Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Os sonhos foram salvos pelo afeto

por Mauricio Monteiro Filho e Amanda Rahra

No dia de seu quinquagésimo sétimo aniversário, Tia Dag ganhou, entre várias homenagens, uma versão especial da música Para não Dizer que não Falei das Flores, de Geraldo Vandré. A canção foi executada por uma orquestra formada exclusivamente por jovens moradores da pobre zona sul de São Paulo. Meninos e meninas que ela só chama de “zezinhos”, apesar de conhecer seus nomes, sobrenomes, medos e sonhos.

Quando o maestro anunciou a atração, lembrou o pronunciamento realizado por Geraldo Alckmin na véspera. Em entrevista naquele 15 de abril, o governador trouxe a público dados que revelam tempos de paz inéditos para o estado. “Pela primeira vez em toda a série histórica, São Paulo atende aos índices da Organização Mundial de Saúde, que estabelece que [o número de homicídios] fique abaixo de dez por 100 mil habitantes. São Paulo chegou a 9,52 no primeiro trimestre”, disse Alckmin. A taxa, inclusive, colocava o estado bem abaixo da média nacional, que é de 25,4 para cada 100 mil pessoas.

A apresentação do maestro, no entanto, fazia referência às letras miúdas da estatística. Mesmo num contexto de redução sistêmica da violência urbana, a zona sul da capital paulista continuava encabeçando o ranking de crimes violentos no estado. Mais especificamente, era num raio de poucos quilômetros a partir de onde Tia Dag observava a festa montada para ela que se concentrava o maior número de homicídios na cidade. Enquanto São Paulo toda tinha motivos para comemorar, Tia Dag iria dormir um ano mais velha na região que seguiria ostentando esse recorde ingrato.

A liderança não é novidade por aquelas bandas. Em 1996, o distrito do Jardim Ângela, próximo dali, chegou a ser considerado pela Organização das Nações Unidas (ONU) o local mais violento do planeta, batendo até a contagem de mortes do narcotráfico colombiano, no auge das ações do cartel de Cali. Sempre no topo dessa lista da vergonha, a área formada por Jardim Ângela, Jardim São Luís e Capão Redondo ganhou o nome de triângulo da morte, que mantém até hoje. Em 2011, os números propõem uma nova geometria para o mesmo estigma: a região compreendida pelos departamentos de polícia do Parque Santo Antônio, do Campo Limpo e do Capão Redondo é a mais sangrenta da capital. Lá, foram registrados 31 dos 220 assassinatos ocorridos no primeiro trimestre do ano.

O tom da fala do maestro, porém, orbitava num campo harmônico bem mais alegre que o das manchetes. Ao apresentar a primeira violinista da orquestra, ele fez questão de enfatizar onde a garota morava: no Parque Santo Antônio, um dos vértices do novo triângulo da morte. Para Tia Dag, as notícias sobre a onda de violência na zona sul paulistana são mais do mesmo. Transformador, porém, é ouvir as notas de puro talento que brotam do violino da garota, apesar de todos os pesares. Ou justamente por causa deles. Depois de mais de 20 anos atuando dia e noite para melhorar a vida dos jovens da região, ela sabe melhor que ninguém que é exatamente nas áreas de maior conflito que nascem as forças que o dirimirão.

E é na Casa do Zezinho (CZ), organização social voltada para a educação fundada por Tia Dag, que esses meninos e meninas encontrarão a fórmula perfeita de afeto e pedagogia para se tornar agentes dessa mudança.

Ponte Parque Santo Antônio-EUA

Dias depois de seu aniversário, Tia Dag seguiu para uma viagem de duas semanas à cidade de San Francisco, no estado americano da Califórnia. O roteiro incluía visitas a diversas entidades sociais locais e palestras na Universidade de San Francisco sobre a metodologia revolucionária de educação aplicada na Casa do Zezinho. Pelo menos era o que estava previsto. Em vez de falar, ela queria mesmo era testar a reação dos universitários da costa oeste dos Estados Unidos diante da realidade da zona sul da capital paulista. E estava mais interessada em ouvir. Numa das palestras, começou mostrando um vídeo sobre a CZ e abriu para perguntas da plateia. Acabou extrapolando o tempo de uma hora de sua fala, magnetizando os jovens durante três.

