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Festas Populares
Rapsódia brasileira

O poeta Gerardo Mello Mourão, não por acaso o entrevistado desta edição, publicou há mais de dez anos um artigo intitulado "O Homem e a Festa". Nesse texto, emprega a sensibilidade que lhe é peculiar de ofício para descer à alma humana e, no fio da história, concluir que não existe sociedade sem o advento da festa. Em certo momento, remete-nos ao célebre filósofo Jaeger, que em sua Paideia retorna às raízes do Ocidente e confronta a extasiada Atenas com a carrancuda Esparta. Escreve Mourão: "[Jaeger] chega a sugerir que os povos que se davam à celebração da festa se tornaram imperecíveis e senhores, constituindo-se em presença universal na história, enquanto os povos incapazes para a festa, mesmo os mais aguerridos e poderosos, acabaram por perecer, infecundos para a cultura".
Na pureza do raciocínio filosófico, para quem mais vale cuidar da essência que dos supérfluos, o pensador tece os apanágios das celebrações humanas. Para ele, a festa tem sempre um fim religioso. Mantém relação íntima com a divindade não importa onde - seja no Catorze de Julho francês, nos festivais nazistas em Nuremberg, nas festas de coroação na Inglaterra, nos desfiles de Moscou à época comunista, nas comemorações dos santos juninos e no Carnaval.
E em referência à Festa de Momo, escreveu: "Como é profundamente religioso o carnaval brasileiro, não apenas na melopéia [peça musical para acompanhar uma recitação] litúrgica de suas músicas, na elegância ritual de suas danças de rancho ou de escola, mas também no ritmo dionisíaco das ancas e das vozes que erguem da hora lógica do mundo para a hora mágica da eternidade os homens e as mulheres embriagados pela possessão da alegria. É uma festa religiosa, pois nela as pessoas estabelecem aquela comunhão fraterna, que lembra aos seres humanos sua origem comum, que lhes dá a alegria dessa origem comum, e que é vínculo maior da criatura com o Criador". E, complementando: "Nem a presença dos valores profanos tolda a limpidez dos valores sacrais que presidem a festa. O que importa é o que há nela de re-ligio - de religiosidade, religação entre os seres, de comunhão, em suma. Pois, de certo modo, quando o amor a promove, é tão importante a comunhão dos santos, de que fala o Credo, como a comunhão dos pecadores".
No fraseado do poeta universalista, sobressai a visão geral: a festa é necessária, assim como, em metáfora banal, o ar que se respira. Mas o melhor mesmo é colori-la, tecer com os panos próprios de cada um dos homens, cada um dos povos. Deixemos o pedestal do discurso unívoco para decompor a celebração. Ao rés-do-chão, a música, a dança, a alegria, a hora mágica, a devoção eclodem no riso.
Cavalhadas Há hoje em São Paulo duas modalidades de cavalhadas. Uma reelabora os relatos das lutas de Carlos Magno e os Pares de França contra os mouros (lutas de mouros e cristãos), estruturando simbolicamente a rivalidade nas investidas que cada grupo faz ao campo adversário e na oposição das cores: azul para os cristãos e vermelho para os mouros. O conflito é acirrado com mortes, raptos, prisões, embaixadas e resgates. Os cavaleiros (doze representando cristãos e doze representando mouros), sempre muito hábeis nas manobras com seus animais, esforçam-se em campo para dar conta do entrecho dramático. Com carreiras e evoluções, em duplas ou grupos, de manejos de espada, lanças e tiros de festim, e com a participação de coadjuvantes mascarados, sempre em números variáveis, eles lutam até a vitória dos cristãos e a conversão dos mouros. (fonte: Toninho Macedo) |
Festa do povo
É o caso de estabelecer uma análise pontual da realidade brasileira. Assumir a nossa trajetória festeira desde antanho até os dias de hoje: do tempo consagrado pela tevê, pela famigerada globalização, pela reprodução de valores alheios; tempo do tempo apertado do relógio que espreme as horas cada vez mais. É um momento oportuno esse, entrando em junho, tempo das festas juninas, para desviar um pouco a atenção das festas de consumo, entronizadas pelo tempo da mídia, e tomar consciência de que por trás das câmeras, ao alcance do nariz, centenas de celebrações se proliferam em homenagem a um sem-número de fés, santos e fervores, que por um motivo ou por outro passam despercebidos. O calendário festivo brasileiro não se confina ao Carnaval, Natal e santos juninos. As micaretas, danças e folguedos espalham-se praticamente pelos dozes meses do ano, obedecendo ao afã do povo e, claro, ao comichão de se festar.
