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Dores repetitivas do mundo moderno

por Silvia Kochen

Muita gente hoje reclama de dores crônicas. O que poucos sabem, porém, é que elas podem se tornar um problema sério e até incapacitar uma pessoa. A principal origem desse problema é a forma como o trabalho é organizado – por exemplo, com o espaço disposto de forma inadequada ou com movimentos repetitivos sem a necessária pausa –, tema de estudo de uma ciência chamada ergonomia. Se não houver prevenção, as probabilidades de ocorrer um acidente sério crescem e as dores crônicas tendem a se intensificar, até provocar uma doença cada vez mais comum em todo o mundo: a LER-Dort (sigla de lesões por esforços repetitivos – distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho).

Dor, perda de força, queimação nos ossos, dificuldade de movimentação, edema, câimbras, choques, dormência e formigamento são os sintomas mais típicos da LER-Dort. Com o passar do tempo, eles passam a se manifestar com maior frequência. Chega um dia em que a vítima da doença não pode mais se acomodar com conforto ou segurar um objeto com firmeza e, então, descobre que está incapacitada para o trabalho. E também para a vida, já que não consegue nem mesmo erguer uma xícara, fazer compras no supermercado... Em geral, demora muito até que isso aconteça e, exatamente por isso, as pessoas deixam de se preocupar com a prevenção.

Os primeiros casos de LER-Dort foram relatados no século 18, mas a incidência desse mal vem aumentando muito em todo o mundo nas últimas décadas. O motivo é a mudança nos processos de trabalho, diz a engenheira Maria de Lourdes Moure, auditora fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego e doutora em ergonomia. “Todo trabalho tem um risco potencial, que deve ser controlado”, explica ela. Por isso, quando se verificam muitos casos de LER-Dort em um tipo de atividade, acabam-se adotando normas que minimizem o risco. “Cada vez, porém, que se introduz uma nova tecnologia, muda o alvo da LER-Dort”, alerta a especialista.

Ela dá o exemplo do setor bancário. Antes, funcionários da área de processamento de dados e caixas eram vítimas desse problema, pois passavam praticamente toda a sua jornada de trabalho digitando. Atualmente, o mais comum é que o próprio cliente faça essa tarefa ou os caixas eletrônicos leiam os códigos de barras, e com isso o risco passou para o pessoal encarregado da compensação dos cheques, o “trabalho de retaguarda”.

Há, no entanto, uma série de outras doenças causadas pela forma como o trabalho é organizado. Costureiras, por exemplo, mostram acentuada tendência a apresentar cistite, porque são muito pressionadas por metas e têm dificuldade de parar para ir ao banheiro. Vendedoras, que ficam muito tempo em pé, costumam desenvolver varizes... Na verdade, no mundo atual do trabalho, a LER-Dort é, de longe, a doença que ataca mais vítimas.

Questão política

Muitos especialistas denunciam que os problemas de saúde causados por processos de trabalho ultrapassam a questão da tecnologia e entram no campo político. Um deles é o médico Laerte Sznelwar, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) e pesquisador e consultor nas áreas de ergonomia e psicodinâmica do trabalho. “Desde os anos 1980, houve uma intensificação do ritmo das atividades laborais”, diz o médico. Ele lembra que, nessa época, as empresas começaram a reduzir os quadros de pessoal e hoje frequentemente exigem das pessoas mais do que elas podem dar. O resultado é o aumento de doenças relacionadas ao trabalho e até mesmo de casos fatais – como o de boias-frias que morrem devido a exaustão extrema, fato de que só se tem notícia recentemente.

“Nosso grande desafio é adaptar o trabalho a todas as pessoas ou, pelo menos, à maioria delas, já que há diferenças individuais”, afirma o médico. Segundo Sznelwar, o entrave está na pressão por produção e na recusa da alta hierarquia corporativa em admitir os problemas. Ele observa que quando o trabalhador sofre um acidente ou adquire uma doença profissional normalmente isso ocorre porque o equipamento não é adequado, mas o empregador costuma alegar que a culpa é da vítima, que “não operou direito” a máquina.

O pesquisador acredita que nas empresas existe um predomínio da visão mecanicista do trabalho. Em consequência, os funcionários são divididos entre os que projetam e os que executam, algo que surgiu no século 19, e as empresas só dão atenção ao aspecto do equipamento e mobiliário, recusando-se a repensar a forma como as tarefas são organizadas. Mais recentemente, até mesmo o setor de serviços passou a ser projetado como uma linha de produção, onde cada um é pressionado pelos chefes a obter mais resultados. Embora o sujeito que trabalha em uma central de telemarketing, por exemplo, não faça movimentos repetitivos, ele fica muitas horas numa mesma postura, o que é prejudicial e desconfortável. “É preciso se mexer, pois o corpo humano foi feito para isso”, ressalta Sznelwar. Assim, fica difícil avaliar a extensão dos problemas de saúde causados por erros de ergonomia, já que qualquer queixa pode ser interpretada como insubordinação.

