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Palco do talento nacional

Em 1943, o dramaturgo Nelson Rodrigues renovou o teatro no Brasil com a peça Vestido de Noiva. A montagem – com texto do Anjo Pornográfico, direção de Zbigniew Ziembinski e cenografia de Tomás Santa Rosa – trouxe a modernidade para a cena teatral brasileira. Já as décadas de 1950 e 1960 marcaram a consolidação da dramaturgia nacional, com destaque para os autores Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho (o Vianninha), ambos do Teatro de Arena.

“A hegemonia do autor brasileiro só veio a se dar em 1958 quando o Teatro de Arena de São Paulo lançou Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, abrindo caminho para um grupo de jovens talentos”, disse o crítico Sábato Magaldi em conferência na Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (EAD-USP), em abril de 1996.

No entanto, esse florescimento da dramaturgia brasileira foi podado quando a ditadura militar decretou o Ato Institucional n° 5 (AI-5), em 1968, que restringiu de vez as liberdades no país. A censura instaurada sufocou os dramaturgos. Muitos, inclusive, foram perseguidos e exilados.

Com a abertura política, iniciada no governo do general Geisel em 1974, e o término da ditadura, em 1985, o teatro voltou a respirar. O período foi marcado pela hegemonia dos grandes encenadores-criadores – como Antunes Filho, José Celso Martinez Corrêa e Gerald Thomaz –, mas a produção de textos originais continuava escassa.

Na década de 1990, o vazio autoral gerado pela ditadura foi preenchido com uma safra de novos dramaturgos. Autores como Bosco Brasil, Fernando Bonassi, Mário Bortolotto e Samir Yazbek, entre outros, retomaram a produção nacional.

Além disso, a dramaturgia também encontrou voz em grupos como a Cia. dos Atores (dirigida por Enrique Diaz), o Teatro da Vertigem (do diretor Antônio Araújo) e a Companhia do Latão (dirigida por Sérgio de Carvalho), que passaram a produzir seus próprios textos por meio dos chamados processos colaborativos.

De maneira geral, consiste num projeto coletivo no qual o dramaturgo atua em permanente diálogo com o diretor e os atores, e sua criação vincula-se à pesquisa do ator, às improvisações e aos laboratórios do elenco sobre o tema escolhido. Atualmente a escrita para o teatro vai muito bem, obrigado. Autores como Claudia Schapira, Daniela Pereira de Carvalho, Grace Passô, Jô Bilac, Leonardo Moreira, Newton Moreno, Pedro Brício e Roberto Alvim, entre outros, vêm se destacando no cenário teatral com uma produção bem singular.

“Acho que [a dramaturgia brasileira contemporânea] anda bem pujante. Talvez seja um momento quase único na história recente do teatro brasileiro, porque realmente existe uma quantidade maior de textos originais sendo escritos. Existe também uma diversidade de tendências dentro dessa escrita”, explica o crítico teatral Luiz Fernando Ramos, professor do Departamento de Artes Cênicas da USP.

Ecletismo

Despertado para a dramaturgia quando, na década de 1990, cursava Artes Cênicas na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o autor, diretor e ator pernambucano Newton Moreno está por trás de algumas das peças que obtiveram mais êxito de público e crítica nos últimos anos. O ambiente universitário foi propício para a criação da companhia Os Fofos Encenam, surgida em 2000, da qual é um dos fundadores.

Com Agreste – dirigida por Marcio Aurelio – e As Centenárias – com atuação de Andréa Beltrão e Marieta Severo –, Moreno venceu o Prêmio Shell de Teatro de melhor autor, respectivamente em 2004 e 2007 (leia boxe Texto em Cena). Já Memória da Cana, de 2009, rendeu-lhe mais dois Shell: pela direção e pelo cenário do espetáculo.

