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De campeão de natação a bailarino

por Milu Leite

Moisés Batista nasceu no dia 28 de julho de 1977 na cidade de Telêmaco Borba, no estado do Paraná. Rodeada de árvores cultivadas para a derrubada e posterior manufatura de papel, Telêmaco Borba é um dos principais polos do produto no país, o que faz com que boa parte de seus quase 70 mil habitantes estejam de alguma forma ligados à indústria Klabin. Como foi então que esse atleta, oriundo de uma família simples, pôde trocar a vida costumeira e previsível por uma carreira incomum e cheia de surpresas? A resposta não escapa ao óbvio. O para-atleta Moisés Batista tornou-se campeão mundial de natação porque pertence à categoria de pessoas que não se acomodam e se lançam a desafios que afugentariam muitos de nós.

O primeiro desses desafios, no entanto, não ocorreu por escolha própria e se impôs assim que ele veio ao mundo. Moisés, o primeiro dentre os três filhos de um casal de vida modesta, nasceu com malformação nos braços e em uma perna. “Apesar disso, sempre fui uma criança superativa. Fui educado como igual, meus pais não me tratavam de maneira especial por eu ser como sou. Assim, logo que criei as primeiras penugens, levei aquele chutezinho na bunda para encarar o mundo!”, conta com uma gostosa gargalhada o nadador, atual recordista pan-americano, enquanto bebe uma água mineral no pequeno café de uma academia de ginástica, em Florianópolis. Era ali que ele vinha treinar, de ônibus, nas noites de fevereiro, a fim de melhorar seu preparo para as Paraolimpíadas de 2012, durante sua estada de um mês na ilha, para frequentar um workshop de dança. O ânimo era surpreendentemente grande para quem tinha acabado de enfrentar uma maratona de exercícios e vivências absolutamente extraordinárias no curso de formação de professores do método DanceAbility, ministrado pelo coreógrafo ítalo-americano Alito Alessi, no espaço Ba-o-bah, a cerca de 20 quilômetros dali.

A DanceAbility goza atualmente de reconhecimento mundial. Não poderia ser de outro modo na era em que atitudes de inclusão são cada vez mais reivindicadas e colocadas em prática. Diferentemente de todas as modalidades de dança contemporânea, esta faz da “conversa” entre corpos e de suas possíveis extensões mecânicas a matéria-prima para as coreografias, gerando movimentos integrados entre seus participantes, tenham eles deficiência ou não. Sendo assim, por trabalhar com elementos incomuns e inesperados, a DanceAbility está totalmente aberta a corporalidades diversas, incluindo como nenhuma outra dança aqueles que têm deficiência física e seus aparatos. Em cena, seja no palco ou em apresentações em espaços públicos, assiste-se a uma espécie de balé em que cadeiras de rodas e muletas são utilizadas de forma inusitada pelos bailarinos-atores. Moisés participou do workshop e vislumbrou novas possibilidades de vida. Quer agora tornar-se bailarino e instrutor de DanceAbility e, como ocorre com tudo o que se determina a fazer, já acumula energias para o novo desafio, sem tirar os olhos dos campeonatos de natação.

Papel da família

Convém lembrar que, apesar da atual paixão pela dança, a história de Moisés se confunde mesmo é com o para-atletismo no Brasil, em que ele começou muitos anos atrás, quando o desporto para pessoas com deficiência ainda não gozava do reconhecimento que tem hoje no país. Quem vê seu entusiasmo ao falar não tem ideia das dificuldades que já enfrentou, mas o atleta, modestamente, em vez de enaltecer a si mesmo reconhece a coragem dos pais, primeiramente por terem-no aceitado da maneira como é. “Eles não só me aceitaram, mostraram muita força, tiveram outros dois filhos e seguiram em frente”, salienta. “Levo essa lição comigo. É preciso estar preparado para ir adiante mesmo quando as coisas não acontecem como planejamos.”