Aliás é disso que trata essa matéria. Mostrar ao leitor um recorte geralmente mal divulgado da nossa cultura. Mergulhar sem receio nas mais variadas festas, trazer suas origens, as impressões dos atores, o perfil dos protagonistas, os bastidores, as dificuldades do cotidiano, os contrastes, enfim, entre "a primeira vida", tomada pela rotina, e a "segunda vida", envolta na hora mágica, no riso sem fim.
Divino A devoção ao Divino Espírito Santo constitui um um dos fortes núcleos de devoção populares em São Paulo. Herança do colonizador português, exterioriza-se de diversas formas, resultando em grandes festas desde os tempos do Brasil Colônia. Da celebração festiva faziam parte os imperadores, mordomos, bandeireiros, império e levantamento do Mastro do Divino. (fonte: Toninho Macedo) |
Ao se estudar as celebrações de cunho popular que animam o povo no fim do século 20, constatam-se reminiscências das festas de antigamente, já realizadas por povos de antes de Cristo. Tais elementos foram impregnados nos hábitos humanos, transmitidos de geração a geração e se trasladaram no tempo e no espaço. São muitos os resquícios atávicos oriundos dos gregos, romanos, africanos, pré-colombianos e judeus que foram apreendidos, no amálgama da cultura, por povos tão diversos.
O nosso célebre Carnaval serve como paradigma. A festa da carne está desde a Idade Média inscrita na folhinha da Igreja católica, mas os personagens e símbolos que o caracterizam datam de épocas mais remotas e estão relacionados com rituais cíclicos de agradecimento à natureza, de súplica por uma farta colheita, de esconjuro dos espíritos malignos. O tema da morte e ressurreição, as máscaras horrendas, o combate farsesco dos foliões de rua, o extravasamento do baixo ventre imitam práticas longínquas, perdidas na poeira dos séculos.
Aliás, é do entendimento dos estudiosos que no processo de evangelização dos povos ditos bárbaros a Igreja católica utilizava os ritos e festas dos gentios em proveito da catequese. Transportadas à América em geral, e ao Brasil, em particular, muitas celebrações locais e africanas foram incorporadas pelos jesuítas com o propósito de aproximar os infiéis da fé de Cristo. A propósito do tema, a historiadora Maria Cristina Cortez Wiessenbach escreveu em História da Vida Privada no Brasil: "[o historiador francês] Roger Bastide assinala que, além de expressar uma forma particular de exaltação, essa espécie de intromissão de danças e cânticos étnicos nas comemorações católicas foi ocasionada, historicamente, pelas estratégias de catequese […]. No entanto, à medida que a presença eclesiástica se tornava mais rala, a festa como conjunto de expressões - rezas, procissões, cânticos e danças - consolidou-se, em especial porque conduzida por uma mentalidade popular que não via, nessas ocasiões e nem mesmo no dia-a-dia, a cisão entre o sagrado e o profano".
Roger Bastide, autor de várias obras sobre a cultura popular no Brasil, atentou para a diversidade do brasileiro. Diversidade essa cristalizada na criatividade que marcava, e ainda marca, a preparação dos festejos que ocorrem ao largo das datas oficiais e que estão, de fato, na essência que modela as celebrações ao gosto do povo - subverter o dado imposto, sisudo e autoritário, para salpicar tempero próprio na panela alheia.
Explosão de riso
"Para a população local e seus convidados, as festas são realizadas durante o ano todo, mantendo os componentes do bloco mobilizados e a quadra sempre animada. As festas reúnem os vizinhos por ocasião da data local da fundação do bloco, os dias de santos (como são João, Cosme e Damião e são Sebastião, o protetor do bloco), datas nacionais (como o dia da Pátria) e as festas diretamente ligadas ao Carnaval (aleluia, concurso dos sambas, ensaios etc.) […] Todas essas atividades são como rituais coletivos que aproximam os vizinhos, abrem espaço à expressão simbólica de suas identidades e conflitos", escreveu a socióloga Alba Zaluar em A Máquina e a Revolta. As Organizações Populares e o Significado da Pobreza, sobre um bloco carnavalesco do Rio de Janeiro.
