Postado em
Voar
Espírito de Ícaro

O homem não voa. Essa afirmação é tão óbvia quanto triste para o ser humano, nunca conformado com a ausência das asas, invejoso da pompa dos pássaros... No imaginário dos homens, criaram-se histórias nas quais seus heróis desbravavam meios que não lhes eram próprios. O mar, o mundo submarino, o centro da Terra e o firmamento, plano que mais acendeu a criatividade dos autores. Na mitologia grega, o mito de Ícaro traduz perfeitamente o desejo de liberdade que o homem sempre aliou à propriedade de voar.
Convencido por Dédalo, o pai arquiteto, o jovem reúne uma enorme quantidade de penas e, com cera, ambos constroem dois imensos pares de asas brancas com as quais tentariam fugir da ilha de Creta, onde eram prisioneiros. Amarradas as asas ao corpo com tiras de couro, ganham os céus da Grécia, pai e filho rumo à liberdade própria dos pássaros. O pai adverte: "Filho, nem muito próximo ao mar, nem muito próximo ao Sol". Mas não seriam as profundezas aquáticas que atrairiam o jovem sonhador. Fascinado com aquela inédita convivência com os seres alados, cujas proezas sugerem desdém da limitação humana, Ícaro voa alto. O calor do sol derrete a cera que liga as penas e o jovem mergulha na imensidão líquida do oceano. Trágica e lírica, a história de Ícaro ilustra a incessante busca do homem por superar suas condições naturais.
Na vida real, outros tentaram incessantemente, até que o engenho humano superou a força da gravidade, que teimava em nos manter colados ao chão. Porém, antes da vitória final, houve muitas ousadias. Pelo que se tem notícia, o primeiro subversivo foi o pintor e cientista italiano Leonardo da Vinci. Visionário, ele escreveu sobre tudo e embrenhou-se igualmente em diversas áreas. Da astronomia à botânica, passando pela geologia e arquitetura. Porém, o que mais fascina em seu legado são os projetos que mostravam que, mesmo há quinhentos anos, quando o homem ainda se orgulhava de ter ganhado os mares, o pensador já sonhava com o céu. São plantas de helicópteros, pára-quedas e as mais diversas máquinas voadoras, incrivelmente parecidas com as asas-delta e os aviões que hoje conhecemos tão bem.
A história registra que em 1857 o francês Andrew Jacques Garnerin realizou o sonho de Da Vinci ao saltar de pára-quedas pela primeira vez em Paris, a seiscentos metros de altura. Em 1890, um norte-americano inaugurou, no Brasil, a prática que viria a se tornar um esporte. Mais tarde, outros sonhadores concretizaram desvarios do pai da Mona Lisa. Em 1900, o alemão Ferdinand von Zeppelin inaugurou, com seus dirigíveis inflados com gás hélio, a era dos transportes aéreos. Três anos depois, três figuras surgem no cenário da aviação e causam até hoje a polêmica de quem inventou o primeiro aparato a deixar o solo. Os fatos contam que em 17 de dezembro de 1903 os norte-americanos Orville e Wilbur Wright fizeram o primeiro vôo da história na Carolina do Norte, uma tentativa bem-sucedida de 59 segundos. No mesmo ano, o Brasil entra na história voando no 14-bis de Alberto Santos Dumont. Três anos depois, o brasileiro constrói o Demoiselle, considerado o real protótipo dos aviões modernos.
Do utilitarismo do transporte e dos objetivos destruidores da guerra à descarga de adrenalina foi um, desculpe o trocadilho, salto. Hoje os céus não pertencem mais apenas aos pássaros. O avião tornou-se um dos mais populares meios de transporte e as demais modalidades aéreas inundam o céu.
Asas na cabeça
Mesmo com a "industrialização" do exercício de voar (ninguém vê nenhum romantismo na ponte aérea Rio-São Paulo), uma grande carga emotiva ainda habita essa "transgressão" humana, cada vez mais banal. É o caso do inglês Jonathan Thornton, há 28 anos no Brasil. Desde os dezesseis anos, quando ainda era escoteiro, Thornton é adepto do alpinismo. Paralelamente às suas aventuras nas montanhas, ele costumava trabalhar como engenheiro numa montadora da famosa marca de carros Rolls Royce. Depois que a fábrica faliu, era a hora de dedicar-se inteiramente às suas grandes paixões. Entre elas - e na verdade a de maior destaque - está o balonismo. "Eu me evolvi com balões mesmo antes de vir ao Brasil", explica. "Aqui, conheci o americano Vitório Truffi, grande figura do balonismo no Brasil, por meio de quem me reaproximei dos balões." Jonathan conta que sempre se interessou por práticas que o mantivessem longe do chão. Já se interessara pelo pára-quedismo nos tempos da faculdade, e quando é questionado sobre o que o fez entrar pela primeira vez num cesto de balão, o inglês coça a barba, dá uma tragada em seu cachimbo e sorri: "Essa é uma boa pergunta. Havia tão poucos balões na época em que comecei... Não sei, gostei", resume.
