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Entrevista
Sebastião Salgado
Desnecessário é narrar as imagens flagradas pelo olhar de Sebastião Salgado. Elas estão à mostra, gratuitamente, na exposição Êxodos, no Sesc Pompéia, até 4 de junho. Nascido há 55 anos em Aimorés, Minas Gerais, Sebastião Salgado é economista de formação, mas escolheu, mesmo já estabelecido, largar a carreira, para dar luz ao ofício que o consagrou - temperar os instantes de realidade flagrados com ingredientes próprios.
Foram os anos que passou imerso nas tensões humanas mais candentes vividas pelos refugiados que moldaram suas lentes e formam a aura poética que cinzela seu trabalho. Nessa entrevista exclusiva à Revista E, o fotógrafo detalha o cotidiano dos relegados pela globalizacão, fala sobre sua técnica fotográfica particular e mostra os bastidores do seu trabalho.
Como é passar por tantos países, tantas fronteiras, tantas situações calamitosas? Qual é a rotina do fotógrafo num campo de refugiados?
Começa na preparação do projeto. Tive de aproximar várias pessoas, entidades e empresas que pudessem me ajudar na realização. Havia uma equipe sediada em Paris para me auxiliar na questão dos vistos, na divulgação e preparação do trabalho. A principal fonte de renda veio das revistas e jornais para os quais eu trabalho com regularidade. Muitas vezes para entrar num país é preciso um visto, o que nem sempre é fácil conseguir. Às vezes, é necessário manter relações com organizações e instituições que possam levar-me até o coração do problema, sejam movimentos de liberação, guerrilhas etc. Freqüentemente, a única forma de entrar em um país é por intermédio de organismos de ação humanitária, como a ONU. Por exemplo: para fotografar as prisões de Hong Kong, prisões de refugiados e crianças, fui levado pelo alto comissariado da ONU até os refugiados. Eu trabalho escudado em todo um sistema. Além das publicações, as organizações também contribuíram para a realização e difusão desse trabalho por meio das mostras realizadas em vários países, motivando doadores e denunciando situações.
Como as pessoas retratadas vêem o seu trabalho? O acesso aos refugiados ou mesmo guerrilheiros é mais fácil ou ainda é preciso explicar o seu trabalho?
A aproximação das pessoas leva tempo. A principal variável na realização de um trabalho como esse é o tempo. Não é possível chegar num local, bater as fotos necessárias e depois simplesmente ir embora. Determinadas reportagens demoraram até quatro meses para serem feitas. Há todo um trabalho para desenvolver um relacionamento. Tenho uma preocupação de que as pessoas compreendam a minha missão, o motivo pelo qual eu estou lá. A fórmula para se integrar com as pessoas é chegar até elas sozinho. Aí as coisas caminham. Sinceramente, não tive dificuldades em nenhuma das comunidades com as quais trabalhei.
O senhor consegue dentro de um tema comum - a miséria da condição dos refugiados em mais de quarenta países - ressaltar a singularidade de cada região fotografada?
Um trabalho como esse não busca conseguir uma foto de arte nem provocar compaixão. É preciso ter uma razão para estar ali, uma motivação e uma justificativa para tal. É preciso saber que as fotos serão usadas para um determinado objetivo, que elas serão veiculadas por jornais e organizações. Isso exige uma identificação ideológica muito grande. A partir daí, já existe uma justificativa pessoal para estar nesses lugares. Aliás, se não houver uma identificação com a causa, não se consegue fotografá-la. São situações difíceis para o fotógrafo, inclusive fisicamente. Isso tudo quer dizer que o trabalho se transforma em sua vida. Não é possível criar uma forma de rotina porque nenhuma dessas situações é igual a outra. Nenhum povo é igual a outro. Nenhum ser humano é igual a outro. Você desenvolve um relacionamento diferente com cada pessoa que fotografa, com cada situação que registra.
É possível separar o observador Sebastião Salgado do profissional quando se está imerso em uma situação de extrema agudeza?
