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Império das mídias

por Lúcia Santaella



A pesquisadora Lúcia Santaella, professora da pós-graduação em comunicação e semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),?possui um currículo que lista múltiplas formações – música, psicanálise, letras –, o que, em si, já é um exemplo da área de interesse e atuação da convidada da seção Encontros desta edição. “Adoro estudar, desde criança”, disse durante a conversa que teve com o Conselho Editorial da Revista E. Autora de 30 livros – entre eles, O que É Semiótica [a Brasiliense tem uma edição de 2003], lido por dez entre dez estudantes de comunicação –, Lúcia é ainda organizadora de mais 11 volumes e, em 2007, lançou Linguagens Líquidas na Era da Mobilidade, no qual trata do foco de sua conversa com os membros do Conselho: as mídias móveis. “Hoje estamos, ao mesmo tempo, no mundo físico e no virtual (...). Essa é a revolução que a gente está atravessando, a das mídias (...) que você leva junto com você para qualquer lugar que você vá”, afirmou. A seguir trechos do bate-papo no qual a pesquisadora falou ainda sobre a evolução da internet, sobre a convergência das mídias e também sobre como a informação é adaptada a cada uma delas.

Mídias móveis

A explosão mesmo das redes se deu depois da interface gráfica da “www”, da web. Antes disso, era dificílimo entrar na rede, não havia banda larga, era um verdadeiro inferno. Lembro-me de que, em 1994, tinha na minha agenda uma página inteira com os protocolos para entrar na rede, e, quando conseguia entrar, que maravilha! Mas, depois de poucos minutos, a conexão caía. Então, a explosão das redes se deu, de fato, depois de 1995. Agora, em 2009, já estamos no segundo estágio daquilo que é chamado de cibercultura, a cultura digital. E o que é esse segundo estágio? Primeiro, a própria web se modificou, estamos na web 2.0, que é a web do compartilhamento, em plataformas como a Wikipédia [enciclopédia de conteúdo colaborativo acessada na internet] etc. As palavras de ordem hoje nas redes são confiança, compartilhamento, solidariedade etc. E agora já estamos no umbral da web 3.0, a web semântica, inteligência artificial, tecnologias inteligentes, cognitivas. Não tem mais nada a ver com a tecnologia de Tempos Modernos [filme de 1936], de Charles Chaplin.

Quando se fala em tecnologia, logo se pensa na tecnologia mecânica. No entanto, hoje, a tecnologia é finíssima, inteligente. Na verdade, a fotografia e o cinema já eram tecnologias dotadas de certa inteligência, a inteligência sensória – basta notar que a câmera fotográfica embutiu todo o conhecimento de como nosso olho funciona. A inteligência das tecnologias digitais, por sua vez, é cerebral, cognitiva, permitindo o diálogo do ser humano com a máquina. Chegamos agora à segunda fase disso, que são as tecnologias móveis, o que já é outra revolução fantástica, porque os equipamentos estão ficando cada vez mais miniaturizados – e cada vez mais bonitinhos, são mimos. E como se privar deles? Você está o tempo todo conectado com o mundo, com dados remotos da internet. Tenho escrito muito, nesses últimos meses, sobre as chamadas mídias locativas, um conjunto de tecnologias móveis, munidas de GPS (Sistema de Posicionamento Global), que se caracterizam por emissão de informação digital a partir de lugares/objetos. Por trazerem de volta a consciência viva dos lugares físicos que ocupamos, transformam completamente aquela ideia de uma divisão dissociativa que se fazia, até um ou dois anos atrás, entre o mundo virtual e o físico.

Dizia-se que o mundo virtual é aquele por onde a mente viaja, navega, enquanto o corpo fica estático, inerte, no mundo físico – o filme Matrix é uma metáfora dessa ideia que não passa de uma versão contemporânea do cartesianismo [doutrina do pensador francês René Descartes (1596-1650) que apresenta caracteres racionais rigorosos e metódicos]. Nada disso está acontecendo. Com as mídias locativas, estamos, ao mesmo tempo, no mundo físico e no virtual, simultaneamente. Essa é a revolução que a gente está atravessando agora, a das mídias móveis, aquelas que você leva junto com você para qualquer lugar que você vá.

Era transmidiática

Há um livro maravilhoso de um autor chamado Henry Jenkins, professor de mídias comparadas no MIT [sigla para Massachusetts Institute of Technology – Instituto Tecnológico de Massachusetts em português], chamado Cultura da Convergência [Aleph, 2008], no qual ele diz que vivemos numa era transmidiática. Ou seja, cada mídia está dando o seu recado do jeito que ela pode. Então, evidentemente, se você pega um jornal impresso e compara com a internet, claro que não é a mesma coisa. Se você pega um celular, não é a mesma coisa que o seu computador desktop [como são conhecidos os computadores de mesa, o PC tradicional]. A informação tem que se adaptar à mídia na qual ela está sendo configurada. É aquela célebre frase do McLuhan [Marshall McLuhan, filósofo canadense], que tanta gente criticou, mas que nunca foi tão contemporânea como agora: “O meio é a mensagem”.

Uma das lições da cartilha da semiótica é a seguinte: nenhuma informação é completa. Isso é característica de todo signo, que fica sempre em dívida com aquilo que ele representa. Por exemplo: o jornalista escreve uma matéria e depois vê que faltou isso ou aquilo. Ou mesmo um livro, que depois de pronto o escritor pode se deparar com alguma outra obra que ele não consultou e concluir que faltam muitas coisas a dizer. Ou seja, essa é a natureza dos signos [a incompletude], por isso eles crescem. Primeiro porque a própria realidade vai ficando cada vez mais complexa, e os signos vão crescendo, sem nunca dar conta de tudo. Assim, nessa era transmidiática que o Jenkins defende –?pensamento com o qual eu concordo –, cada mídia difunde às vezes uma mesma informação dentro do formato que cada uma delas permite. É o que vemos acontecer hoje. E que maravilha a gente poder escolher em meio a essa multiplicidade de opções, não? O grande drama é que ainda existem pessoas que não têm acesso a muitos desses meios, o que não resulta necessariamente da falta do equipamento, que está ficando cada vez mais barato, mas se deve à carência de competências mais profundas. Por isso, não adianta simplesmente distribuir computadores pelas escolas.

O necessário é o desenvolvimento da competência que, hoje, não é somente alfabética, mas é semiótica. Quando entramos na rede e começamos a navegar, transitamos por fluxos de signos para signos, uns diferentes dos outros. O texto é um tipo de signo entre uma multiplicidade de outros. Nos anos de 1960, Darcy Ribeiro escreveu um artigo que se chamava Sobre o óbvio. Ele terminou esse texto dizendo que, no ano 2000, o nosso país seria visitado pelo mundo inteiro porque aqui haveria algo muito exótico, não as nossas florestas, rios e mares, mas sim algo que no mundo inteiro, provavelmente, teria desaparecido: o analfabeto. Enfim, é um drama. Tantas mídias foram inventadas e nós ainda não conseguimos vencer esse problema endêmico.

“(...) cada mídia difunde às vezes uma mesma informação dentro do formato que cada uma delas permite (...). E que maravilha a gente poder escolher em meio a essa multiplicidade de opções, não? O grande drama é que ainda existem pessoas que não têm acesso a muitos desses meios”