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Globalização musical

World music, world beat, música folclórica, regional, pop, rock, MPB. Os nomes e estilos são muitos, mas será que os rótulos são válidos?

O saudoso músico Chico Science abriu os olhos do Brasil para o maracatu. Misturado com elementos da música eletrônica, esse ritmo conquistou multidões e ganhou o respeito da crítica. Carlinhos Brown tornou famosa a sonoridade das ladeiras da Bahia, e o músico Otto levou cantigas regionais ao universo das raves (festas monstro movidas à música techno que invadiram o mundo). Isso sem contar as incursões de Lenine pela world music e artistas como Gilberto Gil e Milton Nascimento ganhando prêmios internacionais como o Grammy, Oscar da indústria fonográfica norte-americana. Mas surge um problema: até que ponto essa mistura de estilos musicais ou a abertura de grandes mercados para a chamada world music são cem por cento positivas? Essa globalização tão celebrada veio para ressaltar as diferenças ou para justificar uma forma nova, e mais sutil, de imperialismo cultural?

O músico e professor Carlos Stasi, que pesquisou o uso do reco-reco em diferentes partes do mundo, acredita que ainda vaga o perigo de mãos mal-intencionadas manipulando situações e criando fenômenos artificiais. "Existe realmente uma redescoberta da percussão, hoje", explica o músico. "Isso ocorre dentro do fenômeno da world music. Em países como os Estados Unidos, o chamado world beat (algo como "batida mundial") ou a world percussion (percussão mundial) são muito enaltecidos por agregar ritmos africanos." Porém, Carlos explica que a tendência é considerar essa sonoridade, ou os estilos que se valem dela, como algo exótico e diferente, o que afastaria os ouvintes da tradição verdadeira dos ritmos. "A world music veio para tentar conferir uma certa identidade que não era detectada pela população que consome música no mundo. É uma forma de fazê-las procurar numa prateleira específica da loja de discos."

Carlos é reticente ao afirmar que esse movimento em torno da world music e das apropriações de ritmo não passam de jogadas de marketing, mas suas indagações sugerem que as coisas nem sempre acontecem de maneira tão espontânea assim. "Para quem são revertidos os lucros?", provoca. "Para o nativo que ofereceu o ritmo ou para o sistema que o consome? Um artista pode ser descoberto e se apresentar por uma noite em meio a luzes, mas isso não reverte nada para a vida normal dele." Em seu trabalho, Carlos se ateve ao que chamou de generalização e supersimplificação que se faz de outras culturas. "Eu estudei a falsa idéia que se tem de alguns movimentos culturais. No processo de transferência de uma determinada manifestação de um lugar para outro, é preciso ficar atento ao que se retira e, mais, ao que se adiciona a essas manifestações."

Como exemplo desse movimento, Carlos cita o filme Buena Vista Social Club, do diretor alemão Wim Wenders, que narra a história de uma banda cubana de rumba que encontra o megaestrelato em palcos norte-americanos. "É curioso analisar a seqüência das imagens nesse filme. Primeiro a câmara mostra Cuba e seu cenário desolador para depois mostrar a banda no Carnegie Hall, em Nova York." Para o músico, há uma gama de coisas muito interessantes no vasto universo da world music, mas sem dúvida existe também "um grande abuso por parte de quem se apropria disso".

"Nos Estados Unidos, por exemplo, eles chamam de world music tudo o que não é pop ou rock norte-americano ou inglês. Isso na verdade é a necessidade de se criar um novo objeto de consumo, recuperar vendas que despencavam no início dos anos 80. E isso é idiotice. Como se pode agrupar a música do mundo sob um rótulo só?"

Somado a isso tudo há o agravante de que nem tudo o que se coloca na prateleira de world beat é música étnica. De repente, podemos encontrar uma banda japonesa de rock dividindo espaço com o som folclórico de uma tribo africana. O compositor erudito brasileiro Gilberto Mendes levanta esse problema e afirma que, além de um equívoco, isso não é novidade. "Para mim, não existe world music", categoriza. "O que existem são ritmos folclóricos e esses já foram visitados por músicos eruditos no mínimo há oitenta anos". Para o músico santista, a questão está no que a mídia elege como assunto do momento. E o que lemos nas manchetes de hoje não são necessariamente furos de reportagem. "Isso que se comenta dos ritmos eletrônicos na música de hoje foi na verdade inventado muitos anos atrás na Alemanha. Nós da música erudita fazemos isso há muito tempo." O compositor, do alto de seus 77 anos e "desde sempre" envolvido com música, coloca uma pedra sobre o assunto ao afirmar que a última grande novidade em matéria de música foi a criação da chamada música popular urbana nas primeiras décadas do século, representada pelo samba brasileiro, pela rumba cubana e pela música popular norte-americana.

A música do mundo

Se por um lado a fusão entre estilos, que parece ser a voga da produção musical contemporânea, sofre algumas críticas, por outro, dependendo da maneira como é apresentada ao público, pode criar resultados interessantes. O Sesc Pompéia é um bom exemplo com o seu Todos os Cantos do Mundo, título da série de espetáculos musicais que busca reunir artistas brasileiros e internacionais cujos trabalhos tenham alguma semelhança. A terceira edição do festival, ocorrida de 27 de abril a 7 de maio, propôs um diálogo entre diversas etnias com a intenção de promover uma "convivência harmoniosa" entre ritmos às vezes díspares, além de uma avaliação das diferentes produções artísticas e culturais. A direção artística dos espetáculos ficou a cargo da cantora, compositora e pesquisadora musical Fortuna, e a novidade este ano foi a chance que o Sesc deu ao público de conferir cada show em duas datas diferentes.

Os destaques ficaram por conta de Rita Ribeiro dividindo o palco com o zairense Lokua Kanza (que cantou no dialeto africano lingala); do trio vocal feminino norte-americano Ulali, que misturou seus tradicionais cantos indígenas à viola de Baden Powell; e do eterno Luiz Melodia, que se apresentou com o queniano Ayub Ogada.