É essa uma boa definição do espírito que rege as festas populares - o torvelinho da comunidade se organizando espontaneamente para cumprir suas necessidades mais vitais de associação, devoção e alegria. A festa significa unir-se em torno de um ideal coletivo, eleger um objetivo comum e relegar, não sem sacrifício, interesses alheios e, por que não dizer, frívolos, para cumpri-lo. Não importa se é Carnaval, Festa do Divino, dança de Santa Cruz, cavalhada, cristãos e mouros, umbanda, Folia de Reis, moçambique, jongo, candomblé, congo, samba, coco, maracatu, São Gonçalo, Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, bumba-meu-boi ou boi-bumbá [veja box]. O que vale mesmo é inverter o tempo duro do trabalho diário para dar vazão aos desígnios mais latentes, sufocados sob a opressão da miséria, do descaso e das humilhações diuturnas, em forma de fé, alegria e dança.
A festa vive
Talvez a dificuldade de compreender a simbologia que cerca as manifestações do povo - principalmente quando o observador ou o festeiro improvisado está fora da "realidade" que as motiva - provoque a necessidade de enquadrá-las entre concepções abstratas. Nos discursos acerca de cultura popular, é recorrente o uso dos termos autenticidade, pureza, genuíno, tradição, sobrevivência, resgate usados como aparas para qualificar seus desdobramentos. Separa-se a partir de critérios frágeis celebrações legítimas daquelas maculadas por elementos estranhos às nossas raízes. Porém, manejar os volteios da retórica é exercício penoso, principalmente tendo o Brasil como pano de fundo. Afinal, o produto cultural brasileiro não é fruto de uma mistura sem-fim? E não se pode esquecer que as festas populares carregam vestígios de épocas imemoriais, de um tempo pré-industrial, quando a globalização firmava seus passos nas velas das caravelas e no itinerário da Cruz.
Assim, é verdade que determinadas festas podem transmitir uma atmosfera moribunda. Parecem viver os estertores de uma manifestação que já foi mais "viva". Mas, se olharmos com atenção, em outra localidade um evento do mesmo tipo recebe foliões ávidos para celebrar. Por isso, é falsa a impressão de que as festas populares, aquelas desligadas do consumo, agonizam. No seu ritmo singular, elas perseveram da mesma forma que em outras épocas.
São Benedito A devoção a São Benedito é muito forte e difusa por todo os Estado, motivando muitas de nossas grandes festas como a existência e atuação de congos, moçambiques, jongo e batuque. Suas festas se estendem por todo o ano, em grande número e monumentalidade em todo o Vale do Paraíba e Litoral Norte, concentradas no período compreendido entre a pascoela e o 13 de maio. |
A crítica a ser feita deve fugir dos rancores mesquinhos e dirigir-se à condição social, econômica e cultural dos brincantes quando se recolhem os instrumentos. É o que ensina Alberto Ikeda, professor de etnomusicologia do Instituto de Artes da Unesp. Profundo conhecedor de música, danças, festas e folguedos populares, sua preocupação extravasa o campo acadêmico. "Deve-se manter em mente a condição das pessoas depois da festa. É preciso ter consciência de que os pesquisadores e os produtores culturais são intermediadores entre o público e os atores reais. Portanto, nesse momento, corre-se o risco de apropriação indevida da cultura tradicional, ou seja, expropria-se o sujeito da ação. A autenticidade forçada pode se transformar num instrumento de dominação e de manutenção de uma identidade que não interessa à própria comunidade."
Para ilustrar sua teoria, o professor Ikeda atenta para o Carnaval nos moldes de hoje, principalmente no Rio de Janeiro, e a Festa do Boi, em Paraitins, Amazonas. "Nesses dois casos, houve a simplificação da cultura do outro em prol do consumo, isto é, a cultura passa a ser utilizada como meio de reprodução do capital, sem que a comunidade, original protagonista, receba nada em troca. Surge dessas situações, o 'folclore para turistas', que muitas vezes exclui a participação popular, como nos desfiles de Carnaval."