Da companhia mineira Espanca!, Grace Passô alcançou projeção nacional em 2005 com Por Elise, montagem da qual é atriz, diretora e dramaturga. Pelo texto desse espetáculo, recebeu os prêmios Shell e da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). A peça integra a trilogia do grupo, composta ainda por Amores Surdos (2006) e Congresso Internacional do Medo (2008). Com o intuito de se reinventar, a trupe uniu esforços com o coletivo paulistano Grupo XIX de Teatro. A partir do processo de pesquisa das duas companhias, nasceu a montagem Marcha para Zenturo, cuja estreia ocorreu em 2010, com dramaturgia assinada por Grace e direção de Luiz Fernando Marques.

Saudado como um dos mais inventivos de sua geração, o diretor e dramaturgo Leonardo Moreira, de 29 anos, comanda o grupo paulistano Cia. Hiato. Em processo colaborativo com a trupe, escreveu a peça Cachorro Morto (da qual também é diretor), em 2008, que aborda o autismo. No ano seguinte, novamente em parceria com o coletivo, fez o texto e a direção de Escuro. Indicado em cinco categorias do Prêmio Shell, o espetáculo ganhou três troféus: autor, cenário e figurino.

A montagem trazia à cena temas como a cegueira, a dislexia e a surdez, chamando a atenção da crítica pela qualidade da dramaturgia e pela inovação da linguagem. Em seu novo espetáculo, O Jardim, o foco é a memória. Para isso discute questões como a doença de Alzheimer e a esquizofrenia. “A escrita do texto está intimamente ligada à construção cênica do espetáculo, com o texto falado no palco”, afirma o repórter do jornal O Estado de S. Paulo Guilherme Conte.

A atriz, diretora e dramaturga Claudia Schapira é uma das integrantes do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, criado em 1999. O grupo tem uma ligação umbilical com a cultura hip hop. Desde seu primeiro trabalho, Bartolomeu, o que Será que Nele Deu?, o coletivo se vale de elementos como o break e o DJ. Entre 2003 e 2004, desenvolveram o projeto Urgência nas Ruas, uma série de peças dirigidas e escritas por Claudia. A partir dessa experiência, surge Frátria Amada Brasil, livremente inspirada na Odisseia de Homero, para falar da busca de identidade do povo brasileiro.

O espetáculo recebeu o Shell de melhor música em 2006. Em sua mais recente obra, Orfeu Mestiço – Uma Hip-Hópera Brasileira, a trupe traz para o palco o mito de Orfeu, relacionando-o ao período da ditadura militar brasileira. “Acompanhando o trabalho de Bartolomeu ao longo dos anos, dá para perceber como essas três dimensões – de atriz, diretora e dramaturga – foram ‘contaminando’ a Claudia ao longo dos diferentes trabalhos”, diz Conte.

Moreno, Grace, Moreira e Claudia são exemplos de dramaturgos que atuam como encenadores. Além disso, em escalas e circunstâncias diferentes, também criaram a partir de processos colaborativos. “Com voz própria, passam a ser encenadores também e representam a emergência de um novo tipo de dramaturgo. Com esse ecletismo, que talvez seja a palavra para definir essa identidade de dramaturgo deles, eles têm a capacidade de dirigir grupos, espetáculos e compor suas dramaturgias”, analisa Ramos.

Buscas dramatúrgicas

Surgido em 1982 sob o comando do diretor Antunes Filho em parceria com o Sesc, o Centro de Pesquisa Teatral do Sesc (CPT/Sesc) vem desempenhando um importante papel tanto na busca por novas estéticas teatrais quanto na formação de atores, criadores cênicos e técnicos (leia boxe Espaço da criação). A partir de pesquisas do núcleo dramatúrgico do grupo surgiu, por exemplo, a série de espetáculos Prêt-à-Porter, que continua sendo encenada até hoje.

Além disso, em 1999, Antunes iniciou e coordenou o Círculo de Dramaturgia do CPT. A empreitada resultou no livro Círculo de Dramaturgia (Edições Sesc, 2005), composto por cinco textos teatrais, entre eles O Canto de Gregório, de Paulo Santoro, e O Céu Cinco Minutos antes da Tempestade, de Silvia Gomez. Ambas as peças foram montadas pelo grupo.