Em 1987, Thornton ajudou a organizar o primeiro encontro de balonismo, fato que o coloca entre os principais responsáveis pela prática em céus brasileiros. "Hoje a coisa está bem organizada aqui. Temos cerca de sessenta balonistas no país e metade participa das competições. Parece pouco, mas esses números competem com os mil existentes na Inglaterra, onde apenas 25 deles comparecem aos campeonatos, ou seja, uma porcetagem mínima. O inglês, brasileiríssimo em seu humor, explica que as competições não julgam a velocidade dos balões, mas sim a precisão de vôo. "O importante não é quem chega primeiro. É estabelecido um alvo, um cruzamento de estrada ou uma ponte sobre um rio, e cabe aos competidores achar os ventos certos para que eles passem exatamente sobre o ponto exigido." Além das competições, o prazer de voar é o grande atrativo para o balonista. "Qualquer um tem o sonho de voar. E com o balão você pode voar baixo, pouco acima das árvores, e isso é bem bonito. Essa é a sensação que eu mais procuro quando vôo. Além disso, depois que você queima o ar por alguns segundos, fica tudo muito silencioso. Não há nenhuma vibração nem vento na cara, porque ele se movimenta junto com o vento. É uma sensação muito suave."
Aviões em miniatura, pilotos de verdade
Há aqueles que sequer precisam tirar os pés do chão para sentirem-se voando. Basta um aparelho de controle à distância e um aviãozinho. "Aviãozinho, não", reclama Mário M. Garuti, aeromodelista. "Nós construímos réplicas perfeitas dos aviões originais, os chamadas aeromodelos." Ao visitar uma oficina de aeromodelismo, aprende-se várias coisas: primeiro, que "aviãozinho" é brinquedo de criança; segundo, que aeromodelista que se preze, segundo os próprios, é aquele que sente o prazer de pilotar um modelo construído por ele mesmo. "O resto a gente chama de soltador de avião", brinca Vitor, irmão de Mário que também se dedica à prática. "No mínimo, você pega um kit e constrói seu próprio modelo. Nós, no caso, fabricamos os nossos a partir de plantas de aviões de verdade." Os irmãos estão às voltas com aeromodelos há 45 anos. "É uma terapia para quem pratica", retoma Victor. "É impossível pensar em outra coisa enquanto se fabrica um destes ou quando se está na pista." Eles explicam que a sensação é a de ser um piloto de verdade, uma vez que os comandos básicos que possibilitam o vôo de uma aeronave são reproduzidos fielmente pelos aeromodelistas. "Até na pista, na hora da decolagem, é tudo igual. Você tem de taxiar o avião, virá-lo de acordo com o vento e tudo mais." É essa atenção e realismo presentes no momento da pilotagem que a tornam tão atraente. "Além disso, há o senso de companheirismo que cerca a prática", explica o aeromodelista. "Embora o momento em que você está pilotando até seja solitário, muitas vezes é exigida uma equipe de três ou quatro amigos para confeccionar um modelo. Isso une muito os envolvidos."
E por falar em união, a história toda mobiliza a família há gerações. O pai de Vitor e Mário já construía aeromodelos e os filhos de Vitor, Alexandre, de 24 anos, e Gabriela, de 22 anos, também se apaixonaram pela prática. Mesmo assim, Victor acha que apenas um ambiente propício não cria um aeromodelista. "Não se trata de uma coisa que você incute na pessoa, é uma paixão, um certo dom." Financeiramente, e infelizmente, aos aspirantes de aeromodelistas não é tão simples brincar de piloto. Embora haja modelos de papel custando em torno de trinta reais, aqueles mais incrementados e atraentes chegam a custar 10 mil reais, que é o caso dos aviões a rádio com turbinas a jato. O tempo de construção também varia, mas, em média, a confecção de um modelo não chega a levar dois anos. As competições são outro grande momento na vida dos aeromodelistas. Nelas, além da velocidade e das acrobacias realizadas pelos pilotos, avalia-se também a fidelidade com a qual foi reproduzida uma aeronave, o que exige a foto do modelo original para provar a sua existência.
Alguns, porém, não se contentam em apenas se imaginar voando. Ricardo Moreira Yokota voa de planador desde criança. "Com cinco anos eu já voava com um amigo do meu pai e nunca me lembro de sentir medo", conta. O advogado de 25 anos, recém-casado - "minha mulher nunca tinha pego um avião, foi uma confusão na lua-de-mel" -, contrapõe a profissão pé no chão freqüentando um clube de vôo a vela (como os iniciados denominam o planador) e garante que não é coisa de maluco. "É tudo feito com muita segurança. Cada planador é projetado para voar cerca de vinte metros para frente à medida que desce um metro. Essa é a razão de sua descida. Por conta disso, você sabe que existe uma área de segurança. Você imagina um cone virtual ao redor da pista de pouso e sabe que dentro desse cone você pode ficar sem problemas. Pode acontecer o que for, pois haverá condições de pouso."