Apesar da educação encorajadora que teve da família, Moisés foi exposto na infância a situações emblemáticas da falta de preparo das escolas para lidar com pessoas como ele. “Eu sou de uma época em que a palavra ‘inclusão’ não existia! Hoje se fala em inclusão digital, inclusão do pobre, do negro, mas nos anos 1980 era diferente.” Naquela época, em Morretes (litoral do Paraná), e depois, na região metropolitana de Curitiba, a mãe de Moisés teve dificuldade para encontrar uma instituição de ensino que recebesse seu filho. A mais próxima de sua casa era pequena e não tinha sala especial. “Era comum as escolas trabalharem com alunos com deficiência em classes ditas especiais.” Ou seja, ao arrepio de qualquer conceito educacional moderno, todos os que tinham deficiência (fosse ela qual fosse) eram reunidos e colocados em uma sala diferente dos demais. As escolas que não contavam com classes especiais tinham total liberdade para negar a matrícula a um aluno. E foi o que a diretora da primeira escola procurada pela mãe de Moisés fez, acrescentando à sua negativa uma explicação que os pais dele nunca mais esqueceram: “Imagine o seu filho no meio das outras crianças...” “Foi só então que minha mãe entendeu o que era ter um filho especial”, avalia.

Algum tempo depois, ele foi aceito numa escola pública, dirigida por uma senhora que fez bom uso de seus anos de experiência e subverteu as regras em voga, encaminhando-o a uma sala comum por não considerar que suas deficiências o impediam de aprender como as outras crianças. Para Moisés, a atitude foi uma prova de profissionalismo. “Hoje entendo que ela só fez aquilo porque amava muito o seu trabalho. Quando amamos o que fazemos, enfrentamos desafios, nos colocamos à frente do nosso tempo, não acha?”, reflete.

Agora, quando analisa em retrospectiva a experiência, o atleta considera que a convivência na escola foi fundamental para traçar seus caminhos, além de ter proporcionado laços de amizade que mantém até hoje. “Eu vi, por exemplo, que a diferença existe mais na cabeça dos adultos do que na das crianças e que um problema aqui e outro ali não tira pedaço de ninguém.” Ele lembra que pulava elástico, participava de muitas brincadeiras e era frequentemente escalado para escrever no diário das meninas. Estava sempre próximo delas, apesar de não corresponder ao estereótipo de beleza. “Passei minha infância rodeado das meninas mais lindas e agradáveis do colégio”, diz, com um olhar malicioso.

Até então, nada de água, afora a do chuveiro. As estrepolias e os passeios aconteciam ao sabor do acaso e foi justamente uma casualidade que levou Moisés a uma piscina em 1990, quando tinha 13 anos e começava a sonhar com o futuro. Ele não via então muitas possibilidades. “Até padre sonhei que ia ser”, recorda, rindo, para completar em seguida: “Fiquei cinco dias no seminário!” A gargalhada toma conta de todo o ambiente, mas ele não foge da autocrítica. “Era o que eu me permitia sonhar. Soldado do exército, modelo, isso tudo era muito complexo... Mas a vida me ensinou outra coisa. Hoje, quando vejo pessoas roubando, matando por causa da pobreza ou seja lá o quê, me pergunto: qual a chance que elas têm de sonhar?”

O pai também sonhava com o futuro do filho e, talvez por isso, certo dia decidiu entrar numa instituição especializada em pessoas com deficiência, ao passar por sua porta. A essa altura, Moisés já tinha vendido balas nas ruas da cidade, porque queria trabalhar de qualquer jeito. Seu pai achou então que era hora de levá-lo à instituição, e foi assim que Moisés conheceu a piscina do Clube Esportivo dos Deficientes. “Logo que cheguei, me senti no mundo dos teletubbies! Era gente com todo tipo de deficiência. Foi bem estranho”, recorda.

