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A fórmula da boa imagem

por Evanildo da Silveira

Dentre todas as ciências, sem dúvida a química é a que tem a pior reputação. Para muitas pessoas, ela está associada a armas de destruição em massa, poluição, produtos perigosos ou a alimentos que fazem mal. Sem falar que é o terror dos estudantes, que veem nela uma matéria difícil, cheia de fórmulas e cálculos impossíveis de entender e resolver. Como se não bastasse, ainda perde em popularidade para os grandes projetos e descobertas nas áreas de física, biologia, medicina. Com o objetivo de melhorar a imagem dessa área do conhecimento e ressaltar seu lado “mocinho”, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a União Internacional de Química Pura e Aplicada (Iupac, na sigla em inglês) estabeleceram 2011 como o Ano Internacional da Química (AIQ). As comemorações incluem uma série de eventos pelo mundo – no Brasil haverá seminários, exposições itinerantes e lançamentos de livros e outras obras.

A realização do AIQ começou a ser articulada em 2006, durante uma reunião do Comitê Executivo da Iupac. Dois anos depois, a 63ª Assembleia Geral da ONU estabeleceu que a comemoração deveria ocorrer em 2011. Seu lançamento oficial, com o tema “Química para um Mundo Melhor”, ocorreu no dia 27 de janeiro deste ano, na sede da Unesco, em Paris. No Brasil, o AIQ foi lançado em 23 de março passado, na Academia Brasileira de Ciências (ABC), no Rio de Janeiro. Outros cerca de 60 países também terão uma extensa programação para marcar o AIQ. Os objetivos são semelhantes em todos eles. “A meta é conscientizar a população mundial sobre a importância da química em nossa vida, além de estimular o interesse entre os jovens por essa ciência, fundamental no desenvolvimento sustentável da humanidade”, explica Claudia Rezende, tesoureira da Sociedade Brasileira de Química (SBQ) e coordenadora do evento no Brasil.

O ano de 2011 também foi escolhido como uma homenagem ao centésimo aniversário do Prêmio Nobel de Química concedido à cientista nascida na Polônia Maria Sklodowska, que mais tarde fez carreira na França e ficou mundialmente conhecida como Marie Curie. Ela foi contemplada pela descoberta dos elementos químicos rádio e polônio. “Por isso, é uma excelente oportunidade para celebrar as contribuições das mulheres para a ciência”, diz Claudia. “Além disso, em 2011 comemora-se o centésimo aniversário da fundação da Associação Internacional das Sociedades de Química, uma bela chance para exaltar a importância da colaboração científica internacional.”

Para a comunidade dos pesquisadores não há como questionar a justiça da homenagem a Marie Curie. Sua estatura como cientista pode ser medida pelo fato de que o Nobel de 1911 não foi o seu único. Em 1903, ela já havia sido laureada com o de Física, junto com o marido, Pierre Curie, e Antoine Henri Becquerel, pelos estudos pioneiros em radiatividade. “Foi a primeira mulher na história a receber um prêmio desses”, lembra o químico Henrique Eisi Toma, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP). “Com o de 1911, tornou-se a primeira pessoa a ganhar dois prêmios Nobel.” E mais: ela também foi a única a ser laureada em duas áreas diferentes da ciência. Linus Pauling recebeu igualmente dois, mas um deles foi o da Paz, em 1962, por sua luta contra os testes com armas nucleares – em 1954, ele havia ganhado o de Química.

Idade da Pedra

Homenagens à parte, o AIQ também tem o objetivo de ressaltar que a compreensão da humanidade sobre a natureza material do mundo está baseada, principalmente, no conhecimento de química. Por essa razão, a educação nessa ciência é fundamental para enfrentar questões desafiadoras como a mudança climática global, a oferta sustentável de água potável, de alimentos e de energia e a manutenção de um ambiente saudável para o bem-estar das pessoas. “Sendo contundente, eu diria que, sem ela, este seria um mundo sem materiais sintéticos, o que significa sem telefones, sem computadores e sem cinema”, diz César Zucco, presidente da SBQ. “Seria também um mundo sem aspirina ou detergentes, xampus ou pastas de dentes, cosméticos, contraceptivos, colas, tintas e papel – e, assim, sem jornais ou livros. Enfim, onde estaríamos sem química? Lá, na Idade da Pedra. E a vida seria chata, curta e dolorida.”

Para tentar convencer as pessoas disso, a SBQ planejou uma série de atividades que serão realizadas ao longo de todo este ano. A partida foi dada, na verdade, em 2009, quando foi elaborado um projeto com inúmeras ações de divulgação. O primeiro passo foi a criação do portal na internet www.quimica2011.org.br para tornar pública a programação. Também está sendo produzido um DVD com experimentos de baixo custo para a sala de aula do ensino fundamental e médio, cuja primeira parte pode ser baixada nesse mesmo portal. Há ainda uma coleção de sete e-books (livros digitais), que tratam de vários temas, como a química no amor, na energia, nos esportes, na natureza, na saúde, nos alimentos e nos cosméticos, alguns dos quais também já estão disponíveis para download. “Em janeiro de 2011, lançamos outro projeto ousado”, revela Claudia. “A cada dia, durante todo o ano, será publicada no portal do AIQ uma entrevista com um profissional da área, que responderá perguntas sobre sua carreira e relação com essa ciência.”