Sznelwar revela que quando se pergunta se há algum desconforto ou dor, 70% dos trabalhadores afirmam que sim, mas nunca tinham ido ao médico e temiam ser demitidos caso o fizessem. Por isso, só quando a dor ultrapassa o limite do suportável é que as pessoas procuram auxílio, e aí pode ser tarde demais. Isso explica por que apenas 11% dos afastamentos do trabalho são registrados como causados por problemas relacionados a LER-Dort, segundo o médico. “Essa, no entanto, é apenas a ponta do iceberg.”

Debaixo do tapete

“Há uma batalha silenciosa em torno do reconhecimento das doenças profissionais no Brasil, e a maior parte das questões importantes fica escondida debaixo do tapete”, afirma Carlos Aparício Clemente, vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco e Região e coordenador do Espaço da Cidadania, uma organização voltada à inclusão de portadores de deficiência no mercado de trabalho. Clemente explica que, até a década de 1980, a LER-Dort não aparecia nos registros do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), pois todos os casos desse tipo eram tratados genericamente como “problemas de coluna”. Seu sindicato lutou pelo reconhecimento do problema como doença profissional, pois isso implicaria não só benefícios previdenciários melhores para os funcionários atingidos como também argumentos para negociar melhorias no ambiente de trabalho.

Em 1989, havia apenas quatro registros de doença profissional entre os 17.987 acidentes de trabalho – que englobam acidentes típicos (no ambiente profissional propriamente dito), acidentes de trajeto e doenças laborais – ocorridos na região de Osasco. “Naquela época, não havia internet e era difícil conseguir esses dados”, conta Clemente. Por isso, o sindicato fazia uma espécie de “caça aos registros” dos benefícios, diretamente nos postos do INSS.

O número de acidentes de trabalho era enorme até meados de 1991 e cai bruscamente a partir daí. Clemente atribui essa queda a uma série de mudanças no mundo laboral, trazidas pela Constituição Federal de 1988, que mudou a Previdência Social, reduziu a jornada de trabalho e instituiu a participação dos trabalhadores nos lucros e resultados das empresas.

O sindicalista explica que antes da lei 8.213, que entrou em vigor em julho de 1991, o INSS era o responsável pelo pagamento dos benefícios a acidentados logo que se iniciava o afastamento. A partir daí, a empresa passou a assumir esse encargo durante a primeira quinzena da licença médica. Como a grande maioria dos afastamentos é de poucos dias, teve início uma resistência por parte dos empregadores a notificar os acidentes, o que resultou na queda de ocorrências. Além disso, ressalta Clemente, com a redução da jornada de trabalho – de 48 horas para 44 horas semanais – e a introdução de novas tecnologias nas fábricas para fazer frente ao processo de globalização iniciado no governo Collor, houve intensificação da produção, o que tornou o ambiente de trabalho ainda mais insano.

Na opinião do sindicalista, um dos maiores problemas atualmente é a questão dos acordos de participação nos lucros e resultados (PLR), que coloca metas impossíveis e induz os trabalhadores a operar em ritmo desenfreado, causando acidentes. “O mais cruel é que, para atingir as metas de PLR e ter benefícios, as próprias pessoas assumem a tarefa de pressionar os colegas”, lamenta Clemente. Ele acrescenta que o fato de muitos acordos de PLR terem metas quanto a acidentes de trabalho acaba incentivando as empresas a deixar de registrar os casos de doenças laborais adquiridas, como a LER-Dort. Por isso, o sindicalista acredita ser perigoso incluir no acordo de PLR metas relativas a saúde e segurança do trabalhador.

Resistências

A recusa a notificar a ocorrência de problemas de saúde causados pelo ambiente laboral ficou tão gritante que chamou a atenção das autoridades. “As empresas resistem a admitir doenças profissionais para não criar um passivo trabalhista maior”, analisa a procuradora do Ministério Público do Trabalho da 15ª Região, em Campinas, Eleonora Bordini Coca. “Normalmente, o empregador só quer emitir a Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT) quando há confirmação de que a enfermidade foi causada pela atividade, o que leva tempo e nem sempre acontece enquanto há o vínculo empregatício”, diz. Eleonora explica que a lei obriga o empregador a emitir a CAT sempre que houver uma suspeita, mesmo que ainda não confirmada, de que o problema de saúde foi gerado pela atividade exercida pelo funcionário.

Um trabalhador licenciado sem CAT, mas com doença profissional, pode entrar com ação regressiva para receber benefício como acidentado. Quando uma empresa tem um número grande de funcionários nessa situação, o Ministério Público do Trabalho vai investigar e, se for o caso, exigir correções no ambiente laboral. “Hoje, temos ações regressivas do INSS contra empregadores que não cuidam de evitar acidentes e doenças profissionais”, revela Eleonora.