Pior se pensarmos que o Carnaval praticado em todo o Brasil foi um instrumento dessacralizador das comemorações religiosas, que se tornaram meros pretextos para o re-ligio desenxabido citado por Gerardo Mello Mourão. O mesmo processo foi observado na Europa nos inícios da Idade Moderna, quando, em resposta à bandalheira popular, que passou a desautorizar o recato estipulado pela banda de cima, tomou lugar, pela boa integridade moral dos mandatários de plantão, "um longo e eficaz trabalho de reformas das práticas culturais das camadas populares por parte da elite, notadamente por agentes religiosos protestantes e católicos […] no sentido do disciplinamento do espírito festivo e satírico das classes populares", mas que por aqui tiveram um caráter relativo, devido ao tino 'carnavalizador' de nossa cultura popular".
Atualmente, segundo o especialista, vivemos, como outrora, sob a égide das "contra-reformas que incentivam as práticas culturais festivas, como é o caso da indústria cultural, na qual as práticas festivas são mercantilizadas, devendo ser otimizadas para tal fim […]. Assim é que o Carnaval no Brasil se transforma no 'maior espetáculo da Terra' (de inegável beleza), sustentando a economia carnavalesca. Efetivam-se então as novas reformas da cultura popular, como se vê por exemplo na extremada libidinização do Carnaval televisivo". Para ele, "o samba no pé fica então restrito a alguns poucos especialistas, geralmente negros, sendo suficiente para a maioria emprestar seus corpos como complemento do suporte de fantasia ou os expor como objeto de beleza padrão". No processo de perda de referências do Carnaval, Alberto Ikeda aponta ainda para a marcialização dos sambas de enredo, cujos andamentos mais acelerados nada mais são que a conveniência aos "ritmos" próprios de qualquer produção industrial, sem se importar mais com o tempo "informal original do samba, ligado ao lazer descontraído dos fins de semana".
Parte desse processo ecoa no depoimento um pouco nostálgico de José Antônio Alves, diretor-executivo do Grêmio Recreativo e Cultural Escola de Samba Vai-Vai, a mais tradicional da cidade, há 70 anos fazendo Carnaval. Nascido no Bixiga, seu Zé Antônio relembra cinqüenta anos atrás, quando os blocos de samba catavam gente pela rua, cada um vestido à própria moda, sem o propósito de competição. "Lá pelos anos 70, os camaradas descontentes com a balbúrdia resolveram padronizar os cordões e eles mesmos confeccionavam as fantasias do grupo." De lá para cá, o Carnaval se organizou e do desfile oficial só participa quem se submeter aos rígidos critérios de disputas, que acabam por consagrar uma agremiação vencedora. A comunidade originária, normalmente desguarnecida de sustento financeiro, luta para brincar à revelia dos altos preços cobrados tanto da audiência como dos personagens. "No Vai-Vai, se uma pessoa da comunidade não tiver dinheiro, a escola cede uma fantasia. Ninguém fica de fora da festa e, da porta para dentro, todo mundo é igual. Pode ser artista, destaque ou auxiliar de caminhão, que é tratado da mesma forma. Se o presidente da República quiser desfilar e as alas tiverem fechadas, vai ter que esperar o ano seguinte." Seu Zé Antônio garante que a escola não paga para os colunáveis subirem num carro alegórico e que privilegia, sempre, uma pessoa da comunidade diante de um convidado, mesmo para os postos de mais destaques, como o disputado cargo de Rainha da Bateria. "Temos tanta menina bonita que sabe dançar no bairro, para que chamar uma loirinha que não samba?" Boa pergunta.
Com coração e alma
Menos severos são os argumentos da professora Marlyse Meyer, diretora do Centro Brasileiro de Estudos da América Latina (CBEAL) da Fundação Memorial da América Latina e também festeira de primeira. Como seu colega Ikeda, ela não despreza o senso crítico e reconhece "a reprodução da hierarquia dominante e manipulações" que têm lugar em algumas festas. Mas, em contrapartida, afirma que a "lucidez não elimina a fruição nem a consciência dos mecanismos altera a sensação de beleza". Corroboram tais aforismos o traquejo de quem festou à exaustão nos mais recônditos rincões do Brasil. De são Benedito a Xangô, Marlyse reverenciou os credos e gastou sapato e sola de mão pelos folguedos país afora. Há dez anos, juntou suas memórias, não sem algum estofo teórico, no delicioso volume Caminhos do Imaginário no Brasil, em que narra suas experiências e procura identificar os resquícios de festas de antanho que ainda assombram na aurora do ano 2000. Identifica na essência das celebrações populares de hoje o caráter profano das festas oficiais da Idade Média. "É, em suma, a carnavalização da festa oficial [...], na acepção de Bakthin […] na Idade Média praticamente toda festa religiosa, Corpus Christi em particular, tinha seu momento particular de praça pública."