Nem a tradutora ficou incólume. Como todos ali, ela se emocionou com os relatos de Tia Dag. Ao final da palestra, foi pedir desculpas à oradora, dizendo que havia sido pouco profissional. “Eu disse que ela estava sendo, na verdade, muito profissional, porque estava sendo verdadeira. Chorar é legal, porque traz à tona a humanidade da pessoa”, conta Dag.

E não foi só por fatos como esse que, durante a viagem, ela constatou que a CZ é mesmo única. “Não encontrei nada parecido com o que temos aqui, essa preocupação com ouvir o outro, com saber o que está acontecendo com a criança e com o jovem de maneira integral. Lá, tudo é muito quantitativo. São números e estatísticas sobre as pessoas beneficiadas. Na Casa do Zezinho, somos muito mais qualitativos, pois respeitamos e queremos saber a história, os saberes, desafios e sonhos de cada um – que tem um nome, uma identidade e uma trajetória diferente”, diz ela.

Como resultado da estada nos Estados Unidos, Dag criou pontes importantes. Dezesseis estudantes de sociologia e estudos latino-americanos da Universidade de San Francisco vão passar seis meses na Casa do Zezinho para mergulhar no universo do Parque Santo Antônio, inclusive morando no bairro, e na pedagogia desenvolvida pela instituição. Em contrapartida, oito zezinhos terão bolsa integral para fazer o curso que escolherem na universidade americana. “Já avisei alguns dos mais velhos por aqui: vocês têm um ano para aprender inglês. Se virem! Vão estudar, fazer curso online... Essa é uma grande chance”, declara Dag.

Com o incentivo, ela está dando aos zezinhos a chance de ampliar horizontes que ela mesma demorou para explorar. Essa foi sua primeira viagem aos EUA. “Eu tinha muito preconceito, porque pensava que todo americano era dominador, alienado, capitalista selvagem. Mas percebi que estava fazendo com eles a mesma coisa que eles fazem com a gente”, assume.

De Dagmar a Dag

A jornada que levou Tia Dag a quebrar os próprios preconceitos começou décadas antes, quando ela ainda era Dagmar Garroux. Mais de 30 anos atrás, a pedagoga começou a trabalhar com crianças que tinham problemas de aprendizagem devido a traumas graves. Eram refugiados de guerras e ditaduras, como a do Chile. Para romper o ciclo de sofrimento desses meninos e meninas, ela os confrontava com outra realidade traumática, igualmente sofrida na carne por outras crianças: a da exclusão social na periferia de São Paulo. E, magicamente, desse choque surgia a iluminação e se abria o caminho para o saber. Dagmar realizava esse trabalho na Favela do Fedô, próxima da Vila das Belezas, na zona sul da cidade, onde morava.

Aparentemente, porém, a bússola mental de Tia Dag aponta sempre e obstinadamente para o sul. No início da década de 1990, essa fixação a levou a comprar, junto com o marido, Saulo Garroux, uma casa próxima de onde hoje funciona a Casa do Zezinho. Na época, ali se formou o núcleo que viria a fazer da CZ uma referência capaz de cruzar fronteiras.

Então, em setembro de 1993, com apenas sete crianças, foram iniciadas as atividades da CZ. Naquela época, eram somente duas oficinas: cerâmica e reciclagem de papel. E os encontros só ocorriam duas tardes por semana.

Ana D’Água Sandoval foi uma das pioneiras que fundou a casa com Tia Dag. Ela conta que, a cada dia, uma das voluntárias faltava em seu trabalho regular para cuidar das crianças. “A gente improvisava. Oferecíamos lanche, dávamos aula de artes com o que tínhamos disponível e fazíamos de tudo para conquistar os meninos, mesmo porque a rua é um lugar muito sedutor, que oferece uma aparente liberdade. Era aquela bagunça, mas era assim que a gente conseguia passar conceitos fundamentais sobre cidadania, trabalho em equipe e até conteúdos de português, matemática, química, física... Tudo misturado e real. A gente queria trazer essa sensação de liberdade para dentro da Casa do Zezinho.”

Se o começo foi tímido, os sonhos eram os mais grandiosos. A ponto de Dag ter se valido de uma licença poética para criar o nome de sua instituição. Com o célebre poema de Drummond “E agora, José?” em mente, a pedagoga pensou que, para aquelas crianças carentes, o verso necessário era: “É agora, José!” Daí veio o nome de zezinhos para os meninos e meninas que frequentam a casa.