De forma alguma. A fotografia é profundamente subjetiva. A sua fotógrafa [referindo-se à profissional da Revista E, no momento da entrevista], por exemplo, quando vem me fotografar, sabe o que está fazendo, sabe de que modo ela me vê e o ponto de vista que tem de mim. Ou ela faz do jeito que tem na cabeça. Na realidade, além de se ter a impressão da situação ou do fenômeno que se fotografa, é preciso fotografar com o seu traçado, com a sua formação. Eu me refiro à sua formação estética - luz, enquadramento etc - e isso é intrínseco à pessoa. Porém, no momento em que aperta o botão, necessariamente você registra sua forma. O fotógrafo vai para uma foto com tudo o que ele viveu na vida. Eu não digo que fotografe sua ideologia. Talvez fotografe o caráter das suas idéias. A partir daí, toda a integração que você fizer deixa de ser objetiva. Para fotografar, é impossível ficar completamente alheio emocionalmente ao que se fotografa. A ligação é total, tanto no instante da foto como na experiência que se tira daquele momento e que se passa a carregar contigo. Objetividade na fotografia não existe. Quem diz o contrário está mentindo. É claro que a fotografia está inteiramente sujeita ao meu sentimento em relação às pessoas que fotografo.
Dentro desse contexto, existe algum momento no qual o senhor não se sentiu à vontade para tirar uma foto?
Existe o instante fotográfico. Existem coisas que você não consegue fotografar. Em alguns momentos, é preciso parar, colocar a máquina num canto e chorar. São momentos que o afetam da maneira mais profunda possível. Assim como outras vezes o que te move é uma profunda revolta. É muito difícil julgar certos fatos. Depende das suas relações, das suas reações, do sentimento, todas essas coisas fazem diferença no momento em que se realiza uma fotografia. Nesses momentos, há fotos que você faz e outras que não.
A grosso modo, fotografia é luz, película e química. Qual o elemento poético que singulariza sua fotografia?
Está em sua vida. A luz de um fotógrafo depende se usa um flash, ou se usa uma iluminação natural, por exemplo. Mas o que vale realmente é o seu conceito de luz, o que você carrega consigo. Numa exposição de 350 fotos, por exemplo, devo ter usado uma média de 1/350 de segundo para realizar cada uma delas. Todas elas juntas somam um segundo de fotografia. Na prática instintiva de um fotógrafo, ele é capaz de contar sua história. A minha luz somente eu consigo obter, porque ela vem comigo há anos. Eu criei um universo visual idílico, romântico, dramático na minha maneira de fotografar que é só meu. A fotografia é uma linguagem como a literatura. Igual ao Saramago só ele mesmo pode escrever. É uma linguagem extremamente pessoal e é difícil explicar o porquê. Mas de um coisa que tenho absoluta certeza: o que faço eu trago comigo. As pessoas gostem ou não, não posso fazer nada. Eu não poderia oferecer outra coisa senão o que está aí.
Numa época da sua vida, durante a ditadura militar no Brasil, o senhor foi impedido de voltar ao país. Como essa experiência influenciou-o para retratar os refugiados?
Eu conheço a história que retrato no meu trabalho. É claro que não vivi de maneira dramática como as pessoas que eu fotografei. Eu nasci na roça, com cinco anos mudei para Aimorés, uma cidadezinha pequena em Minas. Aos quinze, fui estudar em Vitória/ES. Com 23 anos, mudei-me para São Paulo. Daqui tive de ir às pressas para a França. Hoje, trinta anos depois, ainda sou um estrangeiro vivendo num país estrangeiro. Ou seja, na hora de fazer as fotos desta exposição, tive uma identificação imensa e tenho, igualmente, muita simpatia pelas pessoas que fotografei.
Coincidentemente ou não, sua exposição veio num momento de euforia em virtude da comemoração dos quinhentos anos do descobrimento. Sua mostra faz um contrapeso a esse momento de festa oficial?
É inteiramente por acaso que a exposição tenha chegado aqui agora, momento que marca os quinhentos anos de um choque cultural que opôs uma cultura européia a uma indígena. Apesar disso, acho uma bela oportunidade de ver essas fotografias no sentido contrário aos rumos da comemoração. Nesse momento, estamos celebrando um choque. É a penetração de uma cultura branca européia. Estamos comemorando todos os bens que ela trouxe em termos de arquitetura, posse da terra, possivelmente em termos de informação e de tudo o que o Brasil é hoje. Na realidade, trata-se de uma forma de comemorar o que foi imposto. Esta exposição que está aqui no Brasil, hoje, seria uma ótima forma de os brasileiros se colocarem de dentro para fora. Seria ótimo as pessoas se confrontarem com essas situações. Seria ótimo ver os movimentos indígenas em outros países. É uma grande oportunidade de se medir com o resto do planeta.
