debaixo da cama. Com os olhos protegidos, abaixa a cabeça enquanto abre uma fresta na persiana da janela. A luz devassa o ambiente. Ele ergue a cabeça aos poucos, tentando aclimatar a retina. Lá fora, a claridade insuportável do descampado tropical.
Espreguiçando-se, Ralph sai da cama. Veste seu desbotado roupão azul, que solta linhas desfiadas na barra e nas mangas. Amarra-o pela cintura, ao mesmo tempo que boceja ruidosamente. Olha-se no espelho atrás da porta. Os lábios se contraem de desapontamento. Enfia as mãos no que ainda lhe resta de cabelo - cuja cor de fogo original vem cedendo lugar ao branqueado - assentando-o, mal e mal, para trás. Passa a mão nos fios ásperos da barba crescida, põe pra fora a língua esbranquiçada por um muco gosmento que forma uma espécie de crosta acumulada em incontáveis bebedeiras. Solta o bafo sobre o espelho - que embaça no círculo da boca - e aspira com uma careta o hálito que se reflete. Os vestígios da decadência não o impressionam, mas dão ao semblante um ar de amarga resignação. Põe a toalha à volta do pescoço e sai para o corredor. A voz de Maria Callas reverbera divisórias. Através das janelas, o sol do meio-dia despeja sua luz, que ofusca, tonteia, até cega quem a enfrenta a olho nu. Zonzo, Ralph entra rapidamente no banheiro.
Os dedos das mãos esticados e separados ao máximo, e os dos pés apartados por chumaços de algodão, Diva permanece imobilizada sobre a cama, as unhas esmaltadas de vermelho. Orlanda repõe na frasqueira os instrumentos de manicure e pedicure. A essa altura, a ópera está na cena em que Germont, pai do jovem Alfredo, procura a prostituta Violeta. O casal vive uma paixão arrebatadora e Germont quer que ela se afaste do seu filho. Callas canta: "Cosi alla misera". Diva salta da cama, chumaços de algodão voam pela cabine; esmalte de pés e mãos suja de vermelho roupas, lençóis e toalhas. Diva aumenta o volume do gravador:
- Ouça, Orlanda! Ouça o que Maria faz nessa ária - sugere Diva, ouvidos atentos, imobilizada, enquanto Callas canta "Ch'è un di caduta" - Eu canto isso há séculos e não consigo tanta emoção!
Diva volta a ouvir Callas: "Di più risorgere speranza è muta!"
- Ouviu, Orlanda, a volata que ela fez aqui? É Deus, Orlanda! Ela não foi apenas uma cantora. Deus falava pela voz de Maria.
Diva ajoelha-se aos pés da cama. Esquecida dos dedos esmaltados e dos bobes, livra-se dos óculos e mergulha o rosto emplastrado na cama, arrepiada e trêmula com a emoção que Callas lhe transmite:
" Ah! Ditte alla gioveni sí bella e pura
Ch'avvi unna vittima della sventura,
Cui resta un único
Raggio di bene,
Che a lei il sacrifica e che morrà".
Enquanto a música prossegue, Diva ergue a cabeça. Lágrimas escorrem rosto abaixo. Tentando enxugá-las, misturam-se aos cremes, cobrindo seu rosto com uma máscara branca e pastosa.
- Não é essa ária, não é a voz, nem é a técnica! Ela sempre disse que apenas uma bela voz, solta no espaço, não era suficiente para uma verdadeira cantora lírica. O importante, ela dizia, é oferecer essa voz à verdade de cada personagem que se interpreta. É daí, da sua voz à serviço de Violeta, que vem essa emoção, Orlanda! Maria canta a tristeza dessa criatura, que se vê obrigada a renunciar ao homem por quem está perdidamente apaixonada. Quem, cantando, poderia me fazer sentir o que sente Violeta? Olha como fico arrepiada! Só Maria cantou essa ária com tamanha emoção.
Diva silencia e ouve. As lágrimas continuam escorrendo, agora lentamente, sobre a máscara cremosa.
- Deus não me deu esse talento. Que bom que tenha dado a Maria. Ela merecia.
Os olhos de Orlanda ficam úmidos. Menos pela música do que pela tristeza profunda de Diva:
- Maria não podia morrer, Orlanda. Foi maldade de Deus tirar do mundo a perfeição de sua arte.
Barbeado e de banho tomado, Ralph sai do banheiro metido em seu roupão azul-desmaiado. O aspecto geral de limpeza dá-lhe um surpreendente ar saudável e bem disposto. Os cabelos penteador pra trás ressaltam as fundas entradas e os vazios da textura, assim como o vago tom branco-arruivado da cor. Em vez de entrar na sua cabine, quase em frente ao banheiro, avança pelo curto corredor que finda numa porta, onde se lê numa placa afixada: "Não entre sem bater". Ralph bate três suaves vezes. Em resposta, ouve-se a voz de Diva, abafada pelo tratamento acústico da cabine, à base do revestimento das divisórias com cortiça e feltro.