A procuradora Alline Pedrosa Oishi Delena, do Ministério Público do Trabalho da 2ª Região, em São Paulo, explica que a lei 11.430/06 estabelece a presunção de que certas doenças estão relacionadas a determinadas atividades ocupacionais e, assim, cabe ao empregador provar que um caso de LER-Dort, por exemplo, não está vinculado ao desempenho da função de um digitador a seu serviço. “As empresas entraram com ações nos tribunais superiores contra essa lei, mas não obtiveram sucesso”, relata.

Com a nova legislação, a incidência de acidentes do trabalho cresceu muito a partir de 2007, quando começaram a ser incluídos os casos que deram entrada no pedido de benefício no INSS sem CAT. “Nosso maior problema hoje se relaciona a bancos, que pressionam muito seus funcionários com metas impossíveis de cumprir e, assim, geram um grande número de doenças profissionais”, diz Alline. Segundo ela, outra grande dificuldade é que ainda há uma cultura de responsabilização do empregado pela doença ou acidente de que é vítima.

A coordenadora do Núcleo de Meio Ambiente do Trabalho do Ministério Público do Trabalho da 2ª Região, Silvana Valladares de Oliveira, ressalta que há grande dificuldade de reconhecer a causa da LER-Dort, porque ela pode se confundir com outras atividades. “Normalmente, as empresas teimam em dizer que a doença é provocada por outras coisas que a pessoa faz em casa, como segurar um bebê ou lavar roupa”, conta Silvana. “Quando adotam medidas preventivas, elas também se restringem muito à questão do mobiliário e ignoram completamente a organização do trabalho, que precisa respeitar mais o ser humano, que não é máquina.”

O Ministério Público do Trabalho está empenhado em ações que visam reduzir os problemas no ambiente ocupacional. Uma delas é fazer com que seja cumprida a resolução 1.488/98 do Conselho Federal de Medicina, que estabelece como obrigação do médico que trabalha em empresas emitir CAT sempre que houver uma suspeita de doença ou acidente causado pelo trabalho. “Muitos juízes também vêm determinando que se observe essa resolução nas perícias.”

Normas

Hoje, as categorias com maior incidência de LER-Dort são os trabalhadores de empresas de processamento de dados, teleatendimento e supermercados, segundo a auditora do Ministério do Trabalho Maria de Lourdes. No primeiro caso, o problema acontece por repetição excessiva de movimentos durante trabalhos de digitação. No segundo, pelo fato de se ficar tempo demais na mesma postura, o que gera muita tensão muscular, e usualmente em um espaço inadequado, restrito. No último exemplo, há várias funções que são extremamente vulneráveis à doença, como a de caixa (também designada “operador de checkout”), que fica horas manipulando as mercadorias que devem ser passadas pelo scanner, sempre com o mesmo braço. Vale lembrar que alguns produtos são bem pesados – como uma embalagem com 12 caixinhas de leite (que pesa pouco mais de 12 quilos) ou um saco de 5 quilos de arroz – o que, além de forçar a musculatura, abre inúmeras possibilidades de acidentes (o trabalhador pode se lesionar ao segurar uma mercadoria pesada com um só braço em posição inadequada, o produto pode cair e machucar o pé de alguém etc.).

Nos últimos meses, tem aumentado muito a incidência de acidentes no setor da construção civil, que tradicionalmente oferece pouca segurança a seus trabalhadores. Uma das soluções ergonômicas simples e necessárias em um canteiro de obras, por exemplo, é a adoção de uma bancada que permita ao trabalhador fazer suas tarefas (cortar azulejos, preparar cimento ou qualquer outra), sem forçar a coluna.

Outro fator importante é a forma como se carrega peso, levando em conta a frequência, a carga, a intensidade e o afastamento do corpo. Embalagens de areia e cimento, por exemplo, pesam 60 quilos, o que é excessivo para qualquer pessoa, embora esse seja o limite estabelecido no Brasil pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) há mais de 60 anos. A norma americana fixa como carga máxima 23 quilos e, por isso, os mesmos produtos têm embalagens menores quando destinados a exportação. Tramita no Congresso Nacional o projeto de lei 5.746/2005, do senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), para diminuir para 30 quilos a carga que um trabalhador pode portar individualmente.

Para reduzir o número de acidentes laborais, o Ministério do Trabalho e Emprego institui normas regulamentadoras. A que trata especificamente de ergonomia é a NR-17, que determina que o ambiente de trabalho deve ter boa iluminação, nível de ruído controlado etc. Também há exigências quanto aos equipamentos, como assentos para que aqueles que desempenham suas funções em pé possam descansar durante os períodos de pausa.

Entre os erros mais comuns das empresas está a compra de equipamentos de tamanho padrão, que não se adequam a todos os tamanhos de usuários. Um exemplo é a aquisição de cadeiras sem mecanismos de ajuste de altura. Elas poderão ser grandes para alguém de baixa estatura, ou pequenas para pessoas muito altas.