“O CPT possibilita aos integrantes do Círculo de Dramaturgia perfeito trânsito em outras áreas criativas, especialmente junto ao Núcleo dos Atores, além dos núcleos de cenografia e de iluminação. Assim, a teoria e a prática caminham entrelaçadas, em mútua e permanente interação”, avalia o crítico Sebastião Milaré.

No entanto, por acreditar que a dramaturgia (brasileira e mundial) está num beco sem saída, precisando encontrar novos caminhos a serem trilhados, Antunes decidiu interromper as atividades do Círculo de Dramaturgia.

Enquanto isso, o diretor e o grupo tentam achar respostas. “Ando realmente com um problema muito sério com dramaturgia. Eu quero irromper com um campo novo. Mas que campo novo é esse? Há a necessidade de fazermos uma nova dramaturgia, e que realmente possa interessar à sociedade brasileira”, ressalta Antunes.

Para a jornalista e dramaturga Marici Salomão, há diversas iniciativas de fomento à dramaturgia no Brasil desde os anos 2000.

O Núcleo de Dramaturgia Sesi-British Council e o curso de Dramaturgia da SP Escola de Teatro, ambos coordenados por ela, podem ser exemplos de projetos que visam à formação de novos dramaturgos. “São cursos mais longos, com caráter formativo no campo da técnica, da teoria e da prática, e que, apesar de novos ainda, com dois ou três anos de existência, apresentam trabalhos maduros de gente que quer realmente fazer da dramaturgia ofício”, aponta a coordenadora. O dramaturgo Gustavo Colombini, por exemplo, surgiu do Núcleo de Dramaturgia Sesi-British Council e foi indicado ao Prêmio Shell de melhor autor por O Silêncio depois da Chuva, em 2012.

Diversidade autoral

Entre 2005 e 2007, o diretor e dramaturgo Roberto Alvim tornou-se diretor artístico do Teatro Ziembinski, no Rio de Janeiro. Nesse período, buscou dar espaço para a nova safra da dramaturgia brasileira. A iniciativa permitiu que jovens como Daniela Pereira de Carvalho e Pedro Brício, entre outros, emergissem na cena dramatúrgica contemporânea. A empreitada ganhou outro contorno quando Alvim se mudou para São Paulo, uniu-se à atriz Juliana Galdino e criou o Club Noir, com o intuito de encenar prioritariamente autores contemporâneos (brasileiros e estrangeiros).

Entre as peças encenadas pela companhia, destacam-se as montagens de O Quarto, do irlandês Harold Pinter, e Anátema, cujo texto é do próprio Alvim. Uma das marcas registradas do encenador é o uso que faz da iluminação, de modo que a escuridão domina a cena.

Com 39 anos, é autor e diretor de 18 peças – montadas no Brasil, Argentina, Suíça e França –, e sua obra já foi traduzida para o francês e o grego, entre outras línguas. Segundo Ramos, na capital paulista a obra de Alvim tornou-se muito mais singular e radical em relação à fase carioca. “Podemos dizer que ele busca novas possibilidades de construção da cena, com o intuito de oferecer um outro tipo de experiência ao seu espectador”, fala Ramos.

Formada em Teoria do Teatro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (Unirio), em 2002, Daniela Pereira de Carvalho começou sua carreira de dramaturga junto ao grupo Os Dezequilibrados. Em 2006, assinou a dramaturgia de Renato Russo. No mesmo ano, foi indicada ao Prêmio Shell de melhor autor pelo texto de Não Existem Níveis Seguros para Consumo destas Substâncias. Nascido no Rio de Janeiro em 1972, Pedro Brício tem tido destaque como dramaturgo, diretor e ator.