Não tardou, porém, para que ele notasse ali a existência de possibilidades pouco exploradas. A vida social no Esportivo era intensa e complexa, com namoros, paqueras e atividades comuns aos adolescentes, exatamente como ocorre em tantos outros clubes. Além disso, ali Moisés viu de perto pessoas com níveis de deficiência muitas vezes maiores que a sua, participando de atividades que considerava praticamente impossíveis. Pouco a pouco, foi se integrando ao grupo, experimentando outras modalidades de esporte até decidir-se pela natação. “A partir de 1995, aumentei a carga de treinamentos e então as coisas começaram a acontecer muito rápido.”

Medalhas de ouro

Partidário da ideia de que a entrega deve ser feita de corpo e alma, logo pôde colher os primeiros resultados. Em 1997, ganhou o Mundial de Natação na Inglaterra. O atleta lembra com emoção a conquista, porque ela aconteceu justamente no dia em que fazia anos. “Tinha acordado triste, com medo. Afinal, ia passar meu aniversário longe da família e não sabia muito bem o que podia acontecer na prova.” A surpresa o pegou em cheio. A conquista de três medalhas de ouro (50 metros nado livre, 100 metros livre e 50 metros borboleta) o colocou em outro patamar no âmbito esportivo, e as portas começaram a se abrir. Moisés experimentava enfim o poder de sonhar grande. E não deixou por menos: no mesmo ano de 1997 ganhou mais cinco medalhas de ouro na Copa das Américas.

Isso, contudo, não significou diretamente nenhum tipo de patrocínio. O Brasil ainda não investia no para-atletismo, talvez nem mesmo o enxergasse. A mudança ocorreu muito tempo depois, quando a troca de informações, os avanços tecnológicos e a divulgação crescente dos feitos de atletas de outras nações chamaram a atenção para a posição defasada do comitê esportivo brasileiro. A saída foi abrir os olhos para o que vinha acontecendo no país e investir nos atletas. “Patrocínio mesmo só tive a partir de 2002, época do boom no para-atletismo”, revela Moisés. “Mas não me queixo. Na verdade me considero um privilegiado por poder nadar e fazer isso com patrocinador.”

Contudo, a falta de visão em relação ao para-atleta não se restringiu ao comitê. Nos anos 1990, quando aliava a vontade de nadar aos estudos, Moisés era pressionado cada vez mais por dificuldades econômicas. A necessidade de trabalhar se impôs de maneira inescapável, e ele reivindicou uma mudança de horário na escola. Ao contrário do que imaginava, não contou com nenhum apoio da direção do colégio e teve de parar de estudar. “Muita gente da família também não acreditava na minha carreira como nadador e veio questionar minha decisão”, conta.

Muitos anos depois, Moisés encontrou-se com o diretor da escola casualmente e recebeu dele um caloroso “parabéns”. O atleta não se furtou à verdade e lhe respondeu que se chegara aonde estava não tinha sido com a ajuda dele. “Na época da escola, ele dificultou tudo, achando que eu ia desistir da natação, mas felizmente não foi isso o que fiz”, diz, com satisfação. “Assim, pude seguir com a minha missão”, continua, deixando transparecer pela primeira vez um misticismo que só volta a ser revelado quando, ao comentar as conquistas de 1997, lembra a passagem do ano-novo de 1996: “De noite, fui para a praia com meus amigos e perdi minha muleta. Passei o réveillon pulando com a perna direita, ou seja, comecei 1997 literalmente com o pé direito!”

No entanto, a sucessão de vitórias (Moisés ainda ganhou o Mundial de 2005 e foi medalhista nos Jogos Pan-Americanos de 1999, 2003 e 2007) não foi suficiente para lhe garantir dedicação integral ao esporte. Atualmente o atleta trabalha como assistente de recursos humanos numa associação de pessoas com deficiência das 12 às 18 horas. Sua rotina inclui ainda aulas de dança contemporânea e treinos diários na piscina. Mas por que a dança?

“Comecei a dançar para melhorar a qualidade da minha natação, graças a uma amiga que trabalhava com o método Labor e me deu essa dica.” Moisés conta que o trabalho corporal foi tão intenso e os resultados tão bons que a amiga o convidou para um duo com uma bailarina (sem deficiência). A integração se assemelha à que é proposta pela DanceAbility. “A diferença é que o método DanceAbility é totalmente baseado em contato e improvisação”, explica.

