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Aids, 30 anos: a luta continua

por Lúcia Nascimento

Quando uma guerra começa, todos esperam que a vitória seja conquistada em pouco tempo. Com a Aids não foi diferente. Assim que o vírus causador da doença – o HIV – foi descoberto, no início da década de 1980, houve promessas de vacinas e de cura. Infelizmente, a luta ainda não chegou ao fim e, em meio a muitas derrotas, importantes batalhas foram ganhas nos últimos anos – tanto no campo social quanto no científico. “No começo, a síndrome estava ligada a terror e morte. Hoje em dia se relaciona a tratamento e prevenção”, afirma José Carlos Veloso, assistente social e vice-presidente do Grupo de Apoio à Prevenção à Aids (Gapa BR/SP).

Porém, para entender por que a doença continua vencendo o homem, 30 anos depois de ter assustado a humanidade pela primeira vez, é preciso conhecer algumas características de seu causador. “O vírus da imunodeficiência humana (HIV) sofre mutações com muita facilidade”, afirma um dos maiores especialistas da área, o infectologista Caio Rosenthal, do Instituto Emílio Ribas, em São Paulo. Essa é uma das razões que explicam por que é tão difícil encontrar um meio de eliminá-lo, já que ele nunca é o mesmo. Sem contar que o HIV age destruindo as defesas imunológicas do corpo, ou seja, acaba com o trabalho de células que deveriam nos proteger exatamente de outros vírus e bactérias. “A longo prazo o organismo fica muito vulnerável a infecções”, explica Rosenthal.

Justamente por isso, na época em que a síndrome começou a ser diagnosticada, era comum os pacientes contraírem rapidamente outras doenças – como tuberculose e meningite – e não resistirem. Hoje isso mudou. “As pessoas continuam morrendo por causa da Aids, mas é possível ter melhor qualidade de vida, por mais tempo. Sem falar no acesso ao tratamento e a medicamentos”, afirma Veloso.

História

Apesar de conhecido há apenas três décadas, o vírus da imunodeficiência humana começou a traçar sua história há mais de um século, na África. Lá, era comum os caçadores capturarem chimpanzés para comer – assim, entravam em contato com o sangue dos animais, por causa de ferimentos na pele. Eles nem imaginavam, mas foram os primeiros homens a carregar no organismo o SIV, vírus da imunodeficiência dos símios – que viria a se transformar no HIV. A propagação, a partir daí, foi simples, por meio das relações sexuais. Já a disseminação para fora do continente africano começou na década de 1960, quando refugiados de uma série de países migraram para a Europa.

Durante anos, as mortes provocadas pelo vírus passaram despercebidas – confundidas com outras doenças. Até que em 1981 alguns hospitais americanos relataram mais de 40 casos de jovens com sarcoma de Kaposi, um câncer raro que se manifestava, até então, apenas em idosos. E com outras particularidades: os doentes, todos homossexuais masculinos, morriam muito rápido – sendo que o mal normalmente demorava anos para se agravar. Logo os médicos perceberam que ali estava uma nova ameaça, que se espalhou também entre mulheres e heterossexuais que haviam passado por cirurgias ou recebido transfusões de sangue. O nome veio logo depois: Aids, sigla em inglês de síndrome de imunodeficiência adquirida.

Ninguém sabia, no entanto, qual era o agente causador da doença, e muitos tentaram descobri-lo. No final de 1982, Luc Montagnier, um cientista francês, analisou células de um paciente com linfadenopatia, que é a inflamação dos gânglios linfáticos, um dos primeiros sintomas da Aids. Nessa amostra, ele descobriu traços de transcriptase reversa, enzima presente apenas nos retrovírus. Estava definida, então, a classificação do causador da doença. Já em 1983, um americano, Robert Gallo, conseguiu isolar o vírus e descreveu a análise de suas proteínas e a evidência de que ele causava a doença. A partir daí, muitas descobertas se sucederam e o vírus ficou conhecido mundialmente.