- Entre, Ralph.
Ele ajusta, mais uma vez, o roupão no corpo e entra. A maneira de cumprimentar reproduz a sua taciturna sobriedade diurna.
- Bom-dia.
As mulheres retribuem com discrição. Diva esconde o rosto e limita-se a um murmúrio. Ralph percebe o clima denso e sente-se na obrigação de explicar o óbvio.
- Vou só passar. Preciso falar com o Zé Bolero.
Ele cruza a cabine, que ocupa toda a largura do veículo - abre a porta do lado oposto, sai e fecha-a atrás de si.
Diva levanta-se e olha através da janela. As lágrimas secaram. Ela faz um gesto vago na direção do gravador.
- Desliga, Orlanda.
Orlanda obedece. O silêncio permite que se ouça o motor do veículo. Diva está quieta e desolada.
- Desde que Maria morreu, não consigo mais ouvir suas gravações até o fim. Começo alegre, mas vou me deprimindo.
- Eu sei. Mas está sempre ouvindo e sofrendo. Por que não a deixa de lado por uns tempos?
Diva encara Orlanda com incredulidade.
- Está louca? Afastar de Maria? Abandonar a memória da uma amiga? Nunca!
Dando a conversa por encerrada, Diva volta à contemplação distante da paisagem. Orlanda, porém, insiste:
- Só por uns tempos. Poderia lhe fazer bem.
- Além de eu não agüentar ficar sem ouvi-la, seria uma traição - refuta Diva, sem se virar.
Orlanda não esconde seu espanto.
- Traição? Dona Diva, a Maria Callas morreu há quase um ano!
Diva vira-se e olha Orlanda dentro dos olhos. Um olhar com energia bastante para desintegrá-la, e concentrado em poucas palavras ditas em voz baixa:
- Eu sei. Conto cada dia que passa.
A resposta seca de Diva e seu olhar demolidor silenciam Orlanda, que trata de voltar à arrumação da frasqueira. O olhar absorto de Diva fixa-se num ponto indefinido na amplidão da paisagem. Depois de um silêncio, e indiferente se está sendo ouvida, murmura:
- Não suportaria ficar um mês sem ouvi-la. Nem uma semana.
Na dianteira do veículo, acima do pequeno pára-brisa, há um letreiro: "Cabine de Comando". Ralph está sentado no banco à direita de Zé Bolero que, de óculos ray-ban, dirige e, ao mesmo tempo, repete o nome da próxima cidade, com uma ponta de impaciência:
- É Limoeiro, seu Ralph!
- Não é Limoeiro, Zé Bolero! Eu conheço Limoeiro. Já estivemos lá - insiste Ralph, apertando os olhos para se proteger da claridade.
- Não, seu Ralph. A gente nunca foi a Limoeiro.
- Fomos, sim. Ora, Zé Bolero, eu tenho certeza.
- O álcool está derretendo seus miolos, seu Ralph.
- E você, sem álcool, não se lembra de nada. Eu digo que nós fomos a Limoeiro depois da audição, eu e você fomos pra zona. Você achou que era uma zona de luxo - tinha até piano! - e foi embora logo. Eu toquei até tarde, tomei uma garrafa de conhaque e dormi com uma das putas.
- Aquela cidade é Limeira, seu Ralph; não é Limoeiro! Agora é que a gente está indo pra Limoeiro. Entendeu a diferença? Limeira é pé de lima; Limoeiro é pé de limão. Não disse? O álcool vai queimar seus miolos.
- Não enche o saco.
- E a cidade de ontem se chama Olhos d'Água.
- Não me interessa. Não vi cidade nenhuma. Não saí do bar. Que, aliás, fechou cedo. Tive que acabar de beber aqui porque a cidade morreu de repente. Quase acordei você pra conversar.
Zé Bolero persigna-se. Ficam visíveis as mãos grossas, impregnadas de graxa nos poros e sob as unhas. No dedo mindinho da mão esquerda, um grosso anel dourado encimado por uma pedra negra retangular.
- Deus é pai. Me livrou de mais essa.
O veículo avança na velocidade máxima de oitenta quilômetros por hora. Nas raras curvas da estrada, quando Zé Bolero tem que girar o grande e pesado volante, fica mais nítida a sua musculatura, em especial o bíceps, que cresce com o esforço, inflando o corpo da sereia tatuada. Ralph levanta-se e verifica o mapa do Brasil, afixado na porta que dá para a cabine de Diva, abaixo do qual está outra placa com a mesma advertência: "Não entre sem bater". O longo trajeto já percorrido, marcado em vermelho no mapa, praticamente atravessou o país de leste a oeste, de sul a sudeste. A última etapa aponta para o norte-nordeste. Com o indicador, Ralph parte de Olhos d'Água, segue a estrada no mapa até chegar a Limoeiro:
- Como é longe, essa tal de Limoeiro! E não há nem uma cidade no caminho.
