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As novas tecnologias e as "nossas" tecnologias
Entender o termo “tecnologia” como ele é vendido é quase automático. Tem a ver com usar resultados de métodos científicos para facilitar a vida prática. Quem assim o compra espera nada mais que a pura reprodução eficaz, sempre garantindo o que foi planejado, sem desvios, sem erros, sem surpresas.
Já na reflexão sobre cultura, as certezas são relativizadas e o mesmo termo é sucessivamente ressignificado. A própria proposta de associar a ciência (movida a controvérsias e rupturas de paradigmas) às circunstâncias do dia-a-dia condena a tecnologia à imperfeição, à errância, à humanidade.
Daí, a proposta de pensar práticas em tecnologias em um universo menos definido e mais experimental, à qual se dispõem há séculos filósofos, artistas, hackers e outros interessados. Um desafio, neste contexto, é buscar coerência para ações classificadas como Cultura Digital nas unidades do Sesc, perpassando a obrigatoriedade pretensiosa de teorizar sobre a nossa relação com as máquinas.
Na última década, acompanhei práticas pontuais ou cotidianas de muitos que frequentaram os espaços do Programa Internet Livre do Sesc. Vivenciei mobilizações de grupos para diferentes causas. Participei de encontros de pesquisadores e artistas que declaram focar seus processos criativos em experimentações tecnológicas. Pude identificar a movimentação recente de instituições culturais e educativas públicas e privadas relativas à incorporação e gestão das tecnologias de informação e comunicação em suas programações, currículos ou no atendimento ao público.
Também, as práticas de conhecidos, parentes e colegas demonstraram que, para além do discurso homogêneo do marketing das inovações, são infinitas as questões, maneiras e abordagens práticas e reflexivas envolvendo a tal tecnologia.
Conheci um engenheiro de softwares que se recusa a fazer compras pela internet, um psicólogo que faz questão de transformar seus teclados avariados em brinquedos infantis, um ativista indígena que prega a filosofia do código aberto à população ribeirinha do Amazonas, uma cantora a gravar um single com seu músico preferido após dois anos de campanha em um site de financiamento colaborativo, e um senhor de 70 anos premiado ao transformar seus diários de poemas à mão em um blog.
Vi um grupo de amigos se tornar produtora de vídeo após o download de um programa de edição não linear; um núcleo de pesquisa relacionar imagens de softwares específicos com visões dos xamãs yanomami, um coletivo de técnicos manter um galpão de reciclagem de lixo eletrônico em um shopping de São Paulo, e pessoas que se declaram artistas por exporem relógios que não marcam as horas, calculadoras que erram as contas, rádios que não sintonizam, TVs usadas como telefones...
Ao mesmo tempo, institucionalizamos debates amplos sobre linguagem eletrônica e artemídia, apropriação tecnológica versus “inclusão digital”, lan houses, compartilhamento e autoria, educação e games eletrônicos, urbanização e mídias locativas...
São exemplos recortados arbitrariamente da complexidade cultural atual (por pessoas, coletivos e instituições) que podemos ou não reunir em um campo fértil para o trabalho educativo. Reuni-los é praticar uma escolha por um olhar específico sobre um aspecto importante da cultura contemporânea. Não fazê-lo é correr o risco de ignorar e desconsiderar a relevância de um possível debate social, cultural e político sobre as nossas tecnologias, aquilo que produzimos para nós mesmos.
Opor-se a essa escolha não é negá-la ou questioná-la, mas seguir reproduzindo padrões de comportamento e consumo baseados no deslumbre constante sobre o que se passou a chamar de “novas tecnologias”. Generalizá-las como “novas” e relacionar a tecnologia (e a internet) ao futuro “virtualiza” e esvazia a discussão política como se ela supostamente não estivesse acontecendo, sugerindo que ela ainda está por vir: enquanto isso, em nossos instantes de deslumbramento, as regras do jogo são definidas para nós... Em instâncias alheias.
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