Isso não mudou, nos primeiros anos, a forma de encará-lo, já que muitas pessoas ainda não sabiam como se dava a transmissão. “Pensava-se que os infectados eram apenas homossexuais, usuários de drogas ou aqueles que passaram por transfusões de sangue. Mas esses conceitos caíram por água abaixo”, lembra Veloso. “Nos anos 1990 percebeu-se que era também uma questão de comportamento que levava ao risco de contrair o HIV. As pessoas mais vulneráveis eram aquelas que tinham uma vida sexual mais ativa e que não usavam preservativo.”

É na década de 1990 também que o Brasil começa a prestar a devida atenção ao assunto. “Naquela época os pacientes tinham de percorrer cerca de 30 quilômetros para chegar a um posto que atendesse pessoas com HIV. Foi então que pensei em montar um ambulatório em Sapopemba, na zona leste de São Paulo”, diz o infectologista Robinson Fernandes de Camargo, um dos primeiros a se especializar no tratamento de Aids no país e hoje gerente do Serviço de Assistência Especializada em DST/Aids de Sapopemba, na capital paulista. Só que o tratamento, naquela época, era algo bem diferente do que existe hoje. “O trabalho era ajudar o paciente a morrer, porque os medicamentos eram todos importados e menos eficientes”, lembra ele.

Ciência

Nos dias de hoje, é possível conviver décadas com o HIV, sem manifestações da doença. A cura continua distante, mas o tratamento avançou a passos largos. “Com as drogas conseguimos controlar o vírus, mantendo-o em níveis tão baixos que os métodos de contagem nem mesmo o detectam no sangue do doente”, explica Rosenthal. Não é para menos que se tornou comum ouvir que a pessoa é portadora do HIV, mas não manifesta nenhum dos sintomas característicos da Aids. Com o vírus controlado, a doença não progride.

Tudo começou com o AZT, o primeiro medicamento usado nesse tratamento, aprovado em 1987 pela FDA (Food and Drug Administration, órgão americano responsável pelo controle de alimentos e remédios). Ele funciona bloqueando uma enzima essencial para a replicação do vírus, a transcriptase reversa, mas seus resultados são limitados, comparados aos das drogas disponíveis atualmente. Alguns anos depois, já na década de 1990, surgiram outros medicamentos, mais eficientes, que passaram a compor o coquetel contra o HIV. “No começo era apenas a monoterapia, depois eram dois, três remédios. Hoje são mais de 20 tipos”, enumera Ronaldo Hallal, coordenador geral de Cuidado e Qualidade de Vida do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde.

É claro que, pelo mundo, nem todos têm acesso ao tratamento, o que propicia ainda mais casos de contaminação. “Afinal, os remédios têm impacto muito forte na prevenção. Quando são ministrados corretamente, há menos chances de se transmitir o vírus. Isso é comprovado cientificamente”, diz Veloso. De qualquer modo, só o tratamento, sem outras políticas de prevenção, não soluciona o problema. “Hoje é diferente, mas a doença não pode ser ignorada. Ela ainda tem um impacto muito grande, em termos de saúde pública e até mesmo no que diz respeito ao custo financeiro. A condição do doente melhorou em relação ao que era antes, mas ainda temos muito a fazer”, reforçou o infectologista Esper Georges Kallás, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), durante o Curso Avançado de Patogênese do HIV, ocorrido em março deste ano.

Sociedade

Não podemos negar os avanços, mas eles não são suficientes para cobrir as necessidades dos mais de 30 milhões de pessoas infectadas com o vírus mundo afora. A África subsaariana continua a ser a região mais severamente afetada: 72% de todas as mortes provocadas pela doença ocorrem ali. No Brasil, desde o início da pandemia foram registrados mais de 500 mil casos.

E, na década em que a Aids completa 30 anos, a atenção está se voltando para as mudanças no perfil dos doentes. No início acreditava-se que havia grupos de risco: homossexuais, profissionais do sexo, hemofílicos e usuários de drogas injetáveis. Hoje sabe-se que ninguém está completamente livre de se contaminar e a incidência cresce, a cada ano, entre homens e mulheres heterossexuais que não usam drogas e mantêm relações estáveis.