- Merda!
- Acordou nervoso, seu Ralph.
Ralph não responde. Vai até a cadeira e senta-se.
- Não é nervoso, é entediado - ele olha para as laterais da estrada, os olhos apertados por trás dos óculos escuros, para enfrentar a claridade. - Cansei de tanta viagem. Não estou agüentando mais.
Vira-se pra Zé Bolero, avaliando-o por instantes:
- E você?
- Eu gosto de viajar. Mas essas estiradas de muitas horas por dia, durante dias seguidos me arrebentam.
Ralph continua observando-o, avaliando-o trabalhar.
- Quantas horas está dirigindo?
Zé Bolero olha o relógio afixado junto ao odômetro - instrumentos visivelmente não-originais, adicionados ao primitivo painel que, afora um impreciso velocímetro e um tosco indicador de gasolina, exibe mais a grosseira robustez do aço forjado do que instrumentos precisos.
- São dez e dezoito. Comecei às cinco e dez da manhã, vocês ainda estavam dormindo. Já passam de cinco horas no volante.
- E com esse calor! Meio-dia você vai poder fritar ovo em cima do capô.
- Agora já dá pra fritar.
- Merda, acordei cedo! Podia ter dormido mais.
- O senhor dorme demais, seu Ralph. Perde a vida na cama.
- Na cama é que eu ganho a vida. Se não dormir, vou fazer o quê? Não tenho mais nem o que ler. Essas cidades de merda não têm nem uma livraria. Se não durmo, tenho que ler outra vez o que já li. Há coisa mais estúpida do que reler história policial?
Ao retornar para a cama, Diva é atraída por um buquê de rosas vermelhas envolto em celofane. Ela arranca o cartão.
- Recebi na última cidade - explica Orlanda, tentando mudar o clima. - É Olhos d'Água mesmo o nome?
Diva não responde. Orlanda pega sua mão e avalia o esmalte. As unhas estão parte vermelha e parte na cor natural. Na roupa, lençóis e almofadas, o esmalte vermelho sugere sangue. No cartão está escrito em garranchos quase infantis: "Necessito um particular depois do sxou com a grande artista que é vossa senhoria. As rosas é a minha homenage e prova de stima e considerassão. Vou aguardar-vos no restaurante do hotel. Me chamam de João Trompa, mas o meu nome de verdade é João Luiz Barbalho fazendeiro e pecuarista". E, após um espaço, lê-se: "Assinado, seu admirador João Luiz Barbalho ou João Trompa".
Enquanto Diva lê, Orlanda, que retirou da frasqueira os apetrechos recém-guardados, explica-se:
- O rapaz que trouxe me pediu que entregasse pra senhora antes do espetáculo, mas achei melhor trazer pra cá.
Batem à porta que dá pra cabine de comando. Diva responde:
- Pode passar.
A porta se abre. As mulheres silenciam. Ralph cruza a cabine, enquanto Diva rasga o cartão e joga no lixo. Ele sai pela outra porta, fechando-a atrás de si. Orlanda repinta o esmalte nas unhas de Diva.
Ralph avança pelo corredor. Entra na sua cabine e pega a garrafa de conhaque. Com ela na mão, alcança os fundos do veículo. Essa área, assim como a cabine de Diva, também ocupa toda a largura do veículo. De um lado fica a cozinha com fogão, pia e geladeira. Ralph pega o copo. Do outro, há duas cadeiras de vime, mesinha e piano. Ele serve-se de conhaque. Toma um longo trago, saboreando o calor da bebida, que desce ao estômago. Põe o copo sobre o piano e começa a dedilhar o teclado com apenas uma mão. Atraído, senta-se. Toca ao acaso até que, espontaneamente, vão surgindo os primeiros acordes de "Hapiness is a Thing Called Joe", uma peça de jazz dos anos 40. Ralph toma mais um trago, fecha os olhos e se entrega à música, enchendo o ambiente com a sua sonoridade. Súbito, como se não resistisse à emoção, levanta-se do piano, pega o copo de conhaque e afasta-se para junto da porta dos fundos. Enquanto olha para fora através do vidro, traga longos goles da bebida. Sua agitação interior é visível. Ele vê a estrada se alongar e afastar-se.
Na sua cabine, Diva tira, uma a uma, as rosas do buquê e, pela janela, solta-as ao vento veloz. Olhando para trás, Ralph vê que, a espaços regulares da estrada deserta, uma rosa vermelha contrasta com a faixa negra de asfalto que corta em duas a planície descampada.
Alcione Araújo é escritor e autor de O Evangelho Segundo São Lucas, entre outros.
A Prima-Dona faz parte de livro homônimo a ser lançado brevemente