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Que festa é esta?

Lidia Tolaba
A crise de identidade, decorrente de um mundo globalizado neste fim de milênio, traz com mais força a busca de uma alternativa para superá-la. Nesse sentido, a festa popular cumpre um papel muito importante, pois evidencia as diferenças e a diversidade de tais identidades sociais, convidando os seres humanos a se unir para resgatar a memória, suas tradições e sua história como mensagem, cujo significado sintetiza a preservação dos festejos como símbolo de vida social.
As festas populares, como parte da cultura popular, apresentam um caráter de resistência à dominação cultural. Por outro lado, estão nutridas de diferentes sensibilidades e temas unificados em formas expressivas pela capacidade humana, gerando assim uma nova arte viva e espontânea. É a interpretação de um sentir coletivo, que resume o conhecimento da sociedade que se reflete nele, conservando assim um caráter tão inconfundível como o próprio idioma.
Não podemos negar que as festas populares sejam produtos também de uma reelaboração da linguagem européia que se soma ao nativo, mas possuem diferenciações locais bem claras. Assim, Brasil, México, Peru, Argentina e outros países do nosso continente, são exemplo disso, pois precisamente são provenientes dos diferentes ingredientes étnicos e culturais que participaram nessa nova busca formal.
No Brasil observa-se uma maior confluência, em comparação com resto da América, de distintas etnias e culturas: o português, o africano, o ameríndio; tendo como resultado um sincretismo formal, ou seja, a soma de tradições locais e importadas que geraram expressões novas e desconhecidas até então.
Cecília Meirelles sintetiza da seguinte forma: "Para nos encontrar vamos a manifestações complexas, porque somos complexos, e penetramos em labirintos confusos onde palpitam todas essas coisas, por vezes incoerentes, de que estamos feitos. Nada é mais onírico e difícil de explicar. O que somos como povo está em síntese no Carnaval e na Semana Santa".
Se por um lado parece-nos que a cultura de massa modifica e descaracteriza a festa popular, tornando- a muitas vezes cópia ridícula daquilo que foram, quando não imitações de programas de tevê, por outro ela permanece interrompendo nossa vida cotidiana marcada pelo ritual. De norte a sul do Brasil, sejam cíclicas, religiosas ou cívicas, elas nos envolvem num espírito de sacralização do simbólico coletivo. A elas também passamos a acrescentar outras mais modernas, decorrentes de novas etnias e tendências culturais apropriadas pelo povo: os espetáculos esportivos, os grandes shows, o baile do clube, a celebração de um produto e seu produtor e até as manifestações políticas.
Para o homem contemporâneo elas são necessárias tanto quanto o trabalho, e isto se demonstra na sobrevivência dos folguedos representados por cortejos , danças e cantorias em ruas e praças públicas, que reúnem pessoas num ato que, além de ser desejo de ordem social, é também possibilidade de transgressão. Criamos e recriamos a festa constantemente por uma necessidade de afirmação coletiva.
No Sesc, onde a integração social e a participação da comunidade se fazem presentes no dia-a-dia, a exploração da linguagem da "festa popular" traz a vivência poética de nossa cultura nas mais diversas formas: movimento, som, imagem, palavra, cheiro, sabor e tantas outras formas não-verbais que convivem e se interagem, num festival composto de diversas linguagens que põe em prática a tão desejada interdisciplinaridade.
Nesse sentido a atividade que mais tem repercussão em nossa instituição é a festa junina, que há vários anos vem reunindo uma multidão de pessoas e que, especialmente no Sesc Pompéia, adotou uma forma particular ao referir-se às raízes do universo caipira. Assim, a partir de 1989, fomos palco das expressões de algumas comunidades do interior de São Paulo. São Luiz de Paraitinga, Iguape, Santana de Parnaíba, São José dos Campos, São João de Boa Vista e Leme foram os arraiais que marcaram presença, proporcionando ao público um maior contato com as tradições do povo paulistano.
Em 1996, com a intenção de mostrar um panorama brasileiro que abordasse todos os aspectos tradicionais das festas juninas que caracterizam as diferentes regiões, foi realizado o projeto São João do Brasil - A Cultura Popular em Festa, e em 1999, último ano do século, homenageamos nossa raiz européia, com o projeto Vira Brasil-Vira Portugal mostrando o elo de ligação existente entre diferentes culturas, tanto do passado como do presente.
Seja qual for o tema, a festa é pretexto para se reunir e celebrar um momento de ócio ativo e solidaridade coletiva comum a todos os povos do mundo.
Talvez por não ser nascida no Brasil, eu possa ver tais expressões da cultura popular como um momento de síntese cultural em que todos somos atores, e não meros espectadores. Após quinze anos de convivência, ainda me surpreendo com a riqueza e a criatividade de um povo multicultural, que sabe ser alegre e festejar a si mesmo.
Lidia Tolaba é arte-educadora e coordenadora de programação do Sesc Pompéia