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Aposta na Relação de Jogo

De um lado, tudo começa horas antes do terceiro sinal, mais ou menos nesta sequencia imaginária: alguém sai de casa ou do local de trabalho, atravessa a cidade rumo a um encontro às cegas.  Quase às cegas; tem sempre a sinopse da revista, crítica do jornal, indicação daquele amigo, ou ainda a avaliação dos guias, que influencia a ida ao teatro. Munido de referências e relativamente disponível para o acaso, o público parte para uma experiência imprevisível, resguardado pelo anonimato e a penumbra da plateia, que só se iluminará quando tudo chegar ao fim.

Do outro, mais ou menos assim: atores, diretores, criadores de teatro que se reúnem em torno de um projeto em comum, de ideias sobre uma encenação ou a partir de uma criação anterior de algum autor conhecido, traçam esboços, pensam, organizam anotações, roteiros, desorganizam textos, para depois ensaios, e mais anotações, e ensaios, ajustes, processos abertos ao público, mais ajustes, depois estreia, e temporadas que virão pela frente. Geralmente levam meses entre a vontade de realizar e a realização de uma obra, mas podem passar anos até que tudo se conclua.

As duas pontas desta trama se encontram com hora e data marcada, mas ainda assim trata-se de um encontro imprevisível. Do heterogêneo grupo sentado na plateia, cada qual traz consigo expectativas, resistências e o que é próprio de sua subjetividade. Circunscrito à área cênica, e um tanto vulnerável, está o ator. Sua proteção: o que se dará ali é teatro. Nisto todos estão de acordo. 

Mas proponho aqui falar de um teatro especificamente, e deixar outros teatros, de outras tendências e emergências da dramaturgia contemporânea fora deste texto. É um teatro que de partida não pretende arrebatar. Suponho, o primeiro desejo é que nele se encontrem as duas partes fundamentais.

Segundo, sustentar um acordo, fazer valer um pacto mútuo, onde atores trarão a cena e o público terá que embarcar nela e em suas regras de embarque. Também é exigido do público que atente e desconfie do que se passa em cena, e de sua organização propositadamente precária, extremamente despojada. É uma aposta profunda na relação de jogo: atores jogam com o silencioso público, e não para este assisti-lo, passivamente.

Porque a plena realização desta dramaturgia depende de que um lado se mova em direção ao outro, para cruzarem a fronteira provisória da ilusão, porque esse teatro se faz como um jogo entre atores e público. O que não é dito e a ausência são dois importantes recursos com que se joga em cena. Essa dramaturgia se isenta do compromisso com a representação, e tampouco se articula a partir de conflitos, personagens, narrativas, ponto.

Tudo isto pode estar presente, em níveis e medidas que variam durante a função, mas não necessariamente. 

Criada como material vivo, imperfeito, modelar e inacabado, radicaliza procedimentos como a metalinguagem e a narrativa fragmentária. Toma de empréstimo das artes plásticas e da dança contemporânea boa parte desta postura. E é aberta para diferentes níveis de entendimento. 

De algum modo a opção de arquitetura da cena pressupõe um trajeto acidentado, já que em maior ou menor medida depende de fatores que podem lhe escapar a qualquer momento. É uma cena exigente. Diante dela o público é convocado a se liberar de ruídos e se envolver com a cena, descascar suas camadas superficiais.

Sobretudo, o público não pode esperar deste teatro o que comumente espera: que ele aconteça à revelia de sua presença. Parte de um trato que requer tanto cumplicidade, quanto a desconfiança permanente em relação ao que parece ser.

Às vezes não chega a acontecer para a maioria ali sentada. Às vezes, sim. Mas esse risco está implícito, e talvez seja um dos motores para a dramaturgia. Para que ela se refaça, amadureça, e se aproxime mais da vida que corre dentro e fora da sala. Passamos um bom tempo esperando passivamente, diante da cena ou da tela; de tal modo que nos acostumamos a receber algo pronto aos nossos sentidos. Já dessa cena contemporânea isto não se pode esperar.

Natália Nolli Sasso, jornalista, é técnica da programação do Sesc Belenzinho