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Quando a matéria encontra a alma


por Flávia Lopes Marques


“Não vou lá! Mas nem que a vaca tussa.” Ouvi a veemente negativa de um colega ao solicitar uma verificação qualquer na exposição do evento Mundo Giramundo – a cidade dos bonecos, que no ano de 2003 abriu passagem aos belíssimos bonecos do grupo mineiro no Sesc Santo André. Surpresa pelo receio do colega, não contive o riso, prontamente interrompido pelo desafio:

“Eu vou se você também for.” Titubeio. Horário de visitação encerrada, boa parte das luzes apagadas, silêncio... e centenas de bonecos me olhando; sim, porque os bonecos olham! Com a cabeça, mas olham. Resolvi não arriscar.

“Eu?! Mas nem que o boneco tussa.”

Ao longo dos anos de atuação no Sesc presenciei inusitadas cenas do encantamento e do fascínio que os bonecos provocam no espectador, seja adulto ou criança, como a garota que ruborizava toda vez que o pequenino boneco beijava sua mão na pequenina praça de cidadezinha visitada pela itinerância do projeto Saravá Mario de Andrade, ou do menino que, após a apresentação de um espetáculo, ajeitou cuidadosamente cada um dos bonecos que estavam no palco, posicionando-os de maneira mais confortável e apropriada para o sono.

Sendo expressão das mais antigas de nossa cultura, o teatro de animação, em função de códigos e elementos intrínsecos à sua linguagem, causa espanto e desperta a mais variada gama de sentimentos, na medida em que nos permite a aproximação ao sublime, não apenas como experiência estética, mas também na transcendência do gesto, forma e poesia. Mais do que desvendar signos e produzir sentidos, a plateia compartilha de um ritual e invade o território do sagrado, quando permite a vida que é doada ao boneco ou objeto, num exercício de generosidade que permeia o acordo tácito que se firma com o artista.

Muito mais que movimento, o ator-animador doa alma ao boneco, muitas vezes em intensidade tamanha que perpetua na matéria resquícios de vitalidade capazes de causar sensações até mesmo quando inertes. Trata-se de uma arte que exige técnica, precisão, elaboração, rigorosa partitura de gestos e ações e eliminação do vulgar, que resulta em ações poetizadas, carregadas de beleza e de significações, sintetizando a técnica e a imaginação na transformação do objeto em sujeito.

Nesse contexto, vale destacar a significativa evolução da linguagem no Brasil, especialmente nos últimos trinta anos, pautada pelo surgimento e aperfeiçoamento de diversos grupos que conduziram as diversas transformações, as quais provocaram o rompimento com a poética tradicional dessa arte.

O ator-animador, antes oculto e agora exposto, as formas e objetos que substituem o boneco antropomorfo, a mescla com outras linguagens e a busca por uma dramaturgia própria contribuem para um panorama de diversidade que aponta para diferentes poéticas.

O teatro de bonecos cresceu, se expandiu, ganhou novos contornos, alcançou outras esferas em que flerta com múltiplas linguagens, tornando-se híbrido e heterogêneo a ponto de desafiar a nomenclatura. O conhecido termo “teatro de fantoches ou mamulengos” foi substituído por “teatro de bonecos”, até este se tornar insuficiente para abarcar a pluralidade da produção contemporânea, denominada “teatro de animação” ou “teatro de formas animadas”.

O Sesc acompanha essa evolução contemplando a diversidade que essa linguagem abriga: títeres, bonecos, marionetes, mamulengos, objetos, formas animadas, máscaras e sombras frequentam animadamente os palcos de nossas unidades, através de diversos festivais de animação, da programação de espetáculos e eventos como a Exposição de bonecos: 10 anos da Cia. Ópera na Mala, que celebra o trabalho da companhia no Sesc Avenida Paulista.

Flávia Lopes Marques, jornalista, é técnica de programação do Sesc Ipiranga