Cururu Cururu é o repente, o desafio trovado ao som de violas do Médio Tietê. São numerosos, afamados e respeitados os curureiros (os trovadores) da região. Alguns deles já fizeram muitas viagens para o exterior. Não há festa ou Pouso de Bandeira do Divino sem o cururu,que pode varar a noite. E não há cidadão que arrede pé diante de uma porfia de canturiões (cantadores) (fonte: Toninho Macedo) |
E depois, embevecida com o fragor popular, desfia num parágrafo breve o que colheu pelas perambulações festeiras: "É a beleza dos adereços dos ricos ajaezamentos dos cavalos da grande e rica cavalhada de Pirenópolis, as flores de papel crepom dos burricos da mesma festa em São Luis de Paraitinga! Do altar do Divino chamejante no seu papel de alumínio encarnado! Desde os enormes altares do império de Parati ou São Luís ao mais modesto de Anhembi e do terreiro de Jorge em São Luís, no Maranhão! Puro ornamento, em São Luís ainda, aquela mesa de doces do Divino da Casa das Minas, um despotismo de formas, cores e arranjos. Do altar de São João do batismo do boi, aos enfeites do altar e do quintal do São Gonçalo da Freguesia do Ó […] A inventividade renovada a cada festa de orixá, dos arranjos de flores e folhas, aquelas palmeiras desfiadas de Ogum (mariô) cujas folhas foram catadas na mata próxima, a elegância na apresentação da comida do santo, o delírio de frutas e folhagens da festa de caboclo, sem que haja um decorador especial para criar um conjunto de tanta beleza".
Para finalizar este artigo, socorre-se novamente ao poeta. Concluímos esta matéria parafraseando o epílogo de Gerardo Mello Mourão em seu "O Homem e a Festa": "Os governos da terra, os poderes da terra têm conseguido acabar com muita coisa no planeta. Nunca conseguiram nem conseguirão acabar com a festa, que existirá enquanto existir o homem, com seu coração e sua alma". E lembramos que as festas populares não perecem nunca. Caminham guiadas pela batuta do povo. Só isso já basta.
Festa de Santa Cruz O dia 3 de maio é consagrado à celebração da "invenção da Cruz". Festeja-se a data com uma dança característica, praticada no Brasil há mais de trezentos anos e cujas origens remontam aos primórdios do cristianismo. Em Itaquequecetuba, num começo de noite fria, no último dia 5 de maio, pouco mais de duas dezenas de devotos perpetuaram por mais um ano as rezas votivas antiquíssimas. Enfrentando o descaso do poder público e a indiferença dos passantes - quase na clandestinidade-, dançaram sob a bênção da espontaneidade, para um público inexistente e desnecessário. Durante mais de quatro horas repetiram uma prática dos seus pais e avós com o único objetivo de satisfazer a necessidade íntima e particular de fé e devoção. É preciso lembrar que a celebração obedeceu ao "tempo largo" e informal próprio das festas populares: havia uma vaga idéia de que os romeiros chegariam em torno das cinco da tarde na praça central da cidade. Chegaram às seis e meia. O pequeno grupo abriu caminho a fórceps em meio ao trânsito intransigente, sem paramentos, munido apenas de uma cruz ajaezada de panos e fitas. Deu-se, então, início às ladainhas ao pé do símbolo sacrossanto, da mesma maneira descrita pelo folclorista Luís da Câmara Cascudo em seu célebre Dicionário do Folclore Brasileiro. A única diferença é que nos últimos tempos a dança arrefeceu. Antes, participava mais gente e era realizada diante de todas as casas que erguessem uma cruz em frente à porta. Dançava-se a noite inteira, com o folguedo varando a manhã seguinte. Hoje é necessário improvisar, deslocando a cruz metro a metro pela praça estreita, como se atrás dela ainda houvesse uma casa interessada em receber as rezas que purgariam pecados e atenderiam promessas. Após as primeiras ladainhas de louvação à Virgem e ao menino Jesus, começa a cerimônia propriamente dita: duas fileiras encabeçadas pelos violeiros e por mestres cantadores que puxam a cantilena. A dança é realizada em fila que percorre um breve circuito: começa e termina diante da Cruz, batendo-se os pés no ritmo sincopado das violas. Naquela noite, houve doze rodadas: nove na praça e três em agradecimento a um abnegado