E eles passaram a aparecer cada vez em maior número. No começo de 1994, já eram 20. No final de 1995, 75. No ano seguinte, foi necessário reformar a casa para dar conta de todos os zezinhos. O momento foi também um marco pedagógico, porque a partir de então começou a se esboçar a atual estrutura de funcionamento, com atividades em período integral e a divisão das crianças em 3 grupos, a partir do critério de nível de aprendizagem, maturidade e desenvolvimento biopsicopedagógico.

Hoje, a nova sede, cujo terreno foi comprado por um grupo de empresários e doado à entidade, já está ficando pequena para os cerca de 1,5 mil zezinhos de 6 a 21 anos que frequentam a CZ em busca de atividades esportivas, artísticas, de complemento à educação formal e capacitação profissional.

Cacos de vida

A oficina de mosaico fica numa sala ampla e ensolarada, onde garotos e garotas se debruçam lado a lado sobre mesas, fazendo arte a partir de cacos de azulejos e pastilhas. Carlos Eduardo Ferreira da Silva, um dos mais velhos, já ganhou um ar zen depois de anos dedicados ao ofício solitário e meticuloso. “É a melhor maneira de colocar a cabeça em ordem. É uma terapia”, justifica ele.

Seu sonho era ser jogador de futebol. Passou boa parte da infância e da adolescência numa via-crúcis de peneiras, passando por baixo das catracas dos ônibus, mirando a posição de meia ou atacante. “Mas eu só levava ‘não’. Recebia muitos elogios, mas os agentes queriam grana para me selecionar”, conta ele.

No auge dessa busca, aos 12 anos, começou a frequentar a Casa do Zezinho. Ia um pouco a contragosto, ainda com os campos de futebol na cabeça. Talvez, porém, porque Carlos precisasse de uma base sólida que o esporte nunca lhe daria, a arte começou a ganhar da bola.

Como a esmagadora maioria dos zezinhos, ele vinha de um lar desestruturado. Seu pai era alcoólatra. “Ele era refém do vício”, lembra Carlos, com uma tranquilidade incompatível com seus 21 anos. Era o menino quem levava o pai ao pronto-socorro quando a mãe não podia. Tanta tristeza o fez mudar de sonho. “Queria ser maior que o sofrimento dele”, declara Carlos. Numa lógica dolorosamente cristã, quanto mais sentia na pele a violência do pai, mais queria fazê-lo feliz.

Ele, no entanto, sabia que a vida não seria tão condescendente com o alcoolismo. E não foi: o pai morreu precocemente. Toda essa espiral de sofrimento fez Carlos mergulhar ainda mais no mosaico. Era nos quadros que encontrava a palavra que ele mais repete: paciência. “A pressa só dá a batida errada”, define ele.

Por pura urgência, lembrando as duas carteiras de trabalho que o pai encheu, Carlos começou sua vida profissional. Não conseguiu, porém, se encontrar em nenhum dos empregos. “Trabalhei num colégio britânico, de terno. Mas só ficava pensando nos zezinhos”, conta.

Por isso, retornou. Afinal, era só na CZ que ele atingia sua plenitude de monge. E, por conta dela, acabou virando uma referência para os menores. “Voltei para dar aos outros zezinhos aquilo que não tive com meu pai”, diz.

Mais que uma reinvenção da figura paternal, o mosaico é, para Carlos, uma forma de ver a favela sob novos ângulos. E ressignificar sua realidade. “Coloco a minha verdade no quadro, não as mentiras, os blocos marrons com furos de bala. Por que o rio não pode ser colorido?”, questiona.

Não por acaso, o tema preferido nos mosaicos que faz é a favela. A própria Tia Dag encomendou um, o maior que ele já criou e que levou sete semanas para ficar pronto. Sobre um fundo azul, estão os barracos coloridos, pessoas no orelhão e meninos empinando pipa. Tudo isso circundando o campo de futebol da comunidade. Diante de um desses trabalhos, um zezinho lhe perguntou: “Tio, por que a favela não é assim”? Para Carlos, ela é exatamente assim.

Os educadores da casa frequentemente comentam que a oficina de mosaico é a mais procurada pelos jovens. Segundo eles, há uma explicação. Os cacos seriam metáforas perfeitas para a fragmentação da vida desses jovens. Reorganizando os pedacinhos em figuras harmônicas e alegres, eles estariam amenizando o peso que a violência, o tráfico, a exclusão e os frágeis laços familiares têm em sua vida.

De volta para casa

Júlio de Sena, um dos primeiros zezinhos, já foi um desses jovens que teve a vida em cacos. Chegou à casa em 1994, quando ela era um sobrado e a rua ainda era de terra.