Hoje, aos 33 anos, embora com o foco ainda direcionado para a natação – ele quer participar das Paraolimpíadas de Londres em 2012 –, Moisés planeja se aprofundar em dança e aproveitar as oportunidades que a atividade lhe tem oferecido. “Recentemente participei de um vídeo da Universidade do Paraná e graças a ele fui convidado, como bolsista, ao workshop de DanceAbility em Florianópolis”, salienta.

A verdade é que, mesmo detendo o título de recordista sul-americano (são dele os melhores tempos de nado de peito e medley), Moisés sabe que não o conservará por muito tempo. A natação, impulsionada por tecnologia de ponta no tocante a aparelhos para treinamento e a roupas apropriadas, que permitem provas mais velozes, está cada dia mais competitiva. Paralelamente, o interesse por ela também não para de crescer. “Atualmente o Brasil incentiva bastante o para-atleta, às vezes até mais que em locais do Primeiro Mundo. Vi de perto, por exemplo, que o reconhecimento é com frequência maior aqui que em outros países onde o para-atletismo é de ponta”, comenta.

Nesse aspecto, Moisés é bastante realista. Quando ele fala das Paraolimpíadas, por exemplo, não se vê nem sombra do misticismo insinuado minutos antes. “Nunca me saí muito bem nos Jogos Olímpicos, porque ali a competitividade é muito maior. Eu me contento, então, em estar entre os finalistas”, confessa. A melhor colocação obtida por ele foi o oitavo lugar, nos 50 metros nado de peito, em Pequim, em 2008.

Novos competidores

Para se destacar em Londres, no ano que vem, o veterano Moisés enfrentará um time de jovens atletas dentro da própria equipe brasileira. Em 2010, dentre os 24 nadadores que participaram do Campeonato Mundial de Natação para atletas paraolímpicos em Eindhoven, na Holanda, distinguiram-se André Brasil e Daniel Dias, que conquistaram muitas medalhas de ouro. André é atualmente recordista mundial nos 100 metros borboleta e 100 metros nado livre. Daniel Dias, por sua vez, saiu de Eindhoven com sete medalhas de ouro obtidas em provas individuais. De acordo com o Comitê Paraolímpico Internacional, Daniel (que nas Paraolimpíadas de Pequim de 2008 conquistou quatro ouros) vem sendo considerado um dos nadadores olímpicos mais bem-sucedidos do mundo. Sua participação no Open de Paranatação de Berlim no final de abril foi novamente destacada pela imprensa internacional. Daniel bateu mais três recordes mundiais: 100 metros nado livre, 100 metros costas e 200 metros medley. O Brasil saiu-se muito bem na competição, com 39 medalhas.

Independentemente do resultado dos mais jovens, Moisés, como qualquer veterano consciente de sua importância como referência para os que começam a nadar agora, se prepara com afinco para o Parapan de Guadalajara, no México, que acontecerá de 12 a 20 de novembro. A meta do Comitê Paraolímpico Brasileiro é manter o primeiro lugar no quadro geral de medalhas, conquistado no Rio de Janeiro, em 2007.

Os desafios são, portanto, muitos. Com os holofotes voltados para estrelas desse calibre, Moisés vai lutar novamente por um lugar ao sol. Nada disso, porém, rouba o brilho de suas conquistas e, tampouco, seu papel de protagonista na história da natação mundial. Sua coragem, experiência e seus feitos são um marco para os que chegam agora às competições. A história da natação para atletas com deficiência não seria a mesma sem ele.

Ao ouvi-lo falar de sua trajetória com tamanha simplicidade, fica fácil compreender como ele continua se lançando aos desafios. Moisés não é totalmente atleta (no sentido exclusivo que essa ideia pode ter). Ele é atleta, trabalhador, pai (tem um filho de três anos) e amigo disputadíssimo. Nas horas vagas, sai para dançar (adora reggae) e se divertir na companhia de novos e antigos companheiros.