Com A Incrível Confeitaria do Sr. Pellica, recebeu o Prêmio Shell de melhor autor em 2005. Outro carioca que vem arrebatando crítica e público é Jô Bilac. Com a particularidade de fazer a chamada dramaturgia de gabinete, em que o autor compõe isoladamente seus textos para depois serem montados por alguma companhia, Bilac conquistou o Shell de autor por Savana Glacial, em 2011.

De um modo geral, os dramaturgos que mais se destacam na atual cena brasileira abordam os mais variados temas e possuem características formais bem singulares. “É muito difícil falar de similaridades entre os autores contemporâneos. Essa produção não configura um movimento, no sentido de ter uma tendência. De qualquer maneira, é uma geração que, sim, vem com outros paradigmas de escrita”, opina a professora da Escola de Arte Dramática da USP Silvana Garcia, coordenadora da revista teatral A[l]-berto e integrante do corpo docente da Cátedra Itinerante de Teatro Latino-Americano.


Texto em Cena

Saiba mais sobre alguns dos espetáculos bem recebidos pela crítica nos últimos oito anos

Agreste
Escrita por Newton Moreno e dirigida por Marcio Aurelio, a montagem trata da vida de um casal de lavradores no sertão nordestino. Após a morte do marido, a mulher acaba sendo vítima do preconceito e da intolerância. O espetáculo traz a temática do homoerotismo e é narrado e interpretado pelos atores João Carlos Andreazza e Paulo Marcello. Em 2004, a peça recebeu da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) os prêmios de melhor espetáculo e melhor ator. No mesmo ano, Moreno ganhou o Shell pelo texto.

Escuro
Um menino míope com uma estranha capacidade de ouvir segredos passa suas tardes mergulhando na piscina de um clube. Uma senhora recebe a costureira para aulas de natação – sem uma piscina, elas usam pequenas tigelas cheias de água. Um homem convive com a perda da fala enquanto ensaia seu discurso em aquários vazios.

Uma professora prepara sua aluna para um torneio esportivo para deficientes. Dislexia, surdez e cegueira são alguns dos elementos trazidos à cena, permeada por relatos do neurologista Oliver Sacks. Com direção e dramaturgia de Leonardo Moreira, da Cia. Hiato, o espetáculo foi indicado em cinco categorias do Prêmio Shell 2010 – conquistando os troféus de figurino (Theodoro Cochrane), cenário (Marisa Bentivegna e Leonardo Moreira) e autor (Leonardo Moreira).

A Incrível Confeitaria do Sr. Pellica
Dono de uma confeitaria decadente do século 18, Pellica é um confeiteiro que deposita sua esperança em um concurso de tortas para reerguer seu empreendimento. Sem recursos para a empreitada, um burguês lhe oferece dinheiro em troca da mão de sua filha. Escrita e dirigida por Pedro Brício, da Zeppelin Cia., em 2005 a peça recebeu o Prêmio Shell de autor e figurino (Rui Cortez).

Savana Glacial
Isolada em seu apartamento com o marido, a personagem Meg sofre de perda de memória recente. A vizinha Agatha invade a privacidade do casal, criando um jogo de verdades e mentiras. Apresentada pelo Grupo Físico de Teatro, do Rio de Janeiro, a montagem é fragmentada como a mente da protagonista. Com direção de Renato Carrera e dramaturgia de Jô Bilac, a peça foi premiada com o Shell de melhor autor em 2010.

Por Elise
Com este espetáculo, o grupo Espanca! estreou em 2005. Em cena, uma dona de casa que narra a história de seus vizinhos; um cão que late palavras; um lixeiro em busca de seu pai desaparecido; uma mulher perdida; um funcionário que deseja ir ao Japão e trabalha recolhendo cães doentes. Os encontros se desenham em um palco vazio, onde os caminhões de lixo anunciam suas chegadas com a música Pour Elise, de Beethoven. A peça rendeu, em 2005, o Prêmio Shell de melhor dramaturgia para Grace Passô, além de melhor texto teatral da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

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