Entre as atividades planejadas do AIQ para o Brasil estão também exposições, entre elas a que leva o título de “O que é a Química?” Composta por 20 cartazes com textos e ilustrações, acompanhados de um manual de experimentos para interatividade, ela já está ocorrendo em Goiás, Alagoas, Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina e Rio de Janeiro. Além dela, foi inaugurada em abril a mostra “Elementar – A Química que Faz o Mundo”, no Museu da Vida da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. Junto com os tradicionais painéis, são apresentadas atividades interativas, com destaque para uma grande tabela periódica, e outras com produção de imagens em 3D, montagem de moléculas e brincadeiras que envolvem os conceitos dessa ciência. “O objetivo é chamar a atenção para a importância e o encantamento da química, com destaque para o fato de ela estar presente em todos os campos do conhecimento”, diz Claudia.

No fundo, o que se quer com tudo isso é atrair o interesse dos jovens pela química. Não é tarefa fácil, no entanto. Quem lida com eles todos os dias na sala de aula sabe bem disso. Que o diga a professora Ana Luiza Petillo Nery, que dá aulas da matéria no ensino médio há dez anos, na Escola Vera Cruz, um colégio particular de São Paulo. “Devido ao grande volume do conteúdo trabalhado, muitos alunos não conseguem perceber que os fenômenos químicos estudados em classe são os mesmos que nos rodeiam”, lamenta Ana Luiza. “Em geral, eles concebem a química como uma ciência restrita às quatro paredes da sala de aula.”

As dificuldades não param por aí. A existência numa mesma turma de grupos heterogêneos de estudantes, com interesses e habilidades distintas, é outro obstáculo. “Em geral, dou as aulas para a média, mas isso compromete o trabalho com os extremos inferior [alunos com mais dificuldades] e superior [aqueles que podem produzir mais]”, reconhece a professora. “Em minha opinião, os da ponta superior são, muitas vezes, os mais prejudicados, pois quem ensina tende a se preocupar muito com aqueles que apresentam maior dificuldade. Os que sabem mais ficam meio de lado, sem desafios que os façam progredir e se interessar ainda mais pela matéria.”

Trilhões de dólares

Aqueles que conseguirem superar essas dificuldades, no entanto, e enveredarem pela carreira na área vão ingressar num mundo de oportunidades profissionais, tanto em universidades e instituições de pesquisa como em empresas. Segundo o professor Fernando Galembeck, do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (IQ-Unicamp), essa ciência tem um papel central em quase todos os setores da economia, como indústria, agropecuária e serviços. “O negócio químico global movimenta US$ 3,7 trilhões por ano”, diz. “A indústria dessa área está concentrada nos países mais ricos, mas cresce rapidamente nos emergentes, principalmente no grupo Bric [Brasil, Rússia, Índia e China].”

Galembeck sabe do que está falando. A exemplo do Produto Interno Bruto (PIB), a indústria química nacional também é hoje a oitava maior do mundo. “Em 2010, o faturamento líquido do setor alcançou US$ 130,2 bilhões”, informa Fernando Figueiredo, presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim). A meta agora é figurar entre as cinco maiores do mundo ao final desta década. O setor é o quarto em participação na formação do PIB industrial e emprega diretamente cerca de 400 mil pessoas, a maior parte com alta qualificação.

São trabalhadores que atuam em cerca de 3 mil indústrias de pequeno, médio e grande porte espalhadas pelo Brasil. “A produção é extremamente diversificada, abrangendo de especialidades a commodities”, diz Figueiredo. “No segmento de produtos químicos para uso industrial, representado pela Abiquim, houve crescimento de 5,8% em 2010, em relação ao ano anterior.” Ainda de acordo com ele, no ano passado o país exportou US$ 13,1 bilhões, 25,3% mais que em 2009. Apesar disso, com o aumento ainda maior das importações, o déficit na balança comercial brasileira de produtos químicos chegou a US$ 20,6 bilhões, valor 31,5% superior ao apurado em 2009, o segundo maior da história nacional.

Esse é um problema que não tira, no entanto, o otimismo do setor industrial. “O crescimento econômico previsto para o Brasil nos próximos anos elevará fortemente a demanda por produtos químicos”, diz Figueiredo. Com efeito, o Pacto Nacional da Indústria Química, estudo realizado pela Abiquim em 2010, já apontava um potencial de investimentos no setor, até 2020, de US$ 167 bilhões. “Os benefícios decorrentes desses recursos são muitos, mas cabe destacar a geração de 2 milhões de empregos diretos e indiretos, o estímulo a outros setores da economia, como o de bens de capital, e a aplicação em pesquisa, desenvolvimento e inovação”, enumera o presidente da Abiquim. “Acrescente-se a esse quadro a necessidade de agregar valor ao petróleo e ao gás a extrair do pré-sal e de aproveitar a potencialidade da biomassa para a criação de uma indústria de base renovável, o que poderá levar o país à liderança mundial em química verde.”