Ele tomava conta de carros e estava sempre no campinho do Parque Santo Antônio. Foi quando ouviu dizer que uma mulher lá de cima dava comida de graça e poderia ajudar. “Lembro até hoje da primeira vez que vi Tia Dag. Eu tinha uns 11 anos e a achei uma mulher muito bonita. Ela logo começou a falar que queria fazer um trabalho com a gente. Ofereceu um lanche e disse que poderíamos aparecer lá de segunda a sexta. Ela fazia uns vasos de argila e a Ana D’Água nos ensinava a reciclar papel numa banheira velha. Mas a gente gostava mesmo era do lanche”, diverte-se.

Segundo Júlio, a CZ era uma ilha de segurança. Ele, porém, tinha de voltar para casa. E em sua rua havia uma “biqueira” – ponto de venda de drogas. “Eu sempre percebia que os traficantes tinham tudo muito fácil e a gente chegava em casa e não tinha nada”, recorda.

Então, quando a mãe – “uma baiana brava, que tinha regras e ensinou a gente a ter respeito e educação” – morreu, em 2000, os filhos ficaram desamparados. O irmão de Júlio, na época com 16 anos, começou a roubar. “Eu o seguia para ver o que ele ia fazer. Acabei me envolvendo e tinha de andar armado para não morrer na guerra do tráfico”, conta.

“Eu me afastei da Casa do Zezinho, mas tem uma cena que não esqueço: um dia, estava chegando na CZ quando parou uma viatura de polícia perguntando por mim. E Tia Dag e Corina [uma das fundadoras da instituição] me defenderam. Eles estavam me acusando de homicídio, mas eu nunca matei ninguém. Então, elas conversaram com os policiais e disseram que eu não seria capaz de uma coisa dessas. Aquilo me tocou muito, porque elas me defenderam como se eu fosse filho de verdade”, relembra Júlio.

A vida errada o levou a perder muitos amigos e o forçou a estar fugindo o tempo todo. Vendo que, dessa maneira, havia ficado privado de liberdade, decidiu abandonar o crime. “Fui falar com o chefe, na casa dele. Eu tinha medo, mas o que me deu coragem foi lembrar que havia outro caminho, que a Casa do Zezinho tinha me mostrado que a gente podia ser algo diferente na vida”, conta Júlio.

Hoje, ele é educador da oficina de fotografia e vídeo. E, ao contrário do que ocorreria em uma escola formal, é justamente por seu histórico no crime que seus ensinamentos são valiosos. “Se você entra nessa, acaba refém – dos chefes, da droga e das próprias dívidas. É isso o que tento passar para os meninos que vejo que estão indo por outro caminho”, explica. “A Casa do Zezinho me ensinou a viver na periferia. Não é porque a gente mora na favela que não tem sonhos na vida. Aqui tem muita coisa boa e a casa me mostrou que é possível andar com a cabeça erguida. Hoje sou um guardião da instituição.”

Muller Silva Freitas, morador do Jardim Ângela e ex-zezinho, também viu o crime de perto na família. Fascinado por jornalismo e design, ele perdeu o lançamento de uma revista que produziu com outros jovens da casa por conta do assassinato do irmão. “Acho que ele morreu porque não conheceu a Casa do Zezinho. Se tivesse passado por aqui, ele estaria vivo até hoje”, diz. Agora, Muller está voltando para a CZ para trabalhar na área de comunicação e realizar seu sonho de fazer faculdade de tecnologia da informação.

Pedagogia do arco-íris

Atualmente, a CZ conta com 80 educadores, 60% dos quais são ex-zezinhos, como Júlio. “Nosso objetivo é que a casa seja cuidada por eles. Aqui o zezinho é o ator principal. Que eles sejam os educadores para sacudir essa comunidade e levar essa pedagogia para o seu mundo”, diz Ana Beatriz Nogueira, coordenadora dos educadores da CZ.

Essa transformação de zezinhos em educadores é o maior sintoma de que uma verdadeira revolução da educação está em curso na casa. E ela tem até nome: pedagogia do arco-íris. Apesar de contemplar todos os conteúdos de uma escola formal, a Casa do Zezinho os apresenta de forma completamente inovadora. A começar pela divisão dos períodos de aprendizagem. Em vez de separar as crianças e jovens por salas, lá o critério são as cores. Cada uma das sete tonalidades do arco-íris representa uma fase do desenvolvimento dos zezinhos.

