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Ficção
Páginas sem glória

Sérgio Sant'Anna

No tempo do Zé Augusto, o Conde, além das divisões de juvenis, aspirantes e profissionais, havia uma outra turma dentro dos times grandes, que podiam se dar a esse luxo: a do come-e-dorme. Como o próprio nome indica, era um pessoal que ficava apenas treinando, à espera de uma oportunidade: fosse nos aspirantes, os que haviam estourado a idade de juvenis, mas não estavam no ponto para o futebol de adultos; fosse nos profissionais, os que se encontravam em experiência ou sem contrato, muitos deles com categoria e idade respeitáveis demais para serem meros aspirantes. Os que tinham passado do ponto, enfim. Aliás, existem os que passam do primeiro ao último estágio, na vida, sem atingir o tal ponto. Resta, para os mais sábios, a alegria de apenas ser, afinal o único objetivo inequívoco da existência.

Era no come-e-dorme que o Zé Augusto, com vinte e três anos, estava sendo testado no Fluminense, que se preparava para uma rápida excursão à Europa, antecedendo o campeonato carioca de 1955, quando se produziram dois acontecimentos fundamentais para a sua carreira. O primeiro deles foi uma contratura muscular sofrida pelo centroavante e artilheiro Valdo, num coletivo dos titulares contra os aspirantes. O técnico olhou para a margem do campo, onde o pessoal do come-e-dorme e dos juvenis se aquecia para um treinamento entre os dois grupos, e lembrou-se das informações prestadas por meu tio. O clube estava cheio de sócios palpiteiros, e Gradim, o técnico, com toda a sua experiência, já aprendera havia muito a desconfiar desse tipo de indicação de jogadores desconhecidos, que só dava certo uma vez em vinte, ou mais. Ele tinha seus próprios informantes no interior dos estados do Rio, Minas e São Paulo, para formar o time de juvenis, numa prática que costumava produzir melhores resultados, abastecendo, depois que o jogador amadurecia, o time de profissionais. E jogador com a idade do Conde que estivesse dando sopa no Rio, sem clube para jogar, não devia ser lá grande coisa. Mas Gradim era amigo do meu tio e mandou o Zé Augusto terminar o treino no lugar do Valdo.

Se o técnico estivesse se importando muito com aquele teste, não teria entrado no vestiário junto com o centroavante titular para ver se a contusão dele era grave. O que acabou sendo sorte do Zé, porque nos primeiros quinze minutos ele não viu a cor da bola. Os companheiros não o conheciam - para não dizer que não o desejavam - e, além disso, o Conde estava fora da sua verdadeira posição, tendo de jogar bem na frente, na função do Valdo. No futebol de praia, ele era mais um ponta-de-lança. Presente nas finalizações, porém voltando bastante para buscar jogo.

Então o Zé praticamente se limitava a esperar passes que não vinham e a assistir ao treino dentro do campo. Num determinado momento, até olhou para o céu, onde havia nuvens negras. Correr atrás da defesa adversária para roubar a bola, nem pensar, pois não estava a fim de cair na roda como bobo, o que confessou depois a meu tio. Não que estivesse aborrecido com o boicote dos companheiros, mas também não fizera muita questão de vir tentar a sorte no Fluminense. Estava ali por circunstâncias, inclusive financeiras, e para ver como é que era. E via. O treino era chato; o calor, abafado, e o seu fôlego, comparado com o dos profissionais, era pouco.

Foi quando desabou uma tempestade e o treino virou pelada. Este foi o segundo acontecimento fundamental, naquela manhã, para a trajetória do Zé Augusto. A bola encalhava nas poças d'água, o gramado virava rapidamente lama, e os companheiros do Zé começaram não propriamente a destinar-lhe passes, mas a dar chutões para a frente, onde ele se encontrava posicionado. A defesa dos aspirantes começou a dar pixotadas, naturais nesse tipo de terreno, e, numa dessas, a bola espirrou e caiu no pé do Zé Augusto, na intermediária adversária. O que fazer? Em cancha encharcada, nada aconselha a trocar passes ou a correr com a bola. E o zagueiro responsável pela falha já vinha com tudo para cima do Zé.

Para quem estava acostumado com a areia fofa, apesar de nela jogar descalço, era simples: com o bico da chuteira, o Zé levantou a bola da lama, encobriu o zagueiro e deu uma corridinha para receber o passe dele mesmo lá na frente, já na entrada da área. O goleiro não teve remédio senão vir a seu encontro. Encurvado, abriu os braços para fechar o ângulo e fixou os olhos no atacante.
Até aí nada, porque era o que mandava a boa técnica. Só que o goleiro era ninguém menos que o Castilho, treinando entre os reservas para ser mais exigido pelo ataque do time principal. E o olhar e os braços enormes do Castilho, titular da seleção brasileira, pareciam o olhar feroz e as asas abertas de uma águia. Mas o grande goleiro se esqueceu de fechar as pernas, talvez porque fosse um simples treino; talvez porque tivesse diante de si apenas um novato desconhecido, a quem bastaria impor respeito.
Não que o Augusto quisesse desrespeitar o Castilho, mas respeito demais também não tinha, pois não acompanhava o futebol profissional de perto. As pernas abertas do outro estavam pedindo e o Zé enfiou a bola entre elas, porque era o caminho mais fácil para o gol. Um diretor entrou no vestiário e passou a informação ao Gradim: "O novato marcou um gol entre as pernas do Castilho".
O técnico veio assistir. A essa altura os titulares já encaravam o Zé Augusto com alguma consideração e queriam testá-lo de verdade, talvez para o desmascararem depois da petulância com o Castilho. Passaram-lhe uma bola entre duas poças d'água, outra vez na intermediária, pois o Conde estava recuando instintivamente para a sua verdadeira posição. Bom, primeiro era preciso tirar a bola da poça e ele tirou, com um toquezinho, para depois pisar sobre a pelota numa pequena elevação formada pela lama, parecida com aqueles montinhos de areia na praia. Descobrindo o ponta livre na esquerda, o Zé dirigiu-lhe um passe longo, pelo alto, como garantia de que chegaria ao seu destino. E correu para, possivelmente, receber a bola de volta na meia-lua da área.

O estilo do ponta-esquerda, o mineiro Escurinho, era o de pôr a pelota no chão e correr com ela, em grande velocidade. Mas, com o gramado naquelas condições, não dava. E o Escurinho, contrariando suas características, devolveu a bola de primeira, com a cabeça, para o Zé Augusto, que, penetrando entre os dois zagueiros de área, emendou com um chute seco, de sem-pulo. Não foi gol, porque a essa altura o Castilho já estava alertado, com os brios mexidos, e esticou-se todo, pondo a bola para escanteio e se esparramando na lama. Houve aplausos, dos poucos sócios e torcedores fanáticos que assistiam a treinos. Os aplausos, sem dúvida, eram mais para o Castilho, grande ídolo tricolor. Mas se o Castilho fora obrigado a empenhar-se numa defesa espetacular num reles treino, era porque alguém o obrigara a isso. E esse alguém era um novato com o apelido de Conde, como já começava a correr de boca a boca.

O treino havia virado jogo e talvez o Zé não soubesse disso. Porque pisou na bola de propósito sobre uma poça, esparramando água suja, apenas para confundir o zagueiro central dos aspirantes. Este não teve dúvidas: deu uma pregada no Zé, para castigar sua ousadia. O Conde deveria, pelo menos em tese, estar tomando sua primeira lição séria de futebol profissional: não brincar em serviço. Aquele zagueiro, sem qualquer força de expressão, estava defedendo o leite das crianças. Queria uma chance no time de cima e o Zé, assim, o ridicularizava. E nem olhou para o atacante se contorcendo no chão.

O técnico resolveu encerrar o treino, para não arriscar os jogadores a mais contusões naquela cancha encharcada, depois do que já acontecera com o Valdo e agora com o novato. O próprio Castilho estava se queixando de dores no ombro após aquele defesaço.
José Augusto, o Conde, saiu de campo mancando, mas, em poucos minutos, tinha marcado um gol de craque e obrigado o Castilho a sujar o uniforme todo de lama.

Os diretores do Fluminense sabiam que, às vezes, vinham olheiros de outros clubes aos treinos em Laranjeiras, entre outras coisas para aliciar jogadores sem contrato. Havia rumores de que o Tigela, técnico do Conde na praia, dera com a língua nos poucos dentes e de que o Vasco estaria interessado no Zé. Então, apesar de o Gradim pedir um pouco mais de tempo para observar o jogador, o diretor de futebol profissional mandou o Zé Augusto passar no dia seguinte no clube, para discutir as bases de um contrato. Pois não fora o Castilho mesmo, com muito espírito esportivo, que dissera ao novato no vestiário: "Rapaz, prefiro ter você no meu time do que nos outros"? E o fato é que, na tarde seguinte, o Zé telegrafou ao pai em São Paulo: "Arrumei um emprego. Vou ficar no Rio. Talvez vá até à Europa. Beijos na mãezinha".

Como fiquei sabendo disso tudo? Dessas últimas coisas por meu tio, mas, quanto ao treino, eu estava lá assistindo.

Sérgio Sant`anna é escritor, autor de Um Crime Delicado, entre outros