O senhor disse que sua fotografia vem de muitas experiências particulares e ressaltou muito a questão do instinto. Na atividade fotográfica de reportagem o que é mais importante: o instinto ou a técnica?
O instinto. A técnica na fotografia é uma variável até que se transforme numa constante. Dominá-la é difícil. Mas há um patamar em que a técnica não é mais nada além de seus olhos e suas mãos. Então, a técnica não é o importante, e sim o instinto. Eu fotografo muito rápido - levo a câmera engatilhada e no momento mais propício bato a foto com muita velocidade para flagrar aquele momento específico, por isso privilegio totalmente o instinto. É um instinto de caçador. Mesmo o fotojornalista tem de deixar seu instinto fluir, senão não consegue fotografar bem.
Como é o seu trabalho com fotos não tão tensas e drásticas? Como fotografaria um momento de êxtase em vez de uma tragédia: uma partida de futebol, por exemplo?
Eu não poderia fotografar uma partida de futebol, porque adoro futebol. De tão nervoso não conseguirira me centrar no jogo e na torcida, ficaria completamente perdido.
Qual é o seu time?
Fluminense. Quando meu time joga, a emoção é muito grande. Eu não conseguiria levar uma câmera ao estádio. Há coisas que não faço. Mas, por exemplo, faço fotografias de publicidade. Ninguém imagina, mas eu sou obrigado para pagar a equipe e arcar com as outras despesas. Fiz recentemente um com o Ocimar Versolato, que deve sair em breve. Não sobre moda, mas sobre ele, uma pessoa que eu adoro. Foi um prazer imenso.
Por mais que o senhor não aceite, a pessoas insistem em alçar seu trabalho ao patamar de arte. Como o senhor acha que, no futuro, as pessoas verão suas fotos?
Não sei. Acho que o que pode ser aceito como um trabalho artístico é o que a história aceita como tal. Houve uma exposição na França de objetos africanos lindíssimos de uso cotidiano, sem nenhuma pretensão original de que fossem considerados artísticos. Eram coisas que ficaram como referência da vida deles e acabaram se transformando em objetos artísticos. Eu acho que se certas fotografias, num momento qualquer, traduziram o comportamento humano e podem ser guardadas como referência, podem se transformar em arte. Para mim, um trabalho artístico é definido pelo seu criador, seja ele quem for. Ele apresenta ou não sua obra como um objeto artístico. Eu não posso apresentar nada do que fiz como arte. Existem pessoas que compram minhas fotografias para pendurar na parede, eu vendo e cobro delas porque preciso do dinheiro para pagar minhas contas sem essa preocupação conceitual. Numa entrevista recente na França, discutiu-se essa questão. O entrevistador afirmou que minhas fotos eram artísticas porque estavam cobrando a entrada na exposição no Museu Nacional da Fotografia. Porém, a mesma exposição tem entrada gratuita no Sesc Pompéia. Qual seria o critério? Não sei.
Que atividades complementam o seu trabalho com as fotos?
Há outros trabalhos além da exposição. Dois livros publicados pela Companhia das Letras lançados em sete países, junto com a exposição. Existem mil kits de exposiçãos de pôsteres, que funcionam como um resumo da mostra. Além disso, há trinta pequenos filmes de três minutos cada, que já estão sendo divulgados na França e serão exibidos também no Brasil a partir de junho pela GNT, além de Espanha, Portugal, Itália, Alemanha e países nórdicos. E mais um longa-metragem que está sendo produzido pelo ator e diretor americano Tim Robbins, que deve sair em setembro. Por fim, há oito exposições como a do Sesc Pompéia que estão circulando no mundo todo. É toda uma rede de informação sobre o meu trabalho que eu espero que sirva para provocar uma discussão.
Era essa a intenção no livro Terra?
Um pouco também. Mas desta vez isso ocorre de maneira muito mais ampla. O Terra também foi feito um pouco dessa forma. Houve ampla divulgação daquele trabalho, mas agora a situação é muito mais urgente. É necessária uma discussão maior, porque essas fotografias retratam o problema da pobreza e da distribuição das riquezas. Coisas que precisam ser discutidas. São pessoas que tiveram uma condição de vida e estabilidade e que perderam isso por guerras, por razões econômicas, por pressão sobre a propriedade da terra, ou seja, ocasionando a catástrofe ecológica que estamos vivendo.