“Tudo o que fazemos aqui começa na prática, porque acreditamos que o conhecimento é vivo. Se não for assim a gente cai na armadilha do ensino, que é diferente de educação. Educar é um ato de amor. Não adianta falar o ‘pedagogês’ se a gente não souber falar a língua dos meninos”, diz Saulo Garroux.

Tia Dag tem uma boa palavra para exprimir a filosofia da casa. “Aqui a gente brinca que faz um trabalho de ‘pedagodia’, porque, a cada dia, um evento é capaz de nos fazer repensar a pedagogia. Um caso nos estimula a pensar numa estratégia inédita para cuidar de um problema – mas tudo sempre baseado na pedagogia do afeto, amor e carinho.”

De fato, não se passam 24 horas na CZ sem que alguma notícia – em geral ruim e relacionada a violência – mobilize todos os educadores. A primeira frase de Dag ao começar a entrevista foi: “Esta foi uma semana de mortes”. No dia anterior, o pai de uma zezinha havia morrido de cirrose. Tia Dag se lembra de quando a filha mais velha do falecido, Belinha, chegou à CZ, aos 12 anos. “Ela veio para cá e logo se abriu para a casa. Tempos depois, perdeu a mãe. Ela pulou a etapa de brincar, de ser criança, pois teve de enterrar a mãe e cuidar da casa, porque o pai começou a beber e usar droga. Mas ela não se perdeu porque teve o apoio da Casa do Zezinho.”

Todo esse afeto e cuidado, verdadeiros pilares do tratamento dos educadores para com os zezinhos, fazem a CZ atingir um recorde: a evasão é menor que 1%. “E, assim mesmo, os zezinhos que vão embora geralmente são aqueles que vivem com famílias que migram, por terem perdido a casa na favela ou para ir atrás de uma oportunidade de vida melhor. Há também casos em que os jovens, ou seus familiares, sofrem ameaças devido a dívidas com os traficantes de drogas e acabam tendo de deixar o local”, explica Saulo.

Esse número acaba colocando em xeque todo o sistema educacional no Brasil, ainda que não seja esse o objetivo da CZ. Com a verba limitada de um projeto social, mas muita entrega por parte dos funcionários, a instituição mostra que é possível, sim, educar os jovens de forma bem-sucedida. “A gente não quer que o menino pule o muro da escola, que pode ser um lugar de incríveis descobertas”, declara Ana Beatriz, a Tia Bia. “O ideal mesmo é que a CZ não tivesse de existir, que houvesse uma proposta de educação mais sedutora e com sentido.”

Na opinião de Mayara Paula Encarnação dos Santos, de 16 anos, a casa tem de existir para sempre. “Cheguei aqui pequenina e vergonhosa. Minha primeira educadora foi Tia Bia. E ela era bem falante, cantava com a gente, conversava, perguntava sempre como a gente estava. Aí comecei a me abrir, a circular pela casa e conhecer outros amiguinhos. Passei a ser conhecida como a menina das trancinhas”, lembra.

Segundo ela, a Casa do Zezinho é um lugar muito especial, porque é uma verdadeira família, além de ser o local em que ela mais aprende coisas, inclusive sobre conteúdos ensinados na escola. Quando tem uma dúvida na aula de matemática, por exemplo, ela traz para tirar com os educadores da CZ.

“A maneira com que eles falam dos assuntos é diferente. Parece que a gente aprende brincando. Eles dão exemplos da nossa vida prática e também têm paciência para explicar várias vezes o que a gente não entende de primeira. Na escola é muito mais duro: se entendeu, bem, se não entendeu, amém”, diz ela.

Com os anos, a mãe de Mayara também foi passando a ter mais confiança na CZ do que na escola. Isso porque, quando ela ia às reuniões de pais, os educadores faziam perguntas muito pertinentes sobre a filha. “Aqui na casa eles sabem muito mais de mim do que na escola”, completa a adolescente.

Moradora do Capão Redondo, Mayara, mesmo com sua pouca idade, já testemunhou cenas que pessoas que vivem em áreas mais ricas da cidade provavelmente nunca verão. Todas as estatísticas e probabilidades estão contra ela e, ao que parece, não será a escola formal que reverterá esse quadro. Nesse contexto, já seria lucro haver projetos sociais que apenas mitigassem o abandono em que se encontra essa região de São Paulo. Em meio ao cinza chumbo da exclusão, porém, está a Casa do Zezinho, um arco-íris permanente contaminando de vida o triângulo da morte.