Ricardo ressalva que a segurança depende da técnica do piloto. Ele precisa conhecer a região onde voa e, principalmente, o planador que pilota. Garantidas essa condições, é só curtir o vôo, cada um à sua maneira. "Muita gente fala em sensação de liberdade", explica Ricardo. "Como o vôo a vela depende dos fenômenos da natureza. Quando eu estou no ar, utilizo seus próprios recursos para dominá-la."
O mundo visto de cima
Tudo o que sobe tem de descer. O que conta é aproveitar essa máxima. Nesse campo, uns preferem o planar da asa-delta e outros a adrenalina do pára-quedas. A história de Flávia com o vôo-livre é cheia de pinceladas de paixão e romantismo. Só para começo de conversa, ela conheceu seu namorado num pico de vôo, lugar de onde partem os Ícaros modernos. Foi amor à primeira vista, pelo namorado e pelos ares. "A primeira vez que eu estive num pico de vôo já senti vontade de voar", conta Flávia. "Daí para o meu primeiro vôo duplo demorou um pouco, mas quando eu experimentei, pronto: já comecei a correr atrás de instrutores e equipamentos." Apesar do prazer, Flávia explica que é um aprendizado duro. "É preciso querer muito voar. Realmente, é uma coisa do espírito."
Imitar os pássaros tem seus revezes. A grosso modo, você torna-se um corpo a mais no céu e isso exige atenção. "A maioria dos acidentes em vôo livre são causados por falha do piloto. O resto foge do nosso controle e aí nem precisa estar voando, né?" Numa dessas intempéries às quais todos estão sujeitos, o namorado de Flávia sofreu um acidente e ficou paraplégico, mas mesmo assim continua voando. O que pode ser encarado como uma ironia do destino revela também a persistência humana.
Outro amante dos ares, Ricardo Pettená é um pára-quedista com 8.200 saltos e nove vezes campeão brasileiro. Com 39 anos de idade e 26 anos de saltos, Ricado nem quer pensar em abrir mão da emoção que sente a cada queda livre e chega a perder um pouco do bom humor quando alguém sugere que o pára-quedismo é perigoso ou coisa de maluco. Ele se sai assim: "Hoje é perigoso até fazer sexo. E depois tem outra, as pessoas pensam que quem salta faz parte de um bando de doidos, mas se esquecem de que há toda uma técnica por trás que torna a prática muito segura".
O Brasil possui, hoje, cerca de cem escolas de pára-quedismo, metade só em São Paulo, e está entre os melhores do mundo se analisarmos a qualidade de seus esportistas. Para quem estiver interessado, um salto sai em torno de 265 reais, e o aspirante a pára-quedista ainda recebe uma fita de vídeo que registra toda essa emoção.
O bancário Alessandro De Grande foi um pretendente a Ícaro conquistado pelo "vício de saltar" e, hoje, simplesmente não consegue parar. "Eu não posso ir até um campo de salto e não entrar no avião", conta. "Deve ser a adrenalina que vicia. São cerca de quarenta segundos em queda livre e, depois que você abre o pára-quedas, mais quinze de vôo. É uma sensação indescritível."
Nem sempre a emoção de voar dominava o espírito do bancário. Demorou um certo tempo para que Alessandro se deixasse convencer pelos amigos da faculdade a debutar em um avião, cinco anos atrás, num campo de salto. No entanto, hoje em dia é ele quem parte em cruzada para aumentar o grupo de cerca de 5 mil pára-quedistas que atualmente disputa o céu do Brasil. "Todo mundo deveria experimentar", conclui.
Seja pelo romantismo, pela sensação de interação e domínio da natureza ou pela busca da liberdade, o homem pode gabar-se de mais essa conquista. Além de comprovar na pele a profecia proferida por um Da Vinci pesaroso: "Quando você tiver provado a sensação de voar, andará na terra com olhos voltados para o céu, onde esteve e para onde desejará voltar".
Pelos ares Todas as modalidades citadas nessa matéria poderão ser conferidas de perto na exposição Voar: Cenas e Devaneios, que ficará em cartaz até o dia 4 de junho no Sesc Vila Mariana. A mostra conta com palestras, oficinas, exposições fotográficas e de objetos, equipamentos e instrumentos usados por seis modalidades do esporte aéreo. A programação prevê a exibição do documentários Ubatuba 2000 - O Filme, seleção das melhores imagens do tradicional Boggie, evento de pára-quedismo realizado em Ubatuba; oficinas explorando as possibilidades de voar, com brinquedos da cultura popular e dobraduras; e ainda palestras sobre a prática e a segurança do vôo livre e do pára-quedismo. Além disso, o evento expõe diversos aeromodelos, equipamentos, roupas apropriadas de pára-quedismo e pequenos balões. |