Segundo a infectologista Januária Peres, do Hospital Universitário São Francisco (HUSF), de Bragança Paulista (SP), é errado falar atualmente em grupos de risco: o correto seria dizer comportamentos de risco. “Entre eles, o principal é a prática de relação sexual sem uso de preservativo”, afirma. E, quando o fator determinante envolve hábitos, ninguém está completamente a salvo – por isso o perfil dos infectados pode mudar ao longo do tempo, como vem ocorrendo. “Em 1989, a proporção era de seis casos de Aids no sexo masculino para cada um no sexo feminino. Em 2009, chegou a 1,6 caso em homens para um em mulheres”, diz Januária. O perigo ronda também quem está na sexta ou sétima década de vida. Com a popularização de remédios contra a disfunção erétil e a falta do hábito de usar preservativo, cresceu o número de casos nessa faixa etária, que, a princípio, enfrentava um risco menor.

Outra mudança assustadora é a quantidade de meninas infectadas. Entre 13 e 19 anos, há mais mulheres do que homens portadores do vírus. A inversão, nessa faixa etária, vem ocorrendo desde 1998, com oito casos em meninos para cada dez em meninas. Segundo a Pesquisa de Conhecimentos, Atitudes e Práticas na População Brasileira, feita pelo Ministério da Saúde em 2008, a explicação está no fato de que os meninos usam mais preservativo do que elas, tanto em relações casuais quanto em relacionamentos fixos.

Além do perfil dos infectados, mudou também, com o passar dos anos, o modo como o doente é visto pela sociedade. “Ainda há estigma e preconceito, mas houve melhoras. Hoje em dia as pessoas convivem com o HIV, há reinserção na sociedade, oportunidades de trabalho, maior convívio social e afetivo”, afirma Hallal. A imagem do soropositivo se transformou. “Os pacientes podem até mesmo pensar em gravidez, em ter filhos, o que é muito bom. O contraponto disso é que os jovens não veem mais a Aids como uma doença fatal. E a banalização pode reduzir a prevenção.”

Exemplo

Pelo mundo, o Brasil é considerado um país-modelo no tratamento da doença. “Somos um dos que mais cedo disponibilizaram a distribuição de medicamentos para a população, ainda quando se tinha apenas a monoterapia, em que o tratamento era feito com AZT. Essa iniciativa aconteceu no final dos anos 1980, em Santos, litoral do estado de São Paulo”, conta Hallal. “E, em 1996, começamos a oferecer acesso gratuito a antivirais de alta potência.”

Em 2007 o país também inovou ao quebrar a patente de medicamentos usados no tratamento, o que possibilitou a fabricação dentro do país, a preços menores que os cobrados pelas empresas farmacêuticas. “Adotou-se essa medida com um acordo internacional. Isso é essencial em diversos aspectos para nosso país: no plano político, pois mostra a preocupação com a saúde; no plano econômico, porque reduz os gastos; e no plano dos direitos humanos, pois assegura à população o acesso”, enumera Hallal.

“A quebra de patentes resultou na compra de diversos remédios a preços mais acessíveis e na possibilidade de fabricarmos os medicamentos sem a interferência das indústrias farmacêuticas, cujo maior objetivo é o lucro”, explica Rosenthal. No começo deste ano a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também permitiu que o Brasil produzisse a versão genérica do tenofovir, um dos componentes do coquetel. Com isso, 10 dos 20 antirretrovirais fornecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) passam a ser fabricados aqui, o que fortalece a autonomia do país na produção desses fármacos.

A economia também será grande, no longo prazo. Para se ter ideia, em 2010 foram investidos R$ 577,6 milhões na aquisição de medicamentos importados e R$ 224,9 milhões na fabricação dos nacionais. Mesmo incluindo o investimento com incorporação da tecnologia, para uso em território brasileiro, o preço inicial do tenofovir nacional será o mesmo pago pelo SUS na última aquisição internacional: R$ 4,02.

Só não dá para esquecer que a realidade não é tão cheia de glórias como parece. O tratamento da Aids é oferecido pelo SUS e, apesar de todas as vitórias, esse é um sistema com muitos pontos a solucionar. “Quando se vê apenas a Aids, o Brasil é modelo, sim. Porém, quando pensamos em saúde pública como um todo, percebemos problemas sérios. O paciente enfrenta as mesmas dificuldades que as pessoas com outras doenças para conseguir marcar exames ou obter medicamentos não relacionados com a Aids, por exemplo”, pondera Veloso.