Nessa área, o ex-presidente da SBQ, Jailson Andrade, diz que um caso de sucesso que sempre merece ser citado é o do etanol combustível. “O Brasil é hoje a única nação no mundo que fabrica combustível líquido a partir de fontes renováveis a preços competitivos em relação aos derivados de petróleo e sem qualquer subsídio”, explica. Segundo Andrade, que é pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA), atualmente são produzidos mais de 25 bilhões de litros de etanol por ano, a partir de cana-de-açúcar, o que dá em média 5,2 mil litros por hectare, a um custo menor que US$ 0,60 por galão (3,78 litros). “Uma tonelada de cana rende cerca de 70 litros de etanol e 250 quilos de bagaço, cujo aproveitamento, quando otimizado, poderá dobrar a produção de álcool sem ampliação da área plantada”, prevê. “Um avanço recente é o uso desse combustível para a fabricação de polietileno. Com isso o país é o primeiro a produzir plástico a partir de fonte renovável. Ou seja, é pioneiro na era do ‘plástico verde’.”

Posição consolidada

No campo acadêmico, o Brasil também está bem no setor químico. “Atualmente, a pesquisa nacional nessa ciência está consolidada e abrange praticamente todas as suas subáreas, com destaque para materiais, energia, alimentos, medicamentos e ambiente”, assegura Andrade. De acordo com ele, os pesquisadores químicos brasileiros têm o respeito de seus colegas de outros países. Eles publicam seus trabalhos nos periódicos mais importantes da área e muitos têm posição destacada no corpo editorial de vários veículos estrangeiros. Além disso, têm participação expressiva em conferências no exterior e, por outra parte, são também numerosos os estrangeiros altamente qualificados nas reuniões anuais da SBQ e em congressos temáticos no Brasil.

Galembeck lembra algumas colaborações e descobertas feitas por químicos brasileiros ao longo da história. Entre eles, cita Giuseppe Cilento, que criou toda uma área de investigação, a “fotoquímica sem luz”; Ricardo Ferreira, que entre outras contribuições elaborou o conceito de eletronegatividade de orbital; Otto Gottlieb, que produziu uma imensa quantidade de informação fitoquímica; Pawel Krumholz, inventor de um processo de fracionamento de terras-raras (hoje em grande demanda) patenteado nos Estados Unidos. “Esses são da geração anterior à que deu início ao crescimento exponencial da química no Brasil”, explica. “Cada um deles teve vários discípulos e é ‘avô-doutor’ de muitas dezenas e mesmo centenas de pesquisadores ativos.”

Saber com exatidão o número desses profissionais não é possível. Alguns indicadores, no entanto, podem dar uma ideia. Segundo Zucco, da SBQ, de 2005 a 2009 formaram-se 14,2 mil bacharéis e 13,15 mil professores. Em 2009, havia cerca de 1,3 mil pesquisadores atuando nos programas de pós-graduação em química do país, que foram os que mais cresceram entre as ciências exatas nos últimos 15 anos. Hoje, são formados mais de 500 doutores por ano. “Esses números são parciais, mas permitem que tenhamos uma ideia, ainda que superficial, do contingente de químicos no Brasil”, diz Zucco. “A pergunta que cabe é se esse número é suficiente para as necessidades socioeconômicas nacionais. E a resposta é não. É por isso que o AIQ tem como objetivo, também, atrair jovens para a carreira.”

Apesar dos dados positivos gerais, a química tem alguns desafios a superar no país. Para Toma, da USP, um deles é a falta de parcerias das instituições de pesquisa com o setor produtivo. Ao contrário do que ocorre em nações desenvolvidas, são raros os investimentos em pesquisa de empresas em conjunto com universidades, mesmo com os incentivos fiscais existentes. “Contribui para isso a falta de diálogo, a baixa aplicação de recursos em pesquisa e inovação, o excessivo imediatismo, que acaba cortando projetos de médio e longo prazo, e a falta de valorização de profissionais mais qualificados, com mestrado ou doutorado”, diz. “Além disso, pesa também o desconhecimento das vias existentes de apoio à pesquisa em parceria com a universidade, e a baixa qualificação da maioria dos profissionais que atuam no mercado.”

Andrade, da UFBA, aponta outros gargalos que precisam ser resolvidos. Um deles é o pequeno número de novos professores de química, tendo em vista as necessidades do país. Além disso, os cursos de graduação continuam diplomando químicos voltados prioritariamente para programas de pós-graduação, enquanto estes preparam mestres e doutores para atuar, principalmente, no setor acadêmico. Segundo ele, é necessário reforçar a ligação entre a formação de químicos e o desafio educacional do Brasil, bem como estimular o aumento do número de mestres e doutores empreendedores e conectados com os desafios do setor industrial. Este, por sua vez, também tem obstáculos a vencer. O maior deles é a transição para a sustentabilidade. “É necessário migrar do uso intensivo de energia fóssil para a renovável, da grande utilização de matérias-primas para a reciclagem e o reúso”, explica. “Para isso, o desenvolvimento de empresas de alto conteúdo tecnológico é urgente”, conclui o pesquisador.