que recebeu os devotos para um café em sua casa. A questão imediata que surge para o observador incauto que se depara com a cena inusitada é por que aquelas pessoas deixam suas casas numa noite fria para dançar em homenagem à cruz. A resposta encontra-se nos depoimentos despretensiosos de quem recebeu um dote cultural dos ancestrais e o passa para frente mesmo involuntariamente. "Me chamam e eu venho cantar", informa mestre Olegário, talvez um dos últimos repositórios dos estribilhos e dos acordes de louvação à Cruz. Durante um dos intervalos, ele mostrava orgulhoso as nuanças da viola caipira entalhada à maneira das guitarras ibéricas de três séculos atrás. "Hoje é impossível encontrar um instrumento destes, porque quem fazia morreu ano passado. Quando ela estragar, acabou", lamenta. Dona Vicentina, rezadeira oficial da região do vale do Paraíba, ouvia quieta os lamentos do parceiro enquanto afinava as cordas vocais para a dança do dia seguinte, programada sabe-se lá a que horas numa capelinha em Arujá. |
Congadas O dia 13 de maio é uma data muito sugestiva para a realização de festas populares. Marca o aniversário da redenção dos negros, dia em que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, rebentando as amarras da escravidão. O catolicismo popular guardou com muito carinho o ato da princesa e durante os anos que se seguiram agregou aos festejos santos de origens díspares, mas, principalmente, aqueles vinculados aos negros. Assim, na mobilidade do calendário do povo, a devoção a são Benedito, à santa Ifigênia e à Nossa Senhora do Rosário perambulam sem cerimônia pelos meses do ano, escapando à ortodoxia original e oficial. Neste 13 de maio, como sói acontecer por aí afora, rezou-se muito ao padroeiro dos negros, o são Benedito, abençoando a dolorosa liberdade. No município de Cotia, na Grande São Paulo, uma grande festa popular saudou a Abolição, reunindo sete congadas de várias cidades do interior. No Dicionário do Folclore Brasileiro, Luís da Câmara Cascudo define assim essa manifestação: "Autos populares brasileiros, de motivação africana, representados no Norte, Centro e Sul do país. Os elementos de formação foram: a) coroação dos reis de Congo; b) préstitos e embaixadas; c) reminiscências de bailados guerreiros documentativos de lutas, e a reminiscência da Rainha Njinga Nbandi, rainha de Angola, falecida em 17 de dezembro de 1663, a famosa rainha Ginga, defensora da autonomia de seu reinado contra portugueses [...]". A festa em Cotia percorreu todo o fim de semana com os grupos em procissão permanente pelas ruas. Cada formação contava com cerca de quarenta pessoas, que vestiam indumentária característica e acompanham o ritual desde o século 17. A música das congadas é marcada pelo compasso forte da percussão e, às vezes, da viola e da sanfona. Durante o percurso realizam-se coreografias sob as ordens do mestre congadeiro, que orienta a dança com o trilar de um apito. A praxe ordena que os grupos convidados façam uma dança em frente à casa do festeiro, responsável pelos custos de transporte e alimentação. Em Cotia, quem coordena a festa é seu Benedito Pereira Campos - ou Dito da Quitéria, nome genuíno, batizado segundo suas origens africanas, caso não houvesse a imposição dos sobrenomes dos senhores (à direita, na foto, com um companheiro de congo). Com 67 anos, filho de velho congadeiro, o festeiro perdeu quase toda a visão devido a um glaucoma. Mas, "graças a são Benedito", o infortúnio não impediu que ele percorresse as ruas, verificando o bom andamento dos festejos e muito menos prejudicou seu desempenho à frente da congada da cidade, como vem fazendo há uns bons quarenta anos. Oservando os grupos, nota-se um sinal auspicioso: junto dos mais velhos e das crianças, trazidas involuntariamente, dançavam e cantavam adolescentes e jovens, escassos anos atrás. Durante a festa, as louvações misturam-se com certo proselitismo: acordes antigos portam palavras de ordem contra a situação do país. E, nos intervalos, hora de descanso para a maioria, algumas meninas vestidas a caráter podiam ser flagradas imitando os conjuntos musicais da moda. Sinal dos tempos. |