Também não é o caso de imaginar que nosso sistema de tratamento para a síndrome daria certo em qualquer lugar do mundo. “Temos o melhor modelo para o Brasil, não para o planeta. É preciso cuidado nesse sentido, porque quando dizemos que somos os melhores, vem a ideia de que não é preciso melhorar em nada, mas não é assim”, ressalta o infectologista Camargo, do Serviço de Assistência Especializada em DST/Aids de Sapopemba. “Não podemos deixar faltar remédios e temos de inserir mais a questão na mídia e trabalhar a sociedade para lidar com a questão – são muitas as melhorias a alcançar.”

Futuro

Se, por um lado, há carência de iniciativas que conscientizem os brasileiros de que é preciso investir em prevenção, por outro não faltam esforços científicos, mundo afora, para entender cada vez melhor o vírus – e tentar exterminá-lo. Atualmente há cerca de 30 versões de vacinas em teste, divididas em dois grupos de pesquisa. O primeiro induz a formação de anticorpos contra o vírus, prevenindo a infecção. O segundo educa as células de defesa para que o combatam, impedindo que se desenvolva a síndrome. Se dessas pesquisas vai sair a cura do mal, ninguém se arrisca a dizer, mas essa é a intenção.

“A vacina é uma tentativa promissora. Ainda não se encontrou nada eficaz para acabar com o vírus, mas acho que, por acidente, vamos descobrir”, diz Camargo. Na opinião de Rosenthal, pode não ser tão simples assim: “A cura não está na agenda dos pesquisadores a curto ou médio prazo. As vacinas estão na pauta, porém demandam técnicas extremamente sofisticadas e de altíssimos custos”. Afinal, o vírus tem propriedades muito complexas que o diferenciam dos outros em vários aspectos, entre eles a possibilidade de adaptação a qualquer tipo de ataque. “No momento, o que temos – e com que podemos contar – são medicamentos muito poderosos, extremamente eficazes, mas não suficientes para eliminar os vírus”, explica.

Porém, com tantos estudos, alguns progressos estão sendo feitos – mesmo que não no campo das vacinas. Com relação à transmissão do vírus de mãe para filho, na hora do nascimento, há boas perspectivas. Hoje já se sabe, por exemplo, que é possível reduzir em até 50% as chances de contaminação nesses casos, usando uma nova combinação de medicamentos já conhecidos. Assim, evita-se o contágio de bebês cujas mães só descobrem serem portadoras do HIV na hora do parto, quando essa possibilidade é alta.

Para o futuro, a expectativa dos especialistas é unir avanços da ciência com prevenção. A guerra contra a doença continua, mas há consciência de que mudar o modo como as pessoas a encaram pode ser uma batalha ainda mais difícil que manipular o vírus e descobrir meios de domá-lo.


Importância do teste

A transmissão do vírus ocorre por relações sexuais sem uso de preservativo, transfusão de sangue contaminado, compartilhamento de seringas ou objetos cortantes que possuam resíduos de sangue e, também, de mãe para filho, durante a gestação, o parto ou a amamentação. As principais formas de prevenção são o uso de preservativo em todas as relações, independentemente do parceiro ou do tipo de compromisso, o não compartilhamento de seringas e agulhas, e a esterilização correta de instrumentos cortantes que entram em contato com sangue.

Segundo o Ministério da Saúde, cerca de 20% das pessoas contaminadas com o HIV nunca fizeram um teste diagnóstico e, por isso, não conhecem sua sorologia e podem passar o vírus a outros. Nos serviços de saúde da rede pública, em todo o país, é possível fazer o chamado teste rápido. Ele é realizado a partir da coleta de uma gota de sangue da ponta do dedo e permite que, em apenas meia hora, a pessoa obtenha o resultado e receba o serviço de aconselhamento necessário. O exame pode ser feito gratuitamente.

A indicação é fazer o teste cerca de um mês após qualquer situação de risco, como uma relação sexual sem uso de preservativo. Isso porque, após a infecção pelo HIV, o sistema imunológico demora esse tempo para produzir anticorpos em quantidade suficiente para serem detectados pelo exame. Com um diagnóstico positivo do HIV feito precocemente, o tratamento pode começar no momento certo e a qualidade de vida é melhor.