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A vida é sonho

Mirada, segundo ato. No primeiro, nosso protagonista, o teatro, atravessou cordilheiras, pampas, mares, rios e florestas como um personagem de uma História que muitas vezes se confunde com lendas que passam de boca em boca, viram verdades; verdades que viram histórias que viram sonhos.

“Que é a vida? Um frenesi,/Que é a vida? Uma ilusão;/Uma sombra, uma ficção/O maior bem é tristonho,/Porque toda a vida é sonho/E os sonhos, sonhos são.”(A vida é Sonho, Calderón de La Barca).

Os primeiros espetáculos de teatro na Espanha e Portugal eram cerimônias e textos litúrgicos, os atores eram os cônegos e diáconos. A introdução de textos profanos fez o teatro deixar os templos e passar para os palácios e mosteiros até chegar na praça pública e daí aos “corrales”, que eram locais fechados nas laterais e sem teto. No centro, um pátio, lugar mais barato e barulhento,  onde só homens podiam entrar; as mulheres ocupavam um lugar mais alto, de frente para o palco.

“– Essa barca para onde vai ora, que assi está apercebida?/-Vai para a ilha perdida, e há-de partir logo ess’ora.” (Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente).

Do lado de cá do Atlântico, os jesuítas iniciaram o teatro na forma que conhecemos. Fazia parte da encenação elementos da cultura indígenas e índios atores eram atores porém o objetivo era a evangelização. Em uma das peças, de José de Anchieta, “Recebimento que fizeram os índios de Guaramirim ao Padre Provincial Marçal Beliarte”, uma comédia, os demônios prometiam levar os pecadores para o inferno.

“– Dorme, meu rosal, cavalo começa a chorar. As patas feridas, a crina gelada, e dentro dos olhos um punhal de prata. Banharam o punhal no rio. Ai, como banharam! Oh, o sangue escorreu mais rápido que a água.” (Bodas de Sangue, Garcia Lorca).

Na primeira edição do Mirada, o teatro feito por brasileiros, argentinos, espanhóis, bolivianos, portugueses e grupos de vários outros países, mostrou-se forte, independente, criativo, generoso. Não só mostrando suas realidades a partir de seus autores nacionais, mas também encenando clássicos do teatro mundial, trazendo o mundo para dentro de casa.

Riso, choro, espanto, medo, dor, esperança, angústia, beleza, encanto e muito, muito mais veio na maré que inundou a cidade e trouxe o gosto e o cheiro de uma arte que está cada vez mais viva, cada vez fala mais à nossa inteligência e à nossa alma.

 “– Meus gritos se espalharam por toda a parte. Meus gritos batiam nas paredes, nos móveis, como pássaros cegos.” Valsa nº 6, Nelson Rodrigues).

Os palcos, as praças, as ruas de Santos serão ocupadas pela segunda vez por essa gente que quer fazer da vida um sonho: autores, atores, cenógrafos, músicos, público. O teatro será mais uma vez, aqui como em tantas partes do mundo, em todos os tempos, uma assembléia  onde se discute o mundo e a vida, duas peças sem enredo que se movem para o amanhã do amanhã, às vezes iluminadas por uma pequena vela; outras vezes, para nossa sorte, pelas luzes do teatro.

“– E como não consigo me lembrar dos sapatos, tua imagem aparece descalça na minha lembrança.” (Valsa nº 6, Nelson Rodrigues).

Luiz Ernesto Figueiredo (Neto), educador físico